Newton além de Newton

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“Quando me dei conta de que meu nome era Newton, assim como Isaac Newton, fiquei assombrado! Comecei a ler tudo o que podia sobre ele. Percebi que a carga sobre meu nome era enorme e precisava fazer algo de bom por causa disso.” Seria um reducionismo injusto atribuir a uma coincidência cartorial a grandeza de Newton da Costa para a ciência brasileira, até porque ele foi além de seu propósito. Não se trata de dizer que tenha superado o xará inglês, mas que ele compreendeu, como poucos, que a busca incessante da verdadeira ciência não é estabelecer verdades, mas ampliar horizontes.

Aos 93 anos, o professor emérito da Unicamp foi o formulador da lógica paraconsistente, uma das vertentes da lógica contemporânea, não-clássica, cujas repercussões abriram caminhos para áreas como matemática, física, filosofia, economia, direito e outras (leia mais a seguir). Seu aniversário de 90 anos, celebrado com atraso por conta da pandemia de covid-19, é um dos destaques da Escola São Paulo de Ciência Avançada em Lógica Contemporânea, Racionalidade e Informação - SP LogIC, que tem início nesta segunda-feira (6), na Unicamp. Além de reunir grandes nomes da lógica mundial e estudantes dos cinco continentes, o programa permite às novas gerações conhecerem a história e o pensamento de quem colocou o Brasil no mapa da excelência científica.

Nascido em 1929 em Curitiba, Newton Carneiro Affonso da Costa formou-se em Engenharia e em Matemática pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), instituição pela qual obteve o título de doutor em Análise Matemática e Análise Superior, em 1961, e em que se tornou professor catedrático. Em São Paulo, foi professor titular da Universidade de São Paulo (USP) e da Unicamp. Aqui, participou da criação do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência (CLE), primeiro órgão interdisciplinar da Universidade, em 1977. As experiências como professor visitante levaram seu conhecimento a instituições de países como Chile, Argentina, Peru, Colômbia, Estados Unidos, Espanha, França, Itália, Polônia, Austrália, entre outros.

Jornal da Unicamp – Ao longo de sua carreira, o senhor imaginava que se tornaria uma referência tão importante para a ciência e inspiraria tantas pessoas?

Newton da Costa – A resposta para essa pergunta é difícil. Quando descobri que meu nome é Newton, como Isaac Newton, comecei a ler tudo o que podia sobre Newton e fiquei assombrado. Percebi que a carga sobre meu nome era enorme e precisava fazer algo de bom por causa disso. Comecei então a estudar lógicas não-clássicas e sempre fui um pouco “do contra”. Acho que a motivação foi essa, seria muito chato se eu não tentasse fazer algo de bom. Se, no fim, eu não conseguisse, paciência. E, assim, tentei e cheguei na lógica paraconsistente e em tantos outros temas aos quais me dediquei. Sempre busquei ser original, não pela originalidade em si, mas porque essa é a única maneira de, efetivamente, fazer alguma coisa significativa. Na lógica clássica, já consolidada, praticamente não há mais nada a se fazer. Em um país como o nosso, em que é difícil promover o pensamento, estudar esses temas nos ajuda a sacudir um pouco as pessoas. É preciso chocá-las um pouco, fazer com que sintam que existem problemas a serem resolvidos. Acredito, inclusive, que a única maneira de mudar o país é promover novas ideias, novas construções mentais.

Newton da Costa durante aula na década de 1960 (à esquerda) e em 2009, na cerimônia em que recebeu o título de professor emérito da Unicamp
Newton da Costa durante aula na década de 1960 (à esquerda) e em 2009, na cerimônia em que recebeu o título de professor emérito da Unicamp

JU – E, com isso, colocou o Brasil em evidência na área da lógica.

Newton da Costa – Uma vez, em Curitiba, me disseram: “não é possível que aqui, no fim do mundo, você queira mudar a lógica”. Não interessa onde estou, o mundo real e científico tem uma dinâmica em que é preciso seguir em frente. Durante muito tempo, as universidades brasileiras não produziam novas ideias. Até hoje, não temos um Prêmio Nobel. Uma vez, conheci um grande físico brasileiro que dizia que, toda vez em que encontrava um pesquisador brasileiro no exterior, observava que o brasileiro andava como se estivesse envergonhado, com complexo de inferioridade. O que é isso?! Quando meus trabalhos começaram a ser traduzidos para o francês e publicados pela Academia de Ciências da França, comecei a registrar notas de minhas ideias lá. Na Academia Francesa, há uma prática: quando você tem uma nova ideia, registra em uma nota e garante que seja prioritária para a Academia. Publiquei muitas notas com minhas ideias lá. Nunca esqueço o dia em que mostrei a meu pai uma dessas notas. Ele era durão, mas quando viu aquilo, começou a chorar, dizendo: “meu filho apareceu nos proceedings da Academia de Ciências da França!”. Por outro lado, ouvi, no Brasil, de um diretor de faculdade: “Newton, que formidável! Conseguiu tapear as pessoas neste nível.” Este era o país do meu tempo, de quando eu era jovem. Ninguém acreditava em nada, o brasileiro que levantasse a cabeça levava um coice.

JU – Hoje já vivemos em um tempo em que é possível pensar com liberdade, não é?

Newton da Costa – Sim, mas precisamos mudar a mentalidade de que os cientistas brasileiros precisam limpar o chão para os do primeiro mundo. Temos que fazer nossa ciência, contribuir para o progresso científico.

JU – E o CLE (Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência) foi importante nessa trajetória?

Newton da Costa – Muito importante. Estive na criação do CLE, junto a pessoas como a professora Ítala D’Ottaviano. Graças a ela e a um grupo de jovens, na época, que levaram isso para frente. Havia muitos jovens que queriam desenvolver a ciência, mas não era possível simplesmente saírem do país e serem professores nos Estados Unidos, na França, na Alemanha. Acredito que a SP LogIC pode, inclusive, ser um marco para mudarmos essa dinâmica, para que nossos jovens não precisem sair do país, para produzirmos nossa ciência aqui.

Se for possível sintetizar a lógica paraconsistente em um único conceito, talvez a melhor escolha seja “contradição”. A formulação de Newton da Costa que balançou os paradigmas da lógica e da filosofia da matemática baseia-se na ideia de que contradições podem existir em sistemas lógicos e de que é possível trabalhar com elas em bases racionais.

Estabelecida por Aristóteles, na Grécia Antiga, a lógica clássica tem o objetivo de lançar as bases para organizar o raciocínio de modo válido, observando-se a forma e a proporção dos argumentos de maneira a evitar falácias. Da mesma maneira que rege as inferências expressas em palavras, o raciocínio matemático também obedece às regras da lógica.

Assim como outras vertentes não-clássicas, a lógica paraconsistente contraria princípios da lógica aristotélica, neste caso, o princípio da não-contradição, segundo o qual uma proposição não pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo. Para Newton da Costa, a inexistência de contradições ia contra o que ele via todos os dias na realidade da ciência e do cotidiano.

JU – O que despertou, no senhor, a inquietação de pensar a lógica e a matemática não a partir do princípio de que não existem contradições, mas as assumindo como um pressuposto?

Newton da Costa – Esse é o ponto central da lógica paraconsistente, é uma lógica que trata da manipulação das contradições, das teorias que podem ser contraditórias. A razão principal para isso é o fato de que, se analisarmos os diferentes domínios da ciência, a quantidade de contradições que existem é incrível. Por exemplo, a mecânica quântica tem, no mínimo, cerca de dez teorias que se opõem. Embora levem, empiricamente, aos mesmos resultados, teoricamente elas se contradizem. Na realidade, toda atividade científica tem sempre algum problema por trás. Chegar ao final de uma teoria absolutamente sem contradições é um sonho. Pode ser um sonho verdadeiro, mas talvez nunca se encontre uma teoria assim.

 

Newton da Costa em diferentes momentos de sua trajetória
Newton da Costa em diferentes momentos de sua trajetória

JU – Claro que este pensamento não surgiu do nada, o senhor teve como referência outros autores e teorias que já levantavam essas possibilidades. Mas por se tratar de uma ideia tão inovadora, na época, ela sofreu resistências?

Newton da Costa – Evidentemente sim. Aliás, um ex-aluno, hoje meu amigo, se aproximou de mim na época e perguntou: “será que o senhor está realmente bem da cabeça?”, porque ele não concebia que era possível admitir a contradição. Mas há áreas da ciência que nasceram de contradições que, até hoje, não foram superadas. A mecânica quântica, área com a qual mais trabalho, é uma delas. O que ocorre é o seguinte: não é que o mundo seja necessariamente contraditório, mas talvez seja praticamente impossível dar conta do mundo por meio de uma teoria geral em que não haja contradições. A prática mostra que a ciência sempre caminha por meio de contradições, seja pela superação delas, pela compatibilização de teorias contraditórias, pela tentativa de eliminá-las. Acho que isso é muito bom, é o que tento fazer com a matemática, mas não sei se é o que realmente acontece no mundo real.

JU – O senhor coloca a lógica paraconsistente como uma possibilidade a se concretizar no futuro, como uma obra aberta em construção. A paraconsistência continua sendo um paradigma desafiador?

Newton da Costa – Hoje não existem mais posições tão ferrenhas como antes. No início, a lógica paraconsistente parecia uma barbaridade, uma loucura completa. Hoje, os pesquisadores entendem a proposta. Um exemplo típico é o da mecânica clássica padrão, utilizada pelos engenheiros, que não é compatível com a mecânica quântica. São coisas diferentes, logicamente incompatíveis. E aí eu pergunto: como um engenheiro trabalha com duas mecânicas incompatíveis? Ele precisa ser paraconsistente. Todos nós somos seres paraconsistentes e levaremos muito tempo sendo paraconsistentes sem encontrar uma solução para essas contradições.

Por ter surgido dentro da matemática, a lógica paraconsistente encontra aplicações bem estabelecidas em áreas como a física, a engenharia de softwares, a eletrônica e a inteligência artificial. Entretanto, ao se mostrar como uma perspectiva aberta às incertezas e ao que pode surgir de novo, ela abre caminhos interessantes na semântica, no direito, na psicanálise e em outras áreas. Onde há a necessidade de se abrir à contradição, a paraconsistência pode ser um instrumento importante.

 JU – Hoje, é evidente a presença de contradições em nosso mundo. O senhor acredita que faltam, para as pessoas, mecanismos para saber lidar com as contradições em bases racionais?

Newton da Costa – Eu sou mais radical: talvez as coisas rumem para uma espécie de aristotelismo. Aristóteles pensava que a lógica não podia conter contradições, de forma alguma, e nenhum grego pensava de forma diferente, a não ser um ou outro pensador marginal. O X da questão é o seguinte: não há, hoje, provas concretas de que o mundo não envolva contradições. Podemos sempre substituir teorias contraditórias, fazer modificações. Mas, por exemplo, a física não-relativista tem contradições fundamentais em relação à física relativista. A ciência, no momento, envolve contradições, e a maneira de domar essas contradições passa pela lógica paraconsistente. Se, no futuro, ela será superada ou não, francamente, não sei responder. Gostaria que não fosse (risos).

JU – O que o senhor acha mais provável: que as pessoas não vejam as contradições que existem, ou as vejam, mas queiram varrê-las para debaixo do tapete?

Newton da Costa – Veja, tenho a impressão de que um filósofo com F maiúsculo não faria algo assim. Mas a realidade é que grande parte das pessoas acha que o mundo não guarda contradições e que uma lógica que se refere ao mundo real não pode conter contradições. Minha posição não é de que elas existam ou não. O que acho é que muitas das grandes teorias da ciência atual surgem e permanecem contraditórias, e é muito difícil superá-las com uma teoria correspondente. Isso não quer dizer que existam contradições reais, quer dizer que elas podem ocorrer. Esta é a finalidade da lógica paraconsistente, deixar esse espaço aberto.

JU – O senhor acredita que precisamos de mais lógica na vida? Vivemos um momento que anseia por mais lógica?

Newton da Costa – Francamente, não sei. Já encontrei muitas pessoas que anseiam por isso, mas como fui eu quem deu início a essa ideia, talvez eu as atraia sem querer. Mas saber que existem outras possibilidades no mundo é fundamental. Eu me lembro das discussões em torno das geometrias não-euclidianas. Até o surgimento de [Nikolai] Lobachevsky, [Bernhard] Riemann e outros, só havia como paradigma a geometria euclidiana. Quando Lobachevsky sugeriu uma nova geometria, achavam que ele era um louco, indigno da ciência russa. No entanto, hoje, ele é considerado um dos maiores nomes da área. Ou seja, com a lógica, talvez possa ocorrer algo como ocorreu com a geometria, em que todos sabem que há várias geometrias, com diferentes aplicações, cada uma muito interessante e importante. Da mesma forma, há várias lógicas, e você pode lançar mão delas em diferentes contextos.

JU – Essa consciência também pode ser levada para outras áreas da vida, não é? De que existem outras possibilidades, outras questões podem estar também corretas. Isso fortalece a interdisciplinaridade na ciência?

Newton da Costa – Exatamente, isso é fácil de ser identificado em várias coisas. Antes, existiam instrumentos isolados, depois foram criadas orquestras. Hoje, as lógicas operam como uma espécie de orquestra, em alguns casos, uma pode ser usada, em outros, é melhor escolher outra lógica.

Ao longo desta entrevista, Newton da Costa não mencionou outro conceito que caracteriza sua obra, a “teoria da quase-verdade”, surgida com o desejo de explicar o que é ciência, conhecimento e verdade. A partir da ideia de que várias teorias podem explicar a realidade, sendo contraditórias entre si, o conceito de verdade absoluta cairia por terra. O que existiria são quase-verdades, que mudam ao longo do tempo e são condicionadas a circunstâncias, como horizontes que sempre se ampliam.

Após uma vida dedicada à evolução da ciência, a essência da teoria de Newton da Costa se faz clara. Ao abrirmos as mentes ao contraditório, tornamos a ciência dinâmica e diversa. Como bom professor, o recado aos alunos é dado: “É preciso desenvolver o espírito crítico dos jovens. Eles precisam saber criticar, palavra por palavra, o que os professores colocam como teorias. Devem se convencer por conta própria, não podem ter medo de ideias diferentes.”

 

Olhares Lógicos

Textos: Felipe Mateus
Tradução: Felipe Mateus
Arte: Alex Calixto e Rafaela Repasch
Web design: Renan Barreto
Coordenação de TI: Laura Rodrigues

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Newton da Costa durante a entrevista que abre a série “Olhares lógicos”  (Foto: Antonio Scarpinetti)

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