Situação dos Yanomami expõe abandono dos indígenas pelo Estado

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Desnutrição, malária, pneumonia e verminoses, além da violência constante de garimpeiros ilegais ocasionaram uma situação de crise sanitária e humanitária na maior terra indígena do Brasil, onde vivem cerca de 28 mil Yanomami. A desnutrição atinge mais de 50% das crianças, e há um alto número de casos de malária, relacionados à expansão do garimpo. Constatando a gravidade da situação, o governo federal decretou emergência de saúde e convocou voluntários para atuarem no local.

A Terra Indígena Yanomami tem cerca de 9 milhões de hectares e está localizada nos estados do Amazonas e de Roraima, na fronteira com a Venezuela. Vivem nela oito povos, incluindo os Yanomami. Com o avanço de atividades ilegais na região, estima-se que 20 mil garimpeiros também estão no território. Indígenas denunciam a contaminação dos rios devido ao garimpo e os abusos sofridos pelas mulheres e crianças. 

A professora do Departamento de Antropologia Artionka Capiberibe:
A professora do Departamento de Antropologia Artionka Capiberibe: mobilização pelos direitos indígenas foi se fragilizando

Conforme a professora do Departamento de Antropologia da Unicamp Artionka Capiberibe, o que está na raiz dos problemas enfrentados pelos Yanomami é a terra. “Eles têm uma terra indígena demarcada e homologada, mas ela não é uma terra protegida”, diz. Nos anos 1990, relembra, houve a demarcação de terra após invasão de garimpeiros, que foi contida por uma pressão internacional.

No entanto, avalia a professora, a partir da “corrosão do sistema político brasileiro”, especialmente após 2014, a mobilização pelos direitos indígenas foi se fragilizando, agravada pela composição do Congresso Nacional, no qual predominam os interesses ruralistas e da mineração. “Tem dois movimentos: começa lá atrás, com uma fragilização do cuidado das populações indígenas, e isso é geral, com a crise política no país, e quando se elege o inimigo dos povos indígenas, que é o Jair Bolsonaro, começa o genocídio de fato.”

Durante o governo Bolsonaro, com o desmonte de órgãos de proteção ambiental e dos direitos indígenas, o garimpo avançou ainda mais. Em 2021, houve a maior expansão da atividade dos últimos 36 anos. Foram 15 mil hectares garimpados, sendo 1.556 na TI Yanomami. 

Governo ignorou pedidos de ajuda

É sintomático, para Capiberibe, que a primeira morte por Covid-19 de um indígena tenha sido de um Yanomami. “É sintomático do que estava acontecendo lá, porque ele foi contaminado justamente por ter contato com não indígenas e porque há invasões, que estavam sendo denunciadas recorrentemente.” (escute a análise da professora da situação, na íntegra, no depoimento em áudio abaixo)

A falta de assistência e os ataques armados pelos garimpeiros, conforme apurado pelo Intercept, levou os Yanomami a enviarem 21 pedidos de ajuda ao governo Bolsonaro, que os ignorou. À Organização das Nações Unidas (ONU), o ex-presidente informou que os  indígenas estavam sendo atendidos e que haveria uma operação para garantir alimentos e saúde.

Paulo Abati, médico infectologista, especialista em saúde indígena e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, esteve no território Yanomami em 2022 em ação da ONG Expedicionários da Saúde. Ele conta que a situação grave da população em termos de saúde não vem de agora, mas piorou nos últimos anos. “Além da degradação ambiental promovida pelo garimpo, que acaba impedindo os modos de vida tradicionais e impactando na saúde do povo, houve, nos últimos anos, uma baixa importante nas ofertas de acesso à saúde.”

Professor Paulo Abati:
Paulo Abati, médico infectologista, especialista em saúde indígena: dados epidemiológicos que guiam as ações em saúde ficaram ocultos nos últimos anos (Foto: ONG Expedicionários da Saúde)

Dentre os problemas citados, ele indica que houve a redução do programa Mais Médicos, insuficiência e má gestão de recursos. “Tivemos falta de medicamentos e de alimentos, fatores que contribuíram para este contexto que estamos vendo hoje. Os dados epidemiológicos que guiam as ações em saúde ficaram ocultos nos últimos anos, dificultando o conhecimento da sociedade, das instituições e do poder público (que tem o dever constitucional de executar as ações em saúde) e que agora estão sendo revelados.”

Para o professor, é preciso “coordenação, no sentido de melhorar uma ação integrada entre diversos atores sociais e instituições, para colocar fim no garimpo naquela região e dar suporte de saúde àquele povo, para que não tenhamos um genocídio.” (escute o relato de Paulo Abati, na íntegra, no áudio abaixo)

Estado de emergência

Em visita a Roraima neste sábado (21), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou medidas para contornar a situação de calamidade, que incluem o envio imediato de alimentos e suplementos. O Ministério da Saúde decretou o estado de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional. 

Em Roraima, o presidente Lula esteve acompanhado da ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara; do ministro do Desenvolvimento Social, Wellington Dias; da ministra da Saúde, Nísia Trindade; do ministro da Justiça e Segurança, Flávio Dino; do ministro da Defesa, José Múcio; do ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida; e da futura presidente da Fundação dos Povos Indígenas (Funai), Joênia Wapichana.

Um dia antes de ir à TI Yanomami, Lula também anunciou a criação do Comitê de Coordenação Nacional para Enfrentamento à Desassistência Sanitária. Já nesta segunda (23), foi enviada uma equipe da Força Nacional do Sistema Único de Saúde (SUS) e uma equipe multiprofissional para operar um Hospital de Campanha. Além disso, o ministro da Justiça, Flávio Dino, abriu um inquérito para apurar possíveis crimes de genocídio e de danos ambientais. 

Recrutamento de voluntários

Diante da situação, o governo federal está recrutando voluntários da área de saúde para atuar junto aos Yanomami. O cadastro pode ser feito através deste link. A Unicamp também tem a intenção de reunir voluntários para atuarem no local.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou medidas para contornar a situação de calamidade, que incluem o envio imediato de alimentos e suplementos
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou medidas para contornar a situação de calamidade, que incluem o envio imediato de alimentos e suplementos (Fotos: ONG Expedicionários da Saúde)

Política de Bolsonaro foi genocida, diz ex-presidente da Funai

“Estamos vendo um filme que é repeteco de algo que já ocorreu”, diz a antropóloga Marta Maria Azevedo, que foi presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) entre 2012 e 2013, é pesquisadora do Núcleo de Estudos de População Elza Berquó (Nepo) da Unicamp e professora do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH). Ela compara a situação atual ao que aconteceu no final da década de 1980, quando cerca de 40 mil garimpeiros invadiram o território Yanomani e desencadearam uma crise sanitária que dizimou cerca de 14% da população, estimada, na época, em 30 mil indígenas.

Apesar do histórico de exploração mineral e de constantes invasões ao território Yanomani, Marta avalia que, nos governos anteriores ao de Jair Bolsonaro, “a terra ficou razoavelmente protegida de garimpeiros, embora sempre tivesse a entrada de um ou outro pela estrada”. Na gestão Bolsonaro, veio a suspensão de assistência de saúde indígena e a falta de cuidados durante a pandemia de covid-19, diz a antropóloga, que atuou no projeto União Amazonas Viva criado pelo fotógrafo Sebastião Salgado.

Não havia UTI na Amazônia

“Trabalhamos muito. Construímos redários (estruturas com rede para substituir macas) com oxigênio. O Bruno (Bruno Pereira, indigenista assassinado na Amazônia) também fez esse trabalho, porque não havia UTI na Amazônia”, lembra Marta, que participou de um trabalho pioneiro com os técnicos Fernando Damasco e Marta Antunes, do IBGE. “Fizemos um indicador de vulnerabilidade dos povos indígenas, publicado em fevereiro de 2020 pelo Nepo, para mostrar onde e quais indígenas sofreriam mais o impacto da covid. Foi um trabalho pioneiro da Unicamp.”

A professora lembra que, quando Bolsonaro assumiu a presidência, ele prometeu que não iria demarcar “nem um centímetro” de terra indígena. “Ele já assumiu dizendo que quilombola não é gente e que índio não é gente. Logo em seguida, ele foi incentivando o garimpo nas terras indígenas. Portanto, é óbvio que é uma política genocida, com intenções de genocídio. Essa situação dos Yanomami estava sendo vista pelos garimpeiros e pelos empresários, mas nada era divulgado.”

A antropóloga Marta Azevedo: iniciativa do Ministério da Saúde de fazer um chamado de médicos voluntários é muito importante
A antropóloga Marta Azevedo: iniciativa do Ministério da Saúde de fazer um chamado de médicos voluntários é muito importante

De acordo com a antropóloga, a cobertura de vacinação dos Yanomani é de apenas 15%. “Pouquíssimos foram vacinados contra covid. No governo Bolsonaro, as bases de saúde foram precarizadas. Portanto, a alimentação foi afetada, porque sem saúde eles não caçam, não plantam, não pescam. Eles têm comida para um dia, não é como nós, que temos congelador. O congelador deles é a mata. A outra questão é a contaminação por mercúrio nos rios. Há uma população imensa de Yanomami contaminada por mercúrio, o que é gravíssimo, porque deixa sequelas neurológicas e prejudica o desenvolvimento de crianças. E tem a violência contra os indígenas. Os garimpeiros ficam perto das aldeias e violentam mulheres e crianças”, relata Marta.

Segundo a antropóloga, “a Funai não fez nada”. Não havia verba na gestão de Marcelo Xavier, ex-policial que presidiu a Funai e defendia o garimpo. “Foram vários fatores que fizeram a situação permanecer desconhecida. Algumas informações escaparam, como os casos de estupro de crianças, que a gente ficou sabendo. O que nós não ficamos sabendo?”, questiona a professora, que está confiante na atuação do Ministério dos Povos Indígenas, com Sônia Guajajara, e especialmente com a nova gestão da Funai, sob o comando de Joenia Wapichana.

Para Marta, a iniciativa do Ministério da Saúde de fazer um chamado de médicos voluntários para atenderem o povo Yanomami também é muito importante. “Junto com isso, um processo de desintrusão.” Mas a professora acredita que a sociedade civil também deve ter maior participação. “O governo não vai prescindir da ajuda da sociedade civil. Está na hora de fazermos uma aliança. Também estamos sendo atingidos, não são só os Yanomamis. A pobreza está aqui na porta da minha casa, e a água contaminada estará aqui daqui a pouco, e a falta de comida boa. Está tudo conectado. Não adianta pensarmos que é um problema de Roraima, lá longe. A cidadania é planetária. O governo Bolsonaro deixou os índios em petição de miséria, em todo o Brasil. Será difícil reconstruir o Brasil agrário, porque o campo está em guerra e continuará assim.”

Assista ao programa Direto na Fonte com a ex-presidente da Funai Marta Azevedo.

Emergência sanitária 

A antropóloga Marta Maria Azevedo conheceu a região Yanomami em 1987, quando houve a invasão do território indígena por 40 mil garimpeiros. “A área não era demarcada, e, logo após essa invasão, houve uma crise sanitária que dizimou cerca de 14% da população Yanomami”, lembra a professora. “Nós, antropólogos, já declaramos que foi genocídio.”

Ninguém sabia, naquela época, qual era a população exata, mas as estimativas feitas por antropólogos que trabalhavam na região eram de que havia cerca de 30 mil indígenas. Naquele momento, decretou-se emergência sanitária. Políticos como Severo Gomes, Ulysses Guimarães e Plínio de Arruda Sampaio visitaram a região, lembra a antropóloga. Todos eles estavam trabalhando na nova Constituição. “Essa época foi o auge da crise Yanomami, pouco antes da Constituição promulgada em 1988”, diz Marta Maria Azevedo.

Depois da nova Constituição — que criou uma legislação de terras indígenas — e da realização da Eco 92 no Rio de Janeiro, houve forte pressão para que o governo Collor demarcasse as terras e expulsasse os garimpeiros. O alto comissariado da Organização das Nações Unidas (ONU) enviou uma carta ao governo exigindo providências para enfrentar a crise sanitária humanitária Yanomami.  “O governo então demarcou. Eu me lembro quando fui trabalhar no alto Rio Negro, em São Gabriel da Cachoeira, em 1992, onde havia muitos garimpeiros que tinham sido expulsos da terra Yanomami”, conta a professora.

Antes da invasão de 1987, já existia, desde o final dos anos 70, uma Comissão Pró-Criação do Parque Indígena Yanomami (CCPIY), que se pautou pelo exemplo do Parque do Xingu, demarcando uma terra ampla para que os povos pudessem transitar. O parque foi criado em 1991.

A área Yanomami

A terra Yanomami é como um “L”, descreve Marta. Uma parte fica ao oeste de Roraima, e outra, fica a noroeste do estado do Amazonas. A área Yanomami vai até o alto Rio Negro e chega ao Pico da Neblina. Em toda esta área, vivem subgrupos Yanomami, com diferentes línguas, mas da mesma família linguística. Toda essa região possui grande riqueza de minerais. “Tem muito nióbio, que é um dos minerais usados para a fabricação de celular. Além disso, é uma área de fácil garimpo de superfície. Mas agora entraram balsas imensas, como as que existem no Tapajós, onde há uma balsa do tamanho do estádio do Pacaembu”, afirma a professora.

Boa Vista, a capital de Roraima, fica a nordeste do estado. No centro da cidade, há uma praça chamada Praça do Garimpeiro, com uma enorme estátua de um garimpeiro. Em busca de enriquecimento, muitas pessoas do Nordeste e de outros estados do Norte migraram para esta região, como ocorreu em Serra Pelada.  

Em 1987, após uma invasão, houve uma crise sanitária que dizimou cerca de 14% da população Yanomami
Imagens feitas em novembro de 2022 na região de Surucucu: em 1987, após uma invasão do território por garimpeiros, houve uma crise sanitária que dizimou cerca de 14% da população Yanomami (Fotos: ONG Expedicionários da Saúde)

 

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Desnutrição, malária, pneumonia e verminoses, além da violência constante de garimpeiros ilegais ocasionaram uma situação de crise sanitária e humanitária na maior terra indígena do Brasil

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