Para historiadora, Brasil terá de decidir o que fazer com o bolsonarismo

Autoria
Edição de imagem

Os ataques contra os três poderes no último domingo (8), em Brasília, quando prédios do Executivo, Legislativo e Judiciário foram invadidos e vandalizados por grupos inconformados com o resultado das eleições de novembro passado – numa agressão sem precedentes na história recente do país –, colocaram o povo brasileiro diante de um enigma, segundo a avaliação da professora do Departamento de História da Unicamp Josianne Cerasoli.

Segundo ela, apesar da resposta enfática das instituições em favor da democracia, o país se vê impelido agora a decidir sobre o que pretende fazer com o “bolsonarismo” – fenômeno que não esconde sua gênese autoritária e que conta com a simpatia de grande parte da população brasileira.

“O que vai ser de Bolsonaro depende da resposta que daremos a isso", disse a professora que desde 2019 coordena o Observatório de Direitos Humanos, órgão da Diretoria Executiva de Direitos Humanos (DeDH) da Unicamp. “Não será uma resposta apressada e nem vai ser um único destino. Não será uma única saída”, prevê.

A professora diz que os ataques deixaram a sociedade brasileira perplexa. Josianne chega a chamar os agressores de “terroristas”, mas, ainda assim, faz um alerta sobre os riscos da instalação no país de uma caça às bruxas e da disseminação do “denuncismo”.

“Temos que olhar para a democracia e compreender o que nós queremos como futuro dela. E ela vai dar o destino para Bolsonaro – ou para o bolsonarismo”, ensina a professora, que atua em áreas como História Política e História Urbana, trabalha em temas como cidadania e integra o Coletivo Unicamp pela Democracia.

Nesta entrevista ao Portal da Unicamp, a professora compara as manifestações de 8 de janeiro de 2023 com as de 2013 e analisa o impacto que as manifestações violentas podem provocar na liderança de Jair Bolsonaro e no crescimento da extrema direita no país. Para ela, não há nenhuma evidência que aponte para um abrandamento dos movimentos radicais de direita.

A professora lembrou ainda que precisamos aprender a nos defender das bolhas criadas nas redes sociais. São essas bolhas, diz ela, que fazem nascer universos capazes de disseminar ódio e desinformação de maneira organizada e sistematizada. E prega algum tipo de controle. “Em algum momento, alguém terá de regular isso. Hoje quem regula é o lucro”, avisa.

A historiadora Josianne Cerasoli: "Temos que olhar para a democracia e compreender o que nós queremos como futuro dela"
A historiadora Josianne Cerasoli: "Temos que olhar para a democracia e compreender o que nós queremos como futuro dela"

Veja os principais trechos da entrevista com a professora Josianne Cerasoli.

Portal Unicamp (PU)Depois dos episódios de violência em Brasília, qual, na sua opinião, será o futuro do ex-presidente do Brasil Jair Bolsonaro? Ele ganha mais ou perde mais como líder de uma direita que se mostrou violenta e intolerante?

Josianne Cerasoli –  Eu sou historiadora, e, ao perguntar sobre o futuro para historiadores, é provável que você vá ter uma resposta sempre enviesada, porque a gente olha para o repertório que a sociedade construiu até aqui. E é ele que dá uma dimensão daquilo que a gente pode ou não construir ou projetar para o futuro. Dá a direção do quanto a gente pode se surpreender com a gente mesmo enquanto sociedade.

Eu, como alguém que trabalha com história, com história política, e alguém que está no Observatório de Direitos Humanos da Unicamp – um lugar que convoca a Universidade a assumir uma responsabilidade diante da sociedade –, fico muito preocupada quando a gente olha para algum personagem, qualquer que seja ele, e coloca a responsabilidade toda lá, como se os destinos de toda uma sociedade estivessem atrelados a alguém, seja ele quem for. Porque a responsabilidade é, sempre, coletiva.

Olhando para esse contexto que a gente tem hoje, e em relação a esses eventos que deixaram a comunidade perplexa – porque a sensação é de perplexidade –, a tendência é justamente tentar uma saída que responda de imediato a esse assombro, algo que possa ser uma resposta tão certeira quanto o susto que a sociedade tomou. E aí há um risco imenso.

O risco de haver uma caça às bruxas – ao encontrar culpados muito apressadamente – e acabar transformando todo cidadão em “denuncista” é grande. É um perigo imenso porque, como cidadãos, não temos todos os aparatos para identificar os atos, fazer as análises e elaborar um julgamento justo. Quem aposta na vizinhança vigiada é a sociedade autoritária, é o totalitarismo. Não se fortalece a democracia e a cidadania assim. 

E outro risco é o que me parece estar embutido nessa pergunta sobre o que vai ser de Bolsonaro a partir de agora. Vai ser de Bolsonaro aquilo que a gente tiver capacidade de responder enquanto sociedade. Não vai ser uma resposta apressada e não vai ser um único destino. Não há uma saída única para isso. Ao pensar sobre isso, fui olhar o que a sociedade preparou para este momento de fortalecimento da democracia, escolhendo outro horizonte de governo depois de quatro anos de muita perturbação de nossas instituições democráticas. Fui olhar o que a sociedade preparou para lidar com isso: instituições estremecidas e extremismos em ebulição.

Evitei focar nesse imediatismo da resposta  diante da perplexidade que a gente fica querendo construir. E o que é que a sociedade acabou de escolher? Acabou de escolher um governo de composição bastante heterodoxa, com muitas frentes políticas diferentes, com propostas de sociedade em certa medida diferentes, com perspectivas diferentes de país, mas que têm uma linha em comum, que não pode ser esquecida ou abandonada, por ser aquela que escolhemos com legitimidade e autonomia. E eu acho que é essa linha comum que vai nos dar a resposta para essa pergunta angustiante: escolhemos a democracia.

O que colocou todos, com suas diferenças, respeitosamente, numa mesma mesa, foi a defesa da democracia. Então nós temos que olhar para a democracia e compreender o que nós queremos como presente e futuro para ela. É a democracia, escolhida por nós, que vai dar o destino para Bolsonaro – ou para o que é o bolsonarismo, já que Bolsonaro é um personagem que sintetiza muita coisa que está entre nós, latente ou muito presente em nosso cotidiano em termos de violência em nossa sociedade.

#
Bolsonaristas montam barreiras em avenida em frente à Escola de Cadetes, em Campinas (SP); Josianne Cerasoli não vê, neste momento , possibilidade de abrandamento dos movimentos extremistas

PUO governo eleito em novembro trouxe consigo, de fato, a ideia da defesa da democracia, mas praticamente a metade dos eleitores não votou nessa ideia. Na sua opinião, os episódios de violência do dia 8 de janeiro alteram a percepção dos eleitores que votaram em Bolsonaro nas últimas eleições?

Josianne Cerasoli –  Sem dúvida altera. Não sei se altera no sentido que a gente está discutindo aqui, a favor da democracia. Neste momento, se olharmos para as narrativas em disputa – porque as narrativas estão em luta –, existe, por exemplo, uma tentativa de atribuir tudo aquilo que aconteceu no dia 8 de janeiro a supostos agentes infiltrados entre os golpistas. Há uma disputa pelas narrativas, contínua e aguda neste exato momento, e ainda não se sabe como isso vai se desenrolar e como as instituições vão reagir de fato. 

As reações firmes, efetivas e simbólicas estão em curso desde o dia 8, já que não se atenta contra as três principais instituições que compõem a República do Brasil, e a vida tranquilamente. Isso não pode acontecer. E, de novo, o futuro vai depender da resposta que a gente der, como sociedade que sustenta e justifica essas instituições. Nas narrativas, por enquanto, isso está em disputa de modo perigoso. Mas os episódios inéditos de violência a que assistimos mudam a percepção de eleitores derrotados porque agora temos outros elementos.

Acho que existe um elemento simbólico muito importante que está disputando espaço com um outro elemento simbólico também muito significativo e que esteve presente na posse do presidente [Luiz Inácio Lula da Silva], no dia 1º [de janeiro]: a simbologia em torno da entrega da faixa – numa síntese do que seria a diversidade da população brasileira. Aquela imagem foi bastante forte e mudou muita coisa na maneira como as pessoas estavam olhando criticamente o novo governo. Por outro lado, as imagens da invasão em Brasília parecem destinadas a atentar precisamente contra essa força, como se a desprezassem. Como expressão de intransigência e violência, também têm um valor simbólico imenso.

E não foi à toa que, imediatamente, os discursos favoráveis a Bolsonaro começaram a provocar uma confusão entre aquelas imagens e as imagens das manifestações de 2013. Porque em 2013, a sociedade, de modo geral, aprovou o que estava acontecendo ali. Embora exista muita controvérsia sobre os atos de 2013, tratava-se inicialmente de manifestações por direitos, contra o aumento de tarifas públicas e contra a proposta de diminuição do poder do Supremo Tribunal Federal. A pauta não poderia ser mais oposta ao que vimos nos ataques golpistas de 8 de janeiro, mesmo que aquele tenha sido um dos primeiros passos de um processo que, para mim, levou ao golpe [contra a então presidente Dilma Rousseff].

Naquele episódio, apesar de uma pauta com pontos importantes de interesse coletivo, houve coisas que não seriam aceitáveis em uma democracia. Algumas frentes foram abertas. A sociedade aceitou. Então, pequenos testes foram sendo feitos e espaços para a intransigência e a violência foram se firmando. E por que embaralhar essas imagens de 2013 e de 2023? Provocar essa confusão agora não é sem motivo. Tem gente dizendo: “É a mesma coisa”. Não é a mesma coisa. Absolutamente, não é a mesma coisa. Houve aquele gesto simbólico em 2013 quando os manifestantes sentaram-se na marquise do Congresso Nacional – há até fotos maravilhosas sobre isso, dando a impressão de que o povo, afinal, tinha tomado seu lugar no poder. Mas isso nada tem a ver com depredação.

É muito importante que a gente deixe isso muito claro. O descaso completo com o patrimônio público, bens carregados de simbolismo e constituintes de nossa história que foram severamente danificados, relíquias [foram] arrebentadas. São danos irrecuperáveis. Não dá para você chamar isso de patriotismo em nenhum lugar do mundo, em lugar nenhum da história. Precisamos reconhecer a depredação como depredação. Como vandalismo. Aquilo foi um completo absurdo. Passou a ser completamente ineficaz como protesto. Passou a ser simplesmente violência e desprezo pelo país.

Acampantes permaneceram mais de 60 dias em barrcas em frente à Escola de Cadetes, em Campinas
Acampantes permaneceram mais de 60 dias em barracas em frente à Escola de Cadetes, em Campinas 

PUDiante dos resultados dessas invasões – e mesmo dos acampamentos nas portas dos quartéis –, é possível se prever um enfraquecimento de movimentos extremistas de direita ou o abrandamento da extrema direita no Brasil?

Josianne Cerasoli –  Neste momento não vejo possibilidade de abrandamento.  Esses momentos de grandes disputas não costumam levar a abrandamentos. O que pode produzir abrandamento no curto e médio prazo é se a sociedade, por meio de suas instituições, conseguir aplicar a lei. Fazer as instituições, de fato, funcionarem. Porque elas estão funcionando de uma forma seletiva, em certo sentido. Se eles continuarem a funcionar assim, vamos ter episódios de violência o tempo inteiro, porque se abre espaço para essa disputa de narrativas.

E acho que a gente ainda tem um fato novo nas democracias – e isso não é só no Brasil, mas no mundo todo: o fato de que a vida pública hoje é, também, virtual. E no mundo virtual é muito difícil você saber o que realmente está se passando. [Esse mundo virtual] nunca foi capaz de se somar de fato ao espaço público, onde deveria haver um debate público de ideias. Mas, hoje, do modo como funciona, [esse mundo] está totalmente fracassado. E é muito mais arriscado para a democracia, para o respeito a visões diversas.

É muito mais fácil no mundo virtual você ter nichos de consenso ou suposto consenso que estão completamente desligados da realidade. De repente eles explodem na realidade. E isso sem falar em fake news, em desinformação estrategicamente plantada e guiada a partir desses nichos. Muitos especialistas estão trabalhando nisso, mapeando as redes, mostrando que as pessoas estão em bolhas, como que escutando espelhos.

Aquela imagem do homem que tentou parar um caminhão com o próprio corpo é um exemplo. Virou meme, divertiu as pessoas. Os chargistas fizeram peças excelentes com esse drama. Mas confesso que não consegui rir em momento algum porque a imagem se mostra para mim como sintoma de uma grave doença política em nossa sociedade. Mostra como pensar por extremos nos desencontra completamente. Mostra apenas que ele sabia que poderia morrer a qualquer momento, talvez sem nem saber por que. Talvez heroicamente, para alguns, mas certamente como tragédia para a democracia.

E o que teria movido aquela pessoa a tentar parar um caminhão apenas com o próprio corpo? A resposta é: espelho. Essa dupla afirmação das próprias ideias que o extremismo estimulado nas redes sociais atualmente acentua dramaticamente. Ele passou tanto tempo ouvindo a mesma coisa, as mesmas vozes, os mesmos discursos. Esse radicalismo que a gente diz decorre do enfraquecimento do debate público de ideias, do esfacelamento do espaço público. E ocorre sempre em todo espaço que fica restrito a um único tipo de interpretação. Naquele momento, era a única coisa que ele achou que poderia fazer: ser um herói.

A gente vai conseguir fazer com que esses movimentos sejam cada vez menos frequentes à medida que a gente, de fato, viver uma democracia. E o que é democracia? São vozes diversas. Você não pode ter blocos monolíticos de opinião. Por isso eu acho que a Universidade tem um papel muito importante também neste momento.

Movimento alterou a rotina de pedestres e motoristas no entorno do acampamento
Movimento alterou a rotina de pedestres e motoristas no entorno do acampamento 

PU O mundo virtual é um paradoxo. Ao mesmo tempo que são amplas, abrangentes, globais, as redes sociais possuem inúmeros nichos e milhões de subgrupos. O que fazer para compatibilizar esses universos. É possível?

Josianne Cerasoli –  Elas terão de ser reguladas em algum momento. Não sei como será possível fazer isso. Mas tem muita gente tentando pensar estratégias, porque essas redes não são de fato globais ou desinteressadas, mas moldadas para funcionar a partir de circunstâncias continuamente mapeadas. O fato é que precisamos entender melhor como elas funcionam.

Hoje, por exemplo, eu tenho centenas de perfis que eu sigo no Twitter. E não tem como eu ver as centenas de perfis diariamente, mesmo que quisesse. Por conta disso, o que acontece? Acontece que o próprio mecanismo do Twitter organiza essa lista para mim. E o faz a partir de critérios completamente alheios à minha vontade, interpretando numericamente minha vontade a partir dos meus cliques e de minhas interações com conteúdos.

Resultado? Sempre estou cada vez mais exposta aos perfis e conteúdos com os quais mais interagi, ou seja, sigo olhando para o espelho. E eu preciso saber minimamente como isso se dá, para não ser tão facilmente manipulada. Eu, você, cada cidadão, a sociedade precisamos saber e regular. Da mesma forma que eu tomo uma decisão de pegar um ônibus. Se eu pegar determinado ônibus, vou para determinado lugar. E isso é conhecimento. Cada um tem de assumir o protagonismo sobre as decisões que se está tomando ali. Dá, por exemplo, para se programar o algoritmo da rede social para que ele tome outro caminho.

Por exemplo, ele poderia me mostrar sempre opiniões diferentes, em vez de me mostrar sempre o que eu supostamente quero ver. Tecnicamente é possível? Para a democracia, é desejável? A meu ver, é urgente que a sociedade assuma essa pauta. Somos nós, como sociedade, que devemos decidir quem é que vai regular isso e como. Atualmente quem regula isso é o lucro que o algoritmo pode produzir. E o algoritmo é programado para nos capturar emocionalmente. As coisas que são mais impactantes são as mais repetidas. E as impactantes levam à polarização. E a polarização nos leva à simplificação e aos extremismos, que nos levam a 8 de janeiro de 2023.

Imagem de capa
Audiodescrição. Foto: José Cruz, Agência Brasil. Em área externa, imagem frontal em plano geral do piso térreo da fachada de um prédio com frente construída em vidro e estruturas de alumínio, sendo que o local foi vandalizado e está com vidros quebrados e pichados com tinta branca. Entre as frases pichadas estão perdeu mané e lutei e venci. Há ainda cadeiras quebradas no local. Ao fundo, à direita da foto, 2 guardas armados em pé, e em primeiro plano, imagem desfocada, 6 soldados e 1 viatura. Imagem 1 de 1

twitter_icofacebook_ico

Atualidades

A honraria foi aprovada por unanimidade pelo plenário da Câmara Municipal de Campinas 

As instituições são avaliadas a partir de cinco critérios: qualidade do ensino, pesquisa científica, mercado de trabalho, inovação e internacionalização

O professor de Direito Internacional  da Unicamp Luís Renato Vedovato foi o convidado do videocast Analisa, uma produção da Secretaria Executiva de Comunicação

Cultura & Sociedade

O coral leva um repertório de música popular brasileira, com as canções da parceria Toquinho e Vinícius, e o samba paulista de Adoniran Barbosa

Para o pró-reitor, Fernando Coelho, a extensão deve ser entendida como “o braço político do ensino e da pesquisa”