Brasil vive democracia de fachada, diz Luiz Felipe Miguel

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“Se o golpe de 2016 marca uma ruptura do pacto democrático, os limites da democracia já eram uma realidade no Brasil em razão da desigualdade.” A avaliação é do cientista político Luiz Felipe Miguel, professor da Universidade de Brasília (UnB).

Miguel resgata eventos da história política recente do país que culminaram na ascensão de um regime autoritário que alimenta a violência política e aponta que só é possível entender as limitações à democracia no Brasil levando em consideração a sua posição periférica no capitalismo.

Na avaliação do cientista político, a posição do Brasil na economia mundial implica menos excedentes para amenizar os conflitos distributivos. Além disso, reforça Miguel, faz com que as classes dominantes sejam submissas à burguesia dos países centrais e se afirmem por meio da distância social em relação aos mais pobres. “A classe média se sente ameaçada não quando está tendo sua condição de vida piorada, mas quando os mais pobres avançam e se aproximam dela. Isso vale para a nossa classe dominante também”, explica.

Requisito elementar das democracias, a igualdade, dessa forma, não é alcançada, e grupos subalternos enfrentam muito mais dificuldade de terem suas demandas atendidas. Por isso, diz o professor, é preciso uma forte mobilização popular. “[O Estado] é dependente da classe capitalista para existir e, portanto, ele sempre responde de uma maneira mais automática aos interesses dela. No entanto, à medida que houve a organização popular, esse Estado foi obrigado também a responder em alguma medida aos interesses das classes populares”, afirma.

Qualquer que seja a composição do próximo governo, observa Miguel, para expandir o horizonte do regime democrático é preciso que haja pressão social por “uma ação estatal de proteção aos mais vulneráveis e de promoção dos interesses destes, o que é essencial para falarmos em democracia, sobretudo num país com esse quadro de desigualdades como o Brasil”. Só dessa forma seria possível romper com “um regime desdemocratizado, em que há a fachada da democracia, mas a vontade da maioria da população é impedida de antemão de ser efetivada no jogo político”.

Nesta entrevista à série Horizontes Contemporâneos, o professor ainda aborda a concentração midiática como fator limitante à democracia e analisa as movimentações recentes da política brasileira, como a ameaça à democracia que “alimenta a violência política que estamos vendo no Brasil nestas eleições”.

O cientista político Luiz Felipe Miguel: “É importante entender que a participação do eleitor comum deve se dar de forma coletiva” (Foto: Giulia Cassol-Sul21)
O cientista político Luiz Felipe Miguel: “É importante entender que a participação do eleitor comum deve se dar de forma coletiva” (Foto: Giulia Cassol-Sul21)

Um dos argumentos da sua análise sobre crise da democracia é que, nos países da periferia, a tensão entre capitalismo e democracia sempre foi mais evidente e impeditiva da construção desta última. Quais são os elementos para compreender essa tensão, em particular em países nessa posição, como é o caso do Brasil?

Luiz Felipe Miguel – São dois elementos principais. O primeiro é que a gente tem economias mais atrasadas e, portanto, o conflito distributivo se torna mais agudo, pois há menos excedentes. Se, nos países avançados, onde a democracia se constituiu historicamente, existia uma certa gordura que a classe dominante podia conceder para pacificar o conflito social – e a democracia funciona também para isso, pois o método democrático permite medir os ânimos da população e, portanto, calibrar as concessões que vão ser feitas para garantir a paz social –, em países como o nosso essa gordura é muito menor. Isso faz com que o conflito se torne mais agudo.

O segundo motivo, que também é econômico, mas tem um componente psicológico, é o fato de que a nossa classe dominante é dominada. Do ponto de vista global, ela é submissa às burguesias dos países centrais. É uma classe dominante incapaz de ter um projeto nacional – e, sobretudo, tem que reafirmar a sua posição social por meio da distância hierárquica em relação ao restante da sociedade.

É por isso que, no Brasil e em países como o nosso, há um apego tão grande a essas distâncias sociais. É um apego inclusive incorporado pela classe média.

Em que medida?

Luiz Felipe Miguel – A classe média se sente ameaçada não se ela está tendo sua condição de vida piorada, mas se os mais pobres avançam e se aproximam dela. Isso vale para a nossa classe dominante também. Ela precisa manter essa distância. Por isso qualquer redução da desigualdade acaba se tornando uma questão crítica, mesmo que seja uma pequena redução, como a que tivemos no Brasil nos governos petistas.

Apesar desses limites já estarem apontados devido à resistência das classes dominantes à redução de desigualdades, o golpe contra Dilma Rousseff marca uma ruptura com elementos básicos e procedimentais da democracia, como o respeito ao voto. De que forma esse episódio precisa ser resgatado na história política do país e como ele se reflete hoje?

Luiz Felipe Miguel – Em 2016, o golpe marca a ruptura do pacto da Constituição de 1988. Tanto se rompe a ideia de que o voto é o único instrumento que permite chegar ao poder quanto [Michel] Temer começa um processo acelerado de desconstrução da Constituição. Quando [Jair] Bolsonaro chega ao poder, em 2018 – e é importante lembrar que ele foi um filho imprevisto do golpe, não se pensava que aqueles que lideraram o golpe deixariam ele chegar à presidência, mas ele chega –, existe um agravamento.

Bolsonaro não apenas radicaliza medidas antipopulares do golpe contrárias aos interesses da classe trabalhadora, dos mais pobres e das periferias, como ele acrescenta uma agenda completamente ofensiva contra as liberdades civis, uma irracionalidade em muitos setores da gestão pública, como vimos durante a gestão da pandemia, além do aparelhamento do Estado pelo presidente da República e pelos seus próximos de uma maneira impressionante. Isso vai gerando uma série de inconformidades, inclusive entre aqueles que tinham apoiado o golpe.

O que a gente está vendo hoje é uma mudança da linha divisória. A linha divisória não é mais o golpe e, portanto, quem é a favor da recomposição do pacto nacional de 1988 e quem lutou para destruí-lo.

Que tipo de mudança?

Luiz Felipe Miguel – A linha divisória passa a ser Bolsonaro ou não Bolsonaro. Com isso nós reduzimos o horizonte da recomposição democrática do Brasil. Não adianta simplesmente tirar Bolsonaro e permanecer um sistema político que se tornou absolutamente invulnerável às demandas dos mais pobres, da classe trabalhadora, das periferias e assim por diante, que é o sistema que o golpe de 2016 projetou: uma blindagem que acontece tanto por medidas legais, desde a chamada autonomia do Banco Central, que na verdade o deixa nas mãos do sistema financeiro, até a PEC [Proposta de Emenda à Constituição] do Teto de Gastos. Há medidas legais que blindaram o Estado contra as reivindicações da maioria da população.

Há também um clima político em que parece que todos os agentes políticos devem aceitar que determinadas medidas não são possíveis. É uma espécie de pedagogia para fazer os agentes políticos, inclusive à esquerda, reduzirem seus horizontes. É isso que a gente vê, por exemplo, na alternativa que espero que dê certo, que é a vitória do Lula. O programa de Lula é um programa com um horizonte de transformação social mais limitado ainda do que aquele apresentado em 2003.

Li no Globo, por exemplo, que o vice dele, Geraldo Alckmin, defende a continuidade dos pontos principais da reforma trabalhista, defendendo a diminuição do Estado, e um programa que é o mesmo de Temer, [Henrique] Meirelles e [Paulo] Guedes. Então é isso: vamos ter um sistema político em que essas questões, que são centrais, não podem ser atacadas? Vamos ter o que eu vejo como um processo, então, de consolidação de um regime desdemocratizado, em que há a fachada da democracia, mas a vontade da maioria da população é impedida de antemão de ser efetivada no jogo político?

E nesse sentido, como você avalia os horizontes para a participação popular pensando no retorno de um governo de centro-esquerda?

Luiz Felipe Miguel – É importante a gente aprender com as lições da história recente e, às vezes, parece que não se aprende. Quando chega um governo de centro-esquerda ao poder, existe com frequência a tentação de proteger esse governo. A gente vê os movimentos sociais, sindicais e diferentes organizações coletivas vinculadas aos interesses múltiplos emancipatórios da sociedade civil com a preocupação de evitar que esse governo, que é um aliado, vamos dizer assim, seja fragilizado pelos ataques dos grupos mais conservadores.

Mas o problema é que a direita nunca para de fazer pressão sobre o governo, com todas as armas de que ela dispõe. Se os grupos de esquerda abrem mão de fazer pressão, é óbvio que esse governo vai se dirigir para a direita. É necessário que exista um esforço de ampliação da organização e da mobilização do campo popular a fim de ter força na sociedade para apresentar suas reivindicações e as suas demandas, independentemente da voz de comando de um eventual novo governo petista. O que a gente pode esperar de um governo Lula assumindo em 2023? Que ele vai ser um governo mais sensível a essas demandas caso elas sejam apresentadas. Acredito que o central, na compreensão inclusive da persona política do Lula, é que ele é um sujeito que está sempre medindo o clima e medindo as pressões. Então, se houver pressão para que ele avance, por exemplo, na recomposição dos direitos trabalhistas, que não é simplesmente desfazer a reforma, é reformar novamente no sentido de ampliar a proteção inclusive para os novos tipos de trabalhadores precarizados, ele vai ser sensível a isso.

Mas ele não vai enfrentar os interesses contrários se não perceber que existe força organizada contrária que sustente uma ação dessa. Acho que cabe, então, um processo de independência em relação ao governo, sem perder a interlocução, a fim de empurrá-lo para avançar o máximo possível na recomposição de um quadro social de uma ação estatal de proteção aos mais vulneráveis e de promoção dos interesses dos mais vulneráveis, que é essencial para a gente falar em democracia, sobretudo num país com esse quadro de desigualdades como o Brasil.

E quais seriam os limites, pensando na concepção de Nicos Poulantzas que você toma, do Estado como condensação de forças entre classes? Como pensar numa possibilidade de transformação social se o Estado capitalista é sempre mais permeável às demandas do capital?

Luiz Felipe Miguel – Sim, o Estado não é um Estado neutro. É um Estado capitalista. E esse adjetivo é fundamental para entender como ele funciona. Ele é dependente da classe capitalista para existir e, portanto, ele sempre responde de uma maneira mais automática aos interesses dela. No entanto, à medida que houve a organização popular, esse Estado foi obrigado também a responder em alguma medida aos interesses das classes populares.

Quando a gente pensa, por exemplo, na produção da legislação de proteção aos direitos dos trabalhadores, os capitalistas sempre foram contrários. E há vários exemplos, como a proteção ambiental, os direitos do consumidor, os direitos das mulheres trabalhadoras. Tudo isso enfrentou a oposição dos capitalistas, mas a organização e a pressão popular obrigaram o Estado a se acomodar para receber essas demandas.

Não é por acaso que, conforme a gente vê um refluxo da capacidade de pressão do campo popular, vai vendo uma reconfiguração das políticas e do próprio Estado de uma maneira que ele é cada vez mais invulnerável às pressões populares. Então precisa ter organização e pressão para abrir essas brechas.

É claro que esse Estado, a não ser que haja uma revolução que transforme a sociedade e coloque-a de pernas para o ar, vai continuar sendo um Estado capitalista no sentido de proteger a reprodução do capitalismo naquilo que há de mais essencial nele: a propriedade privada, o lucro por meio da exploração do trabalho alheio e assim por diante. Mas existe muita diferença entre uma economia capitalista em que a classe trabalhadora e outros grupos dominados foram capazes de garantir direitos e algumas garantias que reduzem a sua insegurança existencial e um capitalismo desregulamentado, em que a lei da selva, a lei do mercado e da vontade das grandes corporações funciona sem entraves.

Acho um pouco dramático que quando a gente fala de organização popular e que não basta ganhar uma eleição presidencial, frequentemente as lideranças dos principais partidos de esquerda traduzem isso como “temos que aumentar a bancada no Congresso Nacional”. Mas é preciso ir além dessa política institucional, é preciso ter força na sociedade. Porque, voltando ao que eu estava falando, a classe burguesa não precisa ter nenhum representante próprio no Congresso Nacional, embora tenha vários. Ela não precisa porque faz pressão por fora e de uma maneira muito efetiva. Precisamos ter essa capacidade de fazer pressão também.

Se formos olhar a história recente do Brasil, vemos como isso acontece, por exemplo, na própria transição da ditadura, entre o final dos anos 1970 e começo dos anos 1980. Embora a transição tenha sido pactuada para os setores de elite, a mobilização popular foi fundamental para que essa ela ocorresse e fez essa pressão por fora das instituições da ditadura. Se a gente limita a luta política a essa institucionalidade estrita, vamos limitar a luta a um terreno em que os dominados já entram na posição de dominados e têm condições muito adversas para modificar sua condição. É preciso ter luta social ampla, para além do espaço institucional.

Presidencialismo de coalizão, como apontado no seu último livro, Democracia na Periferia Capitalista: impasses do Brasil, implica a cooptação dos parlamentares pelo chefe do Executivo, como notamos atualmente no orçamento secreto. Como o senhor analisa esse esquema, pensando que dependendo da composição do Congresso pode ser difícil desarticular essa negociação?

Luiz Felipe Miguel – O presidencialismo de coalizão, que acabou entrando no vocabulário comum, é essa ideia de que os recursos do Poder Executivo, os recursos dos espaços de poder e gestão, de controle de dinheiro e, eventualmente, a corrupção pura e simples servem para compor uma maioria parlamentar num país em que as bancadas parlamentares são extremamente fragmentadas e pouco coesas.

Como não funciona aquele modelo tradicional em que você negocia com os partidos, o que o Executivo faz, colocando em bom português, é comprar o apoio de parlamentares para montar sua maioria. E como a gente tem uma elite parlamentar extremamente venal, oportunista e fisiológica, que o Luiz Inácio [Lula da Silva] celebremente falou que eram 300 picaretas com anel de doutor, e contou para baixo, provavelmente, isso vai continuar se configurando qualquer que seja o presidente eleito.

Acredito que com o Lula eles vão buscar apresentar uma fatura ainda maior, porque existe a memória recente da desestabilização do governo da Dilma e vai haver uma bancada de extrema-direita talvez menor que hoje, mas ainda assim muito significativa no Congresso Nacional, que vai servir para que esses parlamentares do chamado centrão tenham o poder de ameaça, de se aliar com a extrema-direita e vetar qualquer coisa que o governo Lula faça.

Com Bolsonaro, continuaria mais ou menos do jeito que está hoje. Mais uma vez, o que é necessário é aumentar a capacidade de pressão externa sobre os parlamentares todos. Essa é a questão. Algumas medidas que acabam sendo aprovadas quando existe um sentimento de que elas não podem ser deixadas de lado, quando os parlamentares entendem que eles vão sofrer eleitoralmente caso se coloquem contra. Isso vale tanto para medidas progressistas quanto para medidas retrógradas. Se a gente for capaz, e esse é um trabalho que não se faz da noite para o dia, de ampliar a educação política e a capacidade de interlocução entre representantes e representados, esse é um trabalho cotidiano feito pelas organizações, movimentos e sindicatos todo dia,  para que as pessoas sejam capazes de entender melhor a atuação dos representantes e cobrar deles se manifestando e se mobilizando.

Se não colocamos isso na equação, a gente vai permanecer pensando que o jogo é entre as bancadas do Congresso, entre os parlamentares com seus interesses individuais, o Poder Executivo e, por trás disso, o capital, que está sempre presente, que tem seus lobistas, que tem seus mecanismos de pressão permanente atuando.

​​​​​​​Para Miguel, “não adianta simplesmente tirar Bolsonaro e permanecer um sistema político que se tornou absolutamente invulnerável às demandas dos mais pobres” (Foto: Antonio Scarpinetti)
Para Miguel, “não adianta simplesmente tirar Bolsonaro e permanecer um sistema político que se tornou absolutamente invulnerável às demandas dos mais pobres” (Foto: Antonio Scarpinetti)

O que é preciso para haver o mínimo de equilíbrio?

Luiz Felipe Miguel – Precisamos ser capazes de organizar a pressão da sociedade civil porque eu concordo com a sua premissa: é extremamente improvável que a gente saia da eleição de 2 de outubro com um Congresso Nacional significativamente diferente do atual. Essa maioria de deputados que se jogam para um lado ou para o outro de acordo com o que sopra o vento, que não tem nenhum tipo de compromisso programático, essa ampla maioria – e eu gostaria de estar errado, mas é extremamente improvável que ela mude.

Ela só muda, mais uma vez, se a gente tiver um processo de politização da sociedade e do eleitorado, de ampliação da capacidade da sociedade de compreensão política. E isso se faz abrindo espaço de participação para as pessoas aprenderem política, se faz na sociedade civil, se faz nos movimentos, se faz nos sindicatos. Essa tarefa precisa ser levada a cabo.

E a forma como se estabelece essa relação entre Executivo e Legislativo, conforme sua análise, implica esse vínculo bastante distante entre eleitos e eleitores…

Luiz Felipe Miguel – É um mundo à parte. É um problema estrutural da forma de representação política que a gente tem. O que acontece é que o eleito, o representante, é retirado da vida comum e é especializado nessa tarefa de tomar decisões políticas. Essa especialização, como qualquer outro tipo de especialização, já reduz a capacidade de interlocução porque o representante vai possuir uma familiaridade, uma gama de ferramentas cognitivas para interpretar a realidade política que o eleitor comum nunca vai ter.

Por isso é importante entender que a participação do eleitor comum deve se dar de forma coletiva, não a interlocução “mano a mano”. E, ao mesmo tempo, uma característica da nossa forma de representação é que é uma representação multifuncional. Quer dizer, escolhemos um representante, como um deputado, e ele vai decidir por nós sobre todas as questões: política ambiental, trabalhista, educacional, de segurança, fiscal.

A nossa capacidade de supervisão da ação desse indivíduo fica muito complicada, porque são muitos temas. E na hora da eleição, temos voto para decidir se reelege o sujeito. Como a gente decide esse voto? Podemos achar que ele foi bem em políticas ambientais e mal em políticas educacionais, por exemplo, mas a gente só tem um voto, que é sim ou não, o que é muito pouco expressivo.

Existe esse distanciamento e é razoável pensar que, sendo a democracia representativa liberal organizada da forma que é, as pessoas têm dificuldade de acompanhar o trabalho dos seus representantes. Então seria necessário, se houvesse interesse, criar mecanismos para fortalecer essa capacidade de interlocução. Vai contra a nossa tradição, mas seria possível pensar em espaços obrigatórios de contato dos representantes com os representados cotidianamente a fim de evitar esse afastamento.

O que acontece é que, embora na teoria a gente tenha o diálogo, o que a gente vê é simplesmente a propaganda do representante e pouquíssima capacidade de reação dos representados. É um problema estrutural da forma como a representação política ocorre e que vai se agravando quanto mais incompetente politicamente é o eleitor médio, que no caso do Brasil é muito desinformado, despreparado, e carece muito das ferramentas cognitivas necessárias para compreender a política.

E que se informa em boa parte pela grande mídia, no Brasil concentrada nas mãos de poucas famílias.  Como essa mídia hegemônica tem atuado na história política recente do Brasil e quais os limites que essa concentração midiática impõe?

Luiz Felipe Miguel – O problema é que nós temos uma mídia extremamente concentrada no Brasil e muito pouco plural. Todos os veículos basicamente se alinham às mesmas causas, aos mesmos interesses e aos mesmos candidatos no processo eleitoral. Ao mesmo tempo, temos um padrão profissional jornalístico muito baixo. Quais são as duas maneiras de controlar um pouco essa concentração? Seria ter pluralidade. Na França, por exemplo, os três grandes jornais – Le Figaro, Le Monde e Libération – têm simpatias políticas pelo menos ligeiramente diversas. O Figaro é mais conservador, o Libération, mais progressista e o Le Monde, uma centro-esquerda aguada. Essa é uma forma de, pelo menos, garantir algum espectro de pluralidade de visões.

A outra forma é ter um padrão profissional muito forte, em que os profissionais da imprensa busquem realizar aquilo que se aprende nos manuais de jornalismo, e que a gente sabe que nunca se alcança, mas que é a busca pela objetividade diante do mundo. No Brasil a gente não tem nada disso. Temos uma imprensa toda alinhada ao mesmo lado e um padrão de ética profissional baixíssimo. Se resgatarmos o processo de preparação do golpe e, voltando atrás, em todas as eleições ocorridas, observam-se formas de manipulação da informação descaradas, realmente vergonhosas.

O que se viu no processo de preparação e deflagração do golpe contra a presidente Dilma foram os grandes meios de comunicação todos alinhados nesse processo. Eles foram cúmplices do golpe e enviesaram os seus noticiários a fim de criar a ideia de que o país estava à beira do colapso, de que o PT [Partido dos Trabalhadores] era o responsável pelo maior esquema de corrupção da história. Basta lembrar da imagem dos dutos de dinheiro atrás do William Bonner no Jornal Nacional, da capa da revista Veja que foi impressa para sair na véspera da eleição de 2014, das reportagens da Folha de S.Paulo sobre o barco de lata e os pedalinhos. Tudo foi amplificado de uma maneira absurda.

E coexistindo com as investigações…

Luiz Felipe Miguel – Existiu uma triangulação nesse processo com a participação dos elementos do aparelho repressivo do Estado, como juízes, procuradores e delegados da Polícia Federal, buscando motivos. Foi a definição da perseguição estatal. Eles não estavam investigando o Lula ou outro dirigente do PT por algum motivo, eles estavam investigando em busca de encontrar um motivo. Isso ficou muito, muito claro. Do outro lado, havia a grande imprensa. Um repercutia o outro. A imprensa fazia uma denúncia por isso, a PF pegava a denúncia para fazer uma investigação ou o procurador inventava alguma coisa e isso repercutia nas manchetes dos jornais.

O terceiro fator da triangulação foi a fábrica de fake news. A grande imprensa gosta de se colocar como oposição às fake news, mas, na verdade, criou fake news absurdas, como a invenção de que o filho do Lula é dono da Friboi, que Lula tem mansão no Uruguai, que [Fernando] Haddad tem uma Ferrari e por aí afora. Elas só foram capazes de entrar no universo mental de uma enormidade de pessoas porque as pessoas ligam a televisão e veem algo que já aponta nessa direção. Então existia essa triangulação, extremamente nociva porque foi se criando um universo de escolha política cada vez mais descolado da realidade, baseado em mistificações, mentiras e exageros.

O PT esteve no poder durante 12 anos e nesse período não foi capaz de avançar na questão da democratização da mídia. Isso é um tabu na política brasileira. Os meios de comunicação foram muito eficazes porque hoje, se você fala em democratização da mídia, eles traduzem como se fosse uma tentativa de censura estatal, quando na verdade a ideia de democratização da mídia é de ampliação da pluralidade de vozes. Não é censura estatal. É, na verdade, uma tentativa de furar a censura privada que os meios de comunicação corporativos impõem.

E, para terminar, as novas tecnologias, que eram uma promessa para a democratização, mostram que também operam de uma maneira muito difícil. A verdade é que a oferta tão desmesurada de informação na internet vai gerando bolhas. E, de alguma maneira, essas bolhas se tornam inexpugnáveis. Fica mais difícil furar esses bloqueios e eu ainda acho que a melhor maneira para furar esses bloqueios é com os meios de comunicação tradicionais. Então democratizá-los continua sendo essencial.

Outro protagonista do golpe foi o Judiciário. Como o senhor analisa o papel dele desde então, considerando também a atuação do STF atualmente?

Luiz Felipe Miguel – O Judiciário foi cúmplice do processo de derrocada da democracia brasileira. Assistimos a um Judiciário que foi entre negligente em relação ao e participante do golpe contra Dilma e não cumpriu suas funções. Logo depois da deflagração do golpe, começam a acontecer ruídos na coalizão golpista e o Judiciário se dividiu em dois setores. Um setor mais lavajatista, que é o setor do [ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz] Fux, e o outro setor mais vinculado à elite política mais tradicional, ao próprio Temer, que é o setor do [ministro do STF] Gilmar Mendes. Começam a acontecer conflitos internos no Supremo. Com a chegada de Bolsonaro, a maior parte do Supremo se opõe a uma parte do projeto dele.

De que forma?

Luiz Felipe Miguel – Se observarmos as decisões do Supremo ao longo desse tempo, não houve provavelmente nenhuma para romper os retrocessos em termos dos direitos trabalhistas e os retrocessos em termos de desnacionalização da economia e de fragilização do Estado. O Supremo não agiu contra isso de forma alguma, estava alinhado a isso. Mas, no que se refere a determinadas liberdades e direitos liberais, como a liberdade de expressão, questões vinculadas à diversidade sexual e algumas questões vinculadas aos direitos das mulheres, aí o Supremo se opôs a Bolsonaro.

O Supremo também tem reagido ao fato de que o Bolsonaro se vê incomodado com a ideia de divisão de Poderes, como é próprio dessa formulação autoritária que ele representa. Por isso ele tem sempre atacado os controles do Supremo quando ocorrem. São os ataques ao STF que levaram as reações mais fortes do Supremo. Isso é preocupante porque quando o Bolsonaro fez ataques às universidades, a organizações da sociedade civil, a reação do Supremo foi tímida. Quando o ataque é contra ele, o Supremo reage de uma maneira mais dura, o que mostra um corporativismo falando mais alto do que a vontade de proteger a Constituição.

Que avaliação o senhor faz da atuação do STF neste momento?

Luiz Felipe Miguel – Sobretudo na figura de Alexandre de Moraes [ministro do STF], o Supremo parece decidido a garantir a realização das eleições. Eu não sou jurista, mas eu acho que a questão é muito mais política do que jurídica. Por exemplo, essa ação agora contra os empresários bolsonaristas golpistas. Politicamente ela é absolutamente necessária para coibir a agitação golpista. É necessário responsabilidade. Não são oito sujeitos quaisquer falando no boteco. São oito empresários, gente rica e influente, com milhões de seguidores, falando em preparar um golpe. Pode ser que isso não resulte em um golpe, mas o resultado líquido disso é tumultuar a possibilidade de que o próximo presidente governe, porque estão agitando uma massa para dizer que o próximo governo não deve ser considerado legítimo.

Esse pessoal, Luciano Hang e os outros, estão de fato ameaçando a possibilidade de retomada da democracia no Brasil. Esse tipo de ação é importante para coibir e mostrar que isso tem consequências, porque um dos grandes problemas nossos é que as ações da extrema-direita raramente têm consequências. Mas isso não redime o Supremo e o Judiciário de tudo que fizeram de uns tempos para cá. Eles têm um saldo muito negativo no que se refere ao compromisso em defesa da Constituição e da democracia.

Seguindo na questão das movimentações por um golpe, o senhor acredita que há possibilidade de algo do tipo ocorrer?

Luiz Felipe Miguel – Neste momento acho que um golpe é improvável. Manifestações das últimas semanas mostraram que para vastos setores das nossas elites, inclusive da nossa burguesia, é mais interessante ter uma normalização democrática controlada, ou seja, a gente volta a ter a fachada de democracia funcionando e eles continuam com recursos suficientes para bloquear determinadas ações com um intuito mais igualitário. E porque o principal agente do golpe, que seriam as Forças Armadas, não têm a capacidade de liderança interna, até o momento, para que isso ocorra.

O Exército é uma espécie de centrão fardado. Eles ficam parasitando o Estado, ganhando suas vantagens, mas querem fazer isso com o menor custo possível. Não consigo ver, até o momento, uma capacidade de iniciativa para dar um golpe. O próprio Bolsonaro tem mostrado um certo desânimo com um golpe em algumas declarações feitas. Mas, ainda assim, a agitação golpista é muito negativa.

Em que sentido?

Luiz Felipe Miguel – Primeiro porque, de forma imediata, ela alimenta a violência política que estamos vendo no Brasil nestas eleições. A retórica do golpe, que é a retórica do bem contra o mal e que Bolsonaro decidiu adotar na campanha, por exemplo no discurso dele quando foi indicado na convenção do PL [Partido Liberal], que parecia um discurso de quem estava iniciando uma guerra civil e não uma campanha, alimenta uma agressividade.

Os bolsonaristas são levados a ver essa batalha épica do bem contra o mal. E em que, por ser uma batalha, todas as armas são legítimas. Isso alimenta a violência política. A médio prazo, serve para ter uma massa mobilizada muito radicalizada para tumultuar a ação de um novo governo. E acho que para Bolsonaro é algo pensado, porque ele confia que a existência dessa base é o que pode impedi-lo de ir para a cadeia depois de deixar a Presidência. Com uma ideia de que, confiando na prudência com que o PT no governo sempre se colocou e que avaliariam que mandá-lo para o lugar que é o lugar dele por tudo que fez, a cadeia, geraria uma convulsão no país por conta dessa base radicalizada.

Então a agitação golpista tem que ser coibida, porque ela tem efeito só por existir, mesmo que a possibilidade de golpe hoje, e não quer dizer que isso não possa mudar, seja pequena. O efeito não é só um golpe, é o aumento da violência política e a redução da capacidade de governo de um possível sucessor de Bolsonaro.

E o senhor avalia que os processos contra Bolsonaro vão ser instaurados se ele não for reeleito?

Luiz Felipe Miguel – Deveriam, mas eu não apostaria nisso porque existe sempre uma tendência de pôr uma pedra em cima das coisas, o que é muito ruim porque, se as ações não têm consequências, é mais provável que elas se repitam.

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Para Miguel, a posição do Brasil na economia mundial implica menos excedentes para amenizar os conflitos distributivos (Fotos: Jorge Maruta/Giulia Cassol-Sul21)

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