Pesquisadores indígenas pautam o reconhecimento e a necessidade dos seus saberes na academia

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Teve início na tarde desta quarta-feira (28), o pré IX Encontro Nacional dos Estudantes Indígenas (ENEI). Com o tema “Ancestralidade e contemporaneidade: Tecendo histórias a partir das epistemologias, cosmologias, ontologias e vivências dos povos indígenas”, o IX ENEI ocorrerá em dois momentos. O pré-encontro, que vai até o dia 30 de julho, acontece de forma virtual, antecipando debates que irão ocorrer no evento presencial, previsto para 2022 na Unicamp. 

O ritual do grupo Awê Heruê Pataxó, da Aldeia Boca da Mata (Bahia), abriu o pré-encontro. “É com a força do espírito da nossas ancestralidades, do nosso encantado, dessa linda dança e ritual, que damos continuidade ao evento”, disse o estudante de Engenharia Elétrica da Unicamp Arlindo Baré, um dos organizadores do evento e responsável por chamar a mesa de abertura, composta pela coordenadora do Diretório Central dos Estudantes Indígenas (DCEIN) da Unicamp, Luma Baré; coordenadora da Comissão Nacional dos Estudantes Indígenas (CNEI), Viviane Kaingang; coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) pela região sul, Kretã Kaingang; pela co-deputada do estado de São Paulo e doutoranda na USP, Chirley Pankará; e pelo reitor da Unicamp, Antonio José Meirelles.

Após as saudações iniciais, o evento prosseguiu com a mesa temática intitulada “Metodologia Científica e Povos Indígenas: produção do etnoconhecimento”, com mediação do estudante da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Diego Pankararu. Os convidados para abordar o assunto foram os intelectuais e ativistas indígenas: Edson Kayapó, professor do Instituto Federal da Bahia (IFBA); Aline Kayapó, graduanda em Direito pela UNIFTC, e Gersom Baniwa, professor da Universidade Federal da Amazônia (UFAM).

audiodescrição: print da tela do evento virtual do encontro nacional dos estudantes indígenas
Primeira mesa temática do pré ENEI contou com referências intelectuais e ativistas indígenas, com mediação de estudantes da Unicamp e UFSCar

“A academia precisa muito mais dos povos indígenas do que nós, povos indígenas, da academia”

Edson Kayapó, escritor, doutor em Educação e pós-doutor em história e historiografia da Amazônia, compartilhou primeiramente um pouco de sua trajetória acadêmica, que teve como marco o seu ingresso na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) no ano de 1991. “Naquele tempo estavam muito distantes as políticas de cotas e as vagas específicas. Estávamos num momento pós promulgação da Constituição de 1988 e ainda na frente de batalhas para conquistar alguns direitos. Obviamente que os dias atuais não são tranquilos, os nossos parentes e parentas que estão nas universidades enfrentam muitas dificuldades e muitos desafios, mas é inegável que temos alguns avanços”, observou. 

Estes avanços, segundo o professor, ainda são menores do que se gostaria, mas é necessário, sem perder de foco a ancestralidade e o pertencimento, a articulação política e técnica para que não escorram pelos dedos. Para Edson Kayapó, é preciso chegar nos centros de ensino e de pesquisa e se apropriar do método científico para que seja possível uma crítica que conduza a uma superação dos problemas da própria academia. Dessa forma, será possível repensar a forma de produção do conhecimento. “Isso não pressupõe que vamos aderir à ciência e ao método científico do jeito que está. Na verdade, temos que fazer a crítica a este método no sentido de pensar que a verdade pode ser percebida e observada a partir de várias perspectivas, inclusive a partir das perspectivas dos nossos povos, que não é uma perspectiva única”. 

audiodescrição: print da tela do evento virtual mostrando o professor indígena edson kayapó
Professor do IFBA, Edson Kayapó, pontua a necessidade de um compartilhamento de conhecimentos

Propondo a interculturalidade crítica, ele questionou por que a ciência rebaixou os saberes indígenas, apontando o fato de que, no século XIX, cientistas defenderam a inferioridade e incapacidade dos povos indígenas de acompanhar um progresso nacional. Essa visão, apontou, alinha-se ao epistemicídio, conceito de Boaventura dos Santos para designar o extermínio de saberes locais trazido pelos europeus. “Os europeus chegaram aqui com o discurso de que eram superiores do ponto de vista físico, biológico, cultural e do conhecimento e impuseram sobre nossos povos e antepassados tudo o que sabiam como uma verdade absoluta”. A partir dessa compreensão, disse, é possível superar essa visão, reivindicando um compartilhamento de conhecimentos e um diálogo respeitoso.

O professor ainda apontou que há uma crise econômica, social e ambiental no mundo, a qual vem implicando em uma guerra contra a Terra. A crise, refletiu, também passa pelo que é pensado nos grandes centros de pesquisa e ensino, que não têm conseguido produzir conhecimentos que façam frente a problemas como a devastação ambiental e as desigualdades. Dessa forma, as universidades têm muito a aprender com os povos indígenas. “É preciso inverter o sentido: a academia precisa muito mais dos povos indígenas do que nós, povos indígenas, da academia", afirmou.

“Não podemos aceitar que nosso saber seja reduzido à irracionalidade”

“De que forma vamos nos colocar diante da comunidade acadêmica?”, indagou em sua fala Aline Kayapó, estudante, pesquisadora, escritora e ativista. Ela lembrou que as ações afirmativas voltadas aos indígenas são fruto de muita luta do movimento. No entanto ainda há muito a conquistar no espaço acadêmico, já que as universidades não foram construídas pensando nos povos indígenas. 

Reflexões sobre a noção de imparcialidade científica e sobre o desrespeito ao conhecimento indígena foram trazidas por Aline Kayapó. “É importante dizer que não podemos nos colocar como sujeitos de pesquisa de forma imparcial, não temos esse privilégio de ser imparciais. Então os nossos referenciais teóricos na maioria das vezes não são respeitados”.

audiodescrição: reprodução colorida da tela do evento, com a pesquisadora Aline Kayapó na tela
Pesquisadora e ativista Aline Kayapó evidencia a necessidade da construção de uma nova categoria de conhecimento: o “conhecimento originário ancestral”

Enfrentar a individualidade e a anti-coletividade, nesse sentido, é uma necessidade para ela. “Eu aprendi que somos administrativamente brasileiros, politicamente indígenas, mas cada um tem seu pertencimento de fato. A dita sociedade acadêmica brasileira é isso, é como se fosse os brasileiros e nós, dentro de um espaço que não foi criado nem pensado para nós. Mas estamos lá e através da nossa luta, da nossa força e do nosso movimento conseguimos ganhar espaço na lei que garante que sejamos respeitados”.

A construção de epistemologias baseadas no conhecimento indígena foi um horizonte colocado por Aline Kayapó. “Não é porque o nosso saber não é considerado ciência que ele é irracional e que a gente vai permitir que nos reduzam a nada”. Através da reflexão sobre o que é racional e irracional, também questionou onde está a racionalidade, na ciência, que coloca o homem como centro de tudo.

A estudante e ativista também indicou a necessidade de que sejam pensadas novas perspectivas de análise metodológica e uma nova categoria de conhecimento, o “conhecimento originário ancestral”. “É importante que a gente produza um conhecimento científico que caminhe de acordo com nossas epistemologias ancestrais e que não fira a nossa dignidade. Isso é metodologia e para isso é necessário coragem. Coragem para pensar numa forma de publicação, de uma nova categoria de análise do método. Não podemos aceitar que nosso saber seja reduzido à irracionalidade”. 

“A universidade e a ciência são parte da estratégia coletiva de luta” 

Para Gersom Baniwa, um dos precursores da educação indígena no Brasil, ao se falar de metodologia científica e de produção de etnoconhecimento, é importante ter como ponto de partida a ancestralidade. “O que é ancestralidade? São as referências culturais, as tradições, saberes, valores, modos de vida e espiritualidade que herdamos dos nossos antepassados” explicou. "Dessa forma, a ancestralidade não é uma utopia nem algo irreal".

O professor, graduado em Filosofia, mestre e doutor em Antropologia Social, situou o ingresso dos indígenas nas universidades nas últimas duas décadas, afirmando que gradualmente a primeira fase de estranhamento e tensões vai sendo superada. “Não significa que tenham passado, eu diria que tendem a se manterem ou até se amplificarem, dependendo do que nós indígenas vamos ditar como ritmo uma vez dentro da universidade. Mas essa questão da passagem dos primeiros estranhamentos e tensões cada vez mais vai consolidando nosso espaço na universidade”.

A partir dessa primeira fase, frisou, é preciso começar a consolidar as contribuições indígenas para o mundo acadêmico, cujo acesso pode ser uma estratégia de defesa da garantia coletiva dos direitos indígenas. “Temos um número que vai crescendo de mestres, doutores, graduados, gestores, técnicos e especialistas. Temos que pensar em inovações, transformações, revoluções na academia”.

audiodescrição: print da tela do evento virtual mostrando o professor indígena gersom baniwa
""Não há nenhuma diferença entre a importância, o valor, o significado da ciência dos brancos e das ciências indígenas", afirma o professor Gersom Baniwa

E quais seriam essas contribuições? De acordo com Gersom Baniwa, são elas: reconhecimento e uso de línguas indígenas; afirmação, valorização, divulgação e promoção dos sistemas e regimes de conhecimento indígenas; pesquisas em coletividade, e valorização da oralidade. Mais do que crítica, disse, é preciso dar a contribuição para que as universidades atendam às demandas e às realidades indígenas. Isso pode ser feito afirmando, praticando e vivendo o conhecimento, as culturas, as línguas e as tradições indígenas. 

“Ao fazer isso estaremos concorrendo, promovendo, disputando espaços, nossas formas de produzir, transmitir, socializar e usar nossas ciências e conhecimentos. Temos que ter em mente um caminho pedagógico, que é metodológico”. Isso passa por conhecer bem o mundo do branco, mas não pode ser em detrimento da realidade indígena. “Com isso, vamos estar amplificando, fortalecendo e complementando os nossos sistemas de conhecimento”.

Não se deixar encaixar pela academia, por exemplo realizando trabalhos individualizados a partir de dados indígenas que são coletivos, é uma das perspectivas levantadas pelo docente, que também indicou a necessidade de não cair do dualismo do branco versus indígena, do conhecimento versus o tradicional. "Não há nenhuma diferença entre a importância, o valor, o significado da ciência dos brancos e das ciências indígenas. [...] A universidade e a ciência são parte da estratégia coletiva de luta”. 

Estudantes indígenas na Unicamp

O reitor da Unicamp, Antonio José Meirelles, na abertura do evento, destacou a importância da política de inclusão para estudantes indígenas na Universidade. Apesar das dificuldades impostas pela pandemia, o professor destacou que houve mais de 1.500 inscritos no Vestibular Indígena realizado em 2021. Após o terceiro ano de ingresso específico, a Universidade conta hoje com aproximadamente 220 estudantes indígenas. 

A presença de estudantes dos diversos povos indígenas, segundo o reitor, é de grande importância para a Unicamp. “É uma forma da gente renovar a nossa agenda de formação de pessoas, a nossa agenda de pesquisa, é uma forma de enriquecer a nossa comunidade de outras origens com a sabedoria, com os conhecimentos, com as tradições, com a cultura dos povos indígenas. Isso é cada vez mais importante para a nossa Universidade”.

O professor também criticou a proposta do marco temporal (PL 490/2007), que tramita no Congresso Nacional, e que pretende que os povos indígenas só possam reivindicar demarcação de terras em locais onde estavam em 1988. Ao fixar o ano, a proposta desconsidera qualquer ocupação anterior e ignora a violência contra os povos indígenas, que levou diversas comunidades à expulsão dos seus territórios.

“Na luta contra o marco temporal, vocês terão sempre a Unicamp ao lado de vocês, batalhando por aquilo que foram as grandes conquistas do passado recente, como a Constituição de 1988 e os direitos que garantiu aos povos indígenas. Essa é uma batalha que sem dúvida é de vocês, mas que também é nossa. Nós estaremos ao lado defendendo os direitos dos povos originários, defendendo a manutenção da demarcação das terras indígenas em nosso país”, afirmou.

IX ENEI

O pré IX Encontro Nacional dos Estudantes Indígenas (ENEI) segue até o dia 30 de julho. No dia 29 de julho, a programação conta com ritual de abertura Waopari Mahsã (Gente de Karriçu), lançamento da arte oficial do evento e mesa temática “Movimento Indígena, formação política e Autodeterminação”. Participam da discussão Chirley Pankará (codeputada estadual pela mandata ativista no estado de SP e doutoranda na USP), Kretã Kaingang  (APIB), Almir Suruí (Parlaíndio). A transmissão ao vivo começa às 15h e pode ser acessada em: https://youtu.be/4iHrntmt3MQ

No dia 30 de julho, o ritual de abertura será realizado pelo OZ Guarani e haverá a mesa temática “Contexto da Educação Superior Indígena, Quilombola e Permanência”. Participam convidados da Comissão Nacional do IX ENEI. O encerramento do pré-evento contará com fala de Djuena Tikuna, cantora e primeira jornalista Tikuna do estado do Amazonas. A transmissão ao vivo também tem início às 15h, através do link: https://youtu.be/dHgRSRsqJCY

A programação completa e outras informações podem ser acessadas no site enei.ic.unicamp.br. Os estudantes também buscam apoio financeiro para a realização do encontro presencial. Saiba como contribuir aqui

Imagem de capa
audiodescrição: montagem com três fotografias coloridas dos pesquisadores indígenas aline kayapó, edson kayapó e gersom baniwa

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