Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

Nove meses de pandemia, a incrível resposta das ciências e um alerta

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Em março deste ano publiquei uma coluna sobre a mobilização da ciência em tempos de Covid-19, logo após sua decretação como pandemia global pela Organização Mundial da Saúde. Naquele texto[I], agora já longínquo, comento rápida e resumidamente como a ciência, vista como atividade humana, se reorganiza e se mobiliza em face a uma emergência dessa magnitude em busca de respostas para enfrentar, mitigar e, finalmente, superar a crise, além de entendê-la, para estarmos preparados para as eventuais futuras pandemias. Para o enfrentamento e mitigação muitas respostas foram encontradas. Para a superação, por meio de vacinas, por exemplo, a ciência ainda trabalha para validar as várias respostas que ela mesmo propõe. O entendimento segue, mas ainda é incompleto, o Sars-Cov-2, continua revelando surpresas.

A incrível resposta da ciência

No começo do ano eu exemplifiquei a mobilização com um conjunto de dados muito simples: o número de artigos publicados sobre o assunto. No caso, artigos validados pela comunidade científica e que por isso aparecem em revistas indexadas (porque atendem a um conjunto de critérios necessários para sua credibilidade) em uma prestigiosa base de dados, a Web of Science. Vale lembrar que essa base é um recorte apenas, não inclui tudo que é validado, indexado e de credibilidade. Mesmo assim, fornece um bom panorama e o gráfico de março, para artigos com o tópico coronavírus ao longo dos anos é reproduzido aqui.

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O avô do atual coronavirus foi batizado assim na década de 1960, depois que foi visto em detalhes, através de um microscópio eletrônico por June Almeida em 1965[II]. O gráfico mostra os artigos sobre o vírus a partir de 2000. Em março comentei que “os aumentos de produção científica em anos anteriores, 2002, 2012 e 2015, devem-se a surtos e epidemias relacionados a cepas mais antigas do Coronavírus: Sars, Sars-Cov e MERS, respectivamente. Ainda estamos no começo de 2020, mas uma projeção simples e subestimada para este ano (barra laranja) indica o enorme esforço e engajamento da ciência para enfrentar a atual pandemia. Artigos normalmente demoram para ser publicados, mas esse ritmo também se modifica na crise”.

Projeções assim, como a dessa barra laranja, são sempre imprecisas, mas sete meses depois o erro dessa projeção se verifica impressionante. A mobilização foi muito maior do que poderíamos imaginar, como mostra o gráfico atualizado em 12 de outubro. A projeção inicial foi superada por mais de uma ordem de grandeza: a barra laranja, indicando o número de artigos publicados em 2020, ainda é incompleta, pois 2020 ainda não terminou. O número exato auferido em 12 de outubro é 19.064. Em 20 de outubro, somente oito dias depois, já são 20.231, cerca de 270 a mais.

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Esses números sugerem que a mobilização da ciência em relação a um problema que afeta a todos, realizada de modo metódico e sistemático, mostra-se muito maior do que a mobilização de desinformação contra a ciência. Somando o tópico Coronavirus às palavras-chave Covid-19 e Sars-CoV-2, chega-se a 46.971 artigos, que equivale a toda a produção científica de um país como a Suécia em todas as áreas do conhecimento em 2019.

O panorama dessa mobilização não se esgota nesses números, pois podemos nos perguntar sobre as áreas de pesquisa mais intensas que apresentam esses resultados. No ano de 2016, em resposta à última epidemia relacionada a um coronavírus, os maiores números de contribuições foram nas áreas de Virologia, Doenças infecciosas, Microbiologia e Imunologia. Saúde Pública ocupava apenas o sétimo lugar nessa lista e Medicina Geral apenas o décimo. Em 2020, Medicina Geral pulou para o primeiro lugar e, de fato, baseado na ciência aprendemos em poucos meses a cuidar melhor dos doentes, os índices de letalidade diminuíram significativamente em poucos meses e não por causa de remédios milagrosos[III]. Hoje, a área de Doenças Infecciosas aparece novamente em segundo lugar, como em 2016, mas Saúde Pública agora pulou para o terceiro lugar na lista. Esses dados indicam claramente como a ciência se organiza para enfrentar os problemas da sociedade. A lista revela ainda a mobilização multidisciplinar, da Engenharia Elétrica à Sociologia, passando por Administração e Ciências dos Esportes.

O alerta à comunidade científica

Uma área do conhecimento com pouca presença na mobilização de epidemias anteriores chama a atenção: a Farmacologia, praticamente ausente nos esforços em 2016 e quinta colocada em 2020. Uma análise mais detalhada é necessária, mas uma hipótese é tentadora, que coloco aqui, afinal trata-se de uma coluna e não um artigo científico e podemos, portanto, especular. É notória a já longa lista de “medicamentos milagrosos”, encabeçada pela hidroxicloroquina, anunciados por quem pouco ou nada entende de ciência ou, muitas vezes, a negam ostensivamente. Não é à toa que o tópico “hydroxychloroquine”, medicamento antigo para outras coisas, recebeu a atenção de mais de 1300 artigos até agora, contra uma média de 400 anuais em anos anteriores, ainda segundo a Web of Science. É tarefa da ciência verificar e desmentir com rigor, se for o caso, anúncios de produtos ou ações que se revelam prejudiciais à saúde pública. O que revela o conjunto de artigos científicos indexados sobre esse tópico? Apesar dos inúmeros estudos demonstrando sua ineficácia, quando não potencial dano, artigos científicos continuam a ser publicados, incluindo editorias das revistas, que seguem a discussão.

O infelizmente famoso artigo do grupo liderado por Didier Raoult, que abriu essa caixa de Pandora ao ser amplamente disseminado antes de ser avaliado[IV], revelou-se inconsistente cientificamente, mas foi oficialmente publicado em julho de 2020. E é o artigo sobre o tema que mais recebeu citações, 999 em poucos meses. O segundo artigo mais citado é de um grupo chinês, publicado em março, que aponta para o milagre que não existe. Em nono lugar está o da revista The Lancet, trabalho totalmente inadequado e, por isso retratado (o aviso de que o artigo foi cancelado está lá). O tristemente famoso trabalho francês sofreu ressalvas dos editores da revista onde foi publicado, mas não foi retratado. Afinal são 999 citações (por enquanto) e isso certamente aumentará seu “fator de impacto”, índice de prestígio para uma revista, que se tornou altamente pernicioso[V]. Qual é a responsabilidade dos editores: para com a revista ou com a ciência?

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A base de dados Web of Science permite termos o belo panorama descrito no início desta coluna e é útil para outros fins de escrutínio da atividade científica. No entanto, muitos colegas “colocam suas mãos no fogo” por ela, usando-a para comparações e avaliações indevidas. O problema é que, da mesma forma que alguns editores estão mais preocupados com suas revistas, os responsáveis pela base talvez estejam menos preocupados com a ciência e sua integridade. A palavra-chave Covid-19 também revela que ao colocar a mão no fogo não são percebidas as revistas pseudocientíficas abrigadas nesse, para muitos, altar da ciência. É o caso da revista Journal of Alternative and Complementary Medicine, com bom fator de impacto e seus artigos em defesa do uso do Ayurveda na profilaxia da Covid-19, por exemplo[VI].

Torna-se urgente a disseminação do Manifesto de Hong Kong de 2019[VII] pela integridade da ciência, sua abertura, transparência, rigor e confiabilidade, valorizando as atividades científicas como um todo, não só os artigos. Os princípios resumidos do manifesto aparecem (em inglês) no flagrante fotográfico durante uma palestra e que também ilustra esse texto. Na divulgação da ciência, seus princípios também precisam ser disseminados para evitar parte dos não poucos problemas que enfrentamos.

 

 

Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.

 

 

 


[I]https://www.unicamp.br/unicamp/index.php/ju/artigos/peter-schulz/mobilizacao-da-ciencia-em-tempos-de-covid-19

[II] A história de June Almeida merece um destaque à parte: http://coronavirus.butantan.gov.br/ultimas-noticias/june-almeida-a-doutora-que-nao-terminou-o-ensino-medio-e-identificou-o-primeiro-coronavirus

[III]https://www.unicamp.br/unicamp/index.php/ju/artigos/luiz-carlos-dias/conhecimento-cientifico-sobre-pandemia-cresce-rapidamente-e

[IV]https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/do-acesso-aberto-ciencia-caixa-de-pandora

[V]https://lareviewofbooks.org/article/fraud-by-numbers-metrics-and-the-new-academic-misconduct/

[VI]https://www.liebertpub.com/doi/pdf/10.1089/acm.2020.0129

[VII]https://osf.io/m9abx/

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