Na despedida de Arnoni

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Deixou-nos neste domingo o professor titular do IEL-Unicamp, Antonio Arnoni Prado (São Paulo, 21/12/1943 – Paulínia, 11/09/2022). Falar de sua trajetória como um dos grandes intelectuais brasileiros de sua geração exigiria muito mais tempo e espaço. Nestes tempos sinistros de barbárie crescente, no Brasil e no mundo, Arnoni foi um belo exemplo do que um professor empenhado, um pesquisador incansável e um crítico radical do status quo pode e deve fazer para que a Universidade pública seja um local imprescindível e incondicional na defesa dos valores que a vida humana, tantas vezes esquecida de si mesma, exige de nós aqui e agora. Sabia ele, sempre, que a liberdade considerada em termos absolutos ou abstratos resulta no mais das vezes em opressão e injustiça social. Que a igualdade é um desafio inadiável em países tão tragicamente desiguais como o nosso. E que a solidariedade, para além de todas as crenças e ritos que possam convocá-la ou exibi-la, deve ser um compromisso permanente de quem escolheu conscientemente nossa profissão.

Composição com duas fotos de um homem branco que aparece do pescoço para cima. Ele é branco e tem o cabelo grisalho.
Trabalho de Arnoni sobre a Semana de 22 e o Integralismo recebeu o primeiro prêmio da Biblioteca Nacional na categoria Ensaio Literário (Fotos: Antoninho Perri)

Por tudo isso, esse grande amigo nunca se deixou seduzir pelo canto de sereia de uma academia de brilhos vãos, sorrisos hipócritas ou arrogâncias medíocres. Foi um professor universitário de ampla visão e ética rara, sem descurar de sua ironia fina, muitas vezes mal compreendida, mas extremamente afetiva para quem convivia um pouco mais com sua inteligência, a começar de seu milhar de estudantes ainda no ensino médio, em São Paulo, e depois na Unicamp, na graduação e pós-graduação do IEL, ao longo dos 33 anos de sua docência entre nós. Melhor aqui seria convocar o testemunho de tantas e tantos colegas técnico-administrativos que o adoravam não por acaso, porque Arnoni exalava humanidade desinteressada em cada gesto, atributo talvez mais conforme àquela condição que somente verdadeiros mestres alcançam.

Quando ele se aposentou, em 2012, pudemos homenageá-lo em encontros no IEL, quando se destacaram dois livros essenciais de sua inspirada autoria: Itinerário de uma falsa vanguarda: os dissidentes, a Semana de 22 e o Integralismo (Ed. 34, 2010), na verdade uma versão integral e revista de sua tese de doutorado em letras na USP, em 1980, e que, a justo título, recebeu o primeiro prêmio da Biblioteca Nacional, na categoria Ensaio Literário, edição 2010; e a organização primorosa desse Lima Barreto: uma autobiografia literária (Ed. 34, 2012), obra que somente a íntima convivência que teve, por meio século, com os escritos do autor de Policarpo Quaresma, foi capaz de gerar. A propósito, lembremos que Arnoni foi pesquisador pioneiro, na universidade brasileira, dos estudos de Lima Barreto, desde seu mestrado, em 1975, publicado como LB: o crítico e a crise (Ed. Cátedra, 1976). Ele gostava de nos reportar que, ao apresentar sua escolha de tema/autor para seu então orientador, Antonio Candido, ali por volta de 1971, este lhe retrucou: “Ainda conheço mal Lima Barreto. Se você me der um ano de prazo, podemos, sim, levar adiante seu projeto. Preciso lê-lo muito mais.” É claro que Arnoni acedeu!

Quem se aproxima para valer do radicalismo literário e social de Lima Barreto, muito rapidamente se acerca dos movimentos anarquistas. Daí resulta que Arnoni tenha organizado o belo volume Libertários no Brasil: memórias; lutas; cultura (Ed. Brasiliense, 1986), ainda hoje referência obrigatória para quem se dedica ao tema. E, nesse campo, tive o privilégio de fazer com ele a parceria na organização do livro Contos anarquistas (Ed. Brasiliense, 1985), que, rapidamente esgotado, veio a conhecer, bem depois, nova edição revista e bastante ampliada, em que também colaborou decisivamente nossa ex-aluna Cláudia Baeta Leal, historiadora e pesquisadora no IPHAN, sob o título: Contos anarquistas: temas e textos da prosa libertária no Brasil (1890-1935) (Ed. WMF Martins Fontes, 2011).

No contexto das lutas contra a ditadura militar, nos anos 1970, nossa amizade pôde nascer e perdurar para sempre. A nós se somou o historiador e bibliófilo erudito Geraldo Moreira Prado, o Alagoinhas, organizador da maior biblioteca rural comunitária do Brasil, quiçá do mundo, no povoado do Paiaiá, sertão baiano, quando a feliz circunstância de frequentarmos os mesmos seminários de Antonio Candido, sobre “Leitura ‘ideológica’ dos textos literários”, na USP, em 1975, nos aproximou para toda a vida – via Antonio Gramsci e sua fina concepção de vida literária e crítica cultural –, num momento em que, como agora, a urgência das escolhas e das ações forja a solidariedade e o sentimento coletivo como marcos indeléveis de uma experiência geracional.

Mas nosso infatigável companheiro não deixava nada barato. Nesses anos recentes, com a saúde bem debilitada, publicou uma peça teatral, Diário de classe (Ed. Jabuticaba, 2017), em que fragmentos de memória escolar se articulam em sátira e, segundo a colega Vilma Arêas, que assina sua apresentação, entre os limites da farsa e da tragédia, “escorrega de um extremo a outro” sem quedas nem apelações. E não parou aí sua veia literária refinada, lúcida e prazerosa. Em O último trem da Cantareira (Ed. 34, 2019), a memória da infância nas ruas e baldios do Tremembé, no então extremo norte periférico da cidade de São Paulo, volta com a força que só uma paisagem desaparecida, mas visceralmente entranhada, é capaz de suportar.

Sei que aquilo que o amigo mais desejava, nesses difíceis e derradeiros anos, era embarcar neste último trem, atravessar toda a serra da Cantareira e, depois, desembarcar em Pequim, onde ainda poderíamos renovar nossos sonhos de uma paz mundial e um planeta multiétnico, igualitário e sustentável. Utopia que se esvanece na hora da morte. No entanto, ficam aqui os trilhos, as estações não percorridas, os avisos de chegada e de partida, um apito que se prolonga na noite em que a lua cheia do meio-outono, ainda visível, assinala um caminho no meio de tudo e no meio de nada. Adiós, muchacho!

Englewood, Colorado, 12 de setembro de 2022

 

Esse texto é um artigo de opinião e não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.

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