Edição nº 646

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Jornal da Unicamp

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Campinas, 14 de dezembro de 2015 a 31 de dezembro de 2015 – ANO 2015 – Nº 646

Da física e da matemática
ao universo do homem cindido

Livro lançado pela Editora da Unicamp traz 11 entrevistas
concedidas por Ernesto Sabato a Carlos Catania no final dos anos 1980

Ernesto Sabato durante discurso na cerimônia em que recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Unicamp, em agosto de 1994: livro expõe ideário e angústias do escritor argentinoO ano era 1938. Vivendo uma “crise espiritual”, Ernesto Sabato decide recusar uma bolsa para trabalhar como físico em pesquisas sobre radiação atômica num renomado laboratório europeu, mudando o rumo de sua história: “(...) sentia que o mundo da matemática era alheio ao mundo dos homens. Esse universo dos símbolos se me afigurava um ópio platônico. E assim, quando me deram a bolsa para trabalhar no Laboratoire Curie, de Paris, senti que na realidade partia para iniciar uma nova vida, no mundo da literatura e da pintura, as duas coisas que desde pequeno me atraíam misteriosamente”.

É dessa maneira que o escritor, ensaísta e artista plástico argentino descreve o processo que o levou ao rompimento com o mundo da ciência para ingressar no das artes, num movimento que o levaria a ser consagrado como um dos maiores romancistas do século XX. O depoimento faz parte de Entre o sangue e as letras, obra inédita no Brasil e recém-publicada pela Editora da Unicamp. O livro compila 11 entrevistas concedidas por Sabato a Carlos Catania no final dos anos 1980.

Catania - escritor, ator, diretor teatral e também argentino - era amigo pessoal de Sabato. Propôs a ele a realização da uma longa entrevista, a fim de que o escritor pudesse expressar, nas próprias palavras, seu pensamento acerca de sua vida, de sua obra e de temas de seu interesse.  

A maior parte dos encontros ocorreu na casa de Sabato, mas também em locais públicos, como hotéis, cafés e até nas ruas de Buenos Aires – o que empresta mais vitalidade ao texto, na percepção do tradutor da obra e professor do Instituto de Artes da Unicamp, João-Francisco Duarte Jr.. “Embora Catania, idealizador desses diálogos e que se afigura uma espécie de entrevistador, tivesse em mente alguns temas básicos e necessários, as conversas fluem sem impedimentos, sem tropeços ou intercorrências provocadas por questões pré-estabelecidas”, descreve Duarte Jr.. 

Mesmo em meio às derivações, digressões e interrupções causadas por terceiros, a obra apresenta uma unidade, uma linha de exposição de fatos e de reflexões bastante lógica e coerente, começando pela infância de Sabato no primeiro encontro e terminando com discussões acerca de sua obra no último, reitera o tradutor. O resultado é semelhante a uma conversa íntima e aberta entre amigos.

TEMAS FUNDAMENTAIS

A vida pessoal, com informações biográficas e históricas, os episódios marcantes e as crises são o fio condutor da obra - assim como as questões que compõem o universo filosófico de Ernesto Sabato. Logo na primeira entrevista, na qual ele relembra sua vida escolar, compreende-se seu percurso da matemática e da física à literatura:

“Sim, durante um ano permaneci espantosamente solitário. Sentia-me isolado nas aulas, sentia-me ridículo, um menino do interior, do campo, sentia que o mundo era hostil e horrível, imperfeito. Até que assisti pela primeira vez à demonstração de um teorema de geometria. Senti uma espécie de êxtase, descobri um mundo perfeito e exato, belo e incorruptível. Não sabia que acabava de descobrir o universo platônico. Então, naquele momento maravilhoso, iniciou-se uma nova etapa em minha vida, assinalada por uma eterna luta entre as trevas e a luz, entre o mundo dos homens e o universo das ideias”.

A matemática, comenta o tradutor no prefácio do livro, torna-se um porto seguro para Sabato, um refúgio das agruras e incertezas cotidianas. “Deste modo, foi carregando essa espécie de tábua de salvação até que ele se tornou adulto e fez da matemática e da física, em que se doutorou, a esfera de sua primeira atuação profissional”.

No entanto, na Paris do final dos anos 1930, onde vivia e realizava seus estudos, Sabato convivia com os surrealistas. “De dia trabalhava entre eletrômetros, e de noite me reunia com os surrealistas no Dôme, como uma honrada dona de casa que à noite exercesse a prostituição”, conta Sabato.

Tal como Doutor Jeckill e Mister Hyde (na descrição do entrevistador), Sabato mergulhara numa profunda cisão, enxergando a ciência como “a culpada por uma crescente desumanização, ao proscrever pensamento mágico e ficar unicamente como pensamento lógico”. A aproximação com os surrealistas funcionava como um contraponto a esta constatação; eles representavam, para o escritor, o extremo oposto à razão.

Reflexões como essas transformam as entrevistas a Catania num campo de expressão que ultrapassa o contexto histórico e os episódios da biografia de Sabato. Remetem, diferentemente, a questões de ordem filosófica e existenciais inerentes à (eterna) busca do ser humano pela construção de seu universo de sentido. Expressam também uma visão de mundo aberta, pouco afeita a hierarquias e à rigidez.  

Nesse sentido, o tradutor Duarte Jr. identifica os temas que atravessam transversalmente as entrevistas. No campo das artes e da estética, destacam-se a ausência de hierarquia e evolução nas artes e a aversão e o repúdio à “polícia da língua”, que, a partir de códigos gramaticais estabelecidos, definem quais seriam as formas adequadas de expressão linguística.

A defesa incondicional das liberdades individuais e do direito à livre expressão, paralelamente à crença num sistema judicial alicerçado na prerrogativa do direito de defesa de todo cidadão é outro tema caro a Sabato, constituindo-se numa de suas frentes de atuação: ele presidiu a comissão que conduziu as investigações sobre os desaparecidos durante a ditadura militar na Argentina (1976-1983). Os trabalhos resultaram no histórico documento Nunca Mais, que reconstitui o cenário de impunidade e violações de direitos humanos, que resultaram em 9 mil pessoas desaparecidas, num universo estimado de 30 mil mortos.

A SEMENTE DA ESPERANÇA

A obra de Ernesto Sabato destaca-se por compor um retrato fiel da complexa e angustiante experiência humana. “Não escrevi para ganhar dinheiro, nem prêmios, nem pela vaidade de me ver impresso. Pode lhe parecer excessivo, porém escrevi para aguentar a existência. Por isso meus livros são tão desagradáveis e não os recomendo a ninguém. E ainda mais: vigiei cuidadosamente para que meus filhos não os lessem, ao menos enquanto foi possível, quando eram adolescentes”, revela Sabato numa das entrevistas a Catania.

Nessa medida, pontua o professor Duarte Jr., as angústias e desesperos que marcam os três romances que chegaram a ser publicados – O túnel, Sobre heróis e tumbas e Abadon, o exterminador – foram experienciados pelo próprio Sabato.

 “Como ele mesmo afirma, sempre foi um indivíduo atormentado, tanto pelas iniquidades sociais quanto pela aparente ausência de sentido para a existência humana”, comenta o tradutor. Por isso, escrever não lhe trazia paz. “Primeiro, devido à sua severa autocrítica, julgando amiúde que o trabalho concluído não estava bem realizado – algumas de suas obras foram salvas do fogo por sua esposa, Matilde. Depois, porque, de acordo com suas próprias palavras, o ato de escrever não lhe era realmente prazeroso, e sim um fardo, uma condenação”, aprofunda o tradutor.

Numa das entrevistas, porém, Sábato deixa entrever uma fenda de luz, uma abertura, em meio ao mergulho nos meandros do psiquismo e do comportamento humano. Demonstra certa fé na existência humana: “nosso instinto de vida nos incita, apesar de tudo, a lutar, e isso é o bastante, pelo menos para mim. Não estamos completamente isolados. Os fugazes instantes de comunhão diante da beleza, que às vezes se experimenta com outros homens, bem como os momentos de solidariedade em face da dor, assemelham-se a pontes frágeis e transitórias que fazem os seres humanos se comunicarem por sobre o abismo sem fundo da solidão”.

Trechos do livro

EDUCAR É PROMOVER O ASSOMBRO

“[...] é bom lembrar que ‘educar’ significa desenvolver, realizar aquilo que existe potencialmente na criança, fazer crescer o germe que ela traz em seu espírito, fazendo com que chegue a procriar. O labor do mestre, tal como o via Sócrates, consistia bem mais no de uma parteira do que no de um fabricante. E como o mestre suscita tal processo? Promovendo o assombro ante os profundos e misteriosos problemas que a realidade exibe. Por menos que se considere, tudo é assombroso”.

A AUSÊNCIA DE PROGRESSO NA ARTE

“A ideia do Progresso – e há que escrever, neste caso, com maiúscula – foi um dos grandes pilares do século XVIII e, sobretudo, do século XIX, ainda que também perdure na maioria das pessoas no presente século. Não se deve pensar que os séculos terminem ao mesmo tempo para todos, ao som de um apito: no século XIX havia escritores como Dostoiévski e pensadores como Nietzsche e Kierkegaard que não apenas já faziam parte deste nosso tempo como, em meio ao otimismo universal de então, conseguiam ver a catástrofe que cairia sobre nós. E, ao contrário,o presente está cheio de escritores e pensadores que se creem do século XX, mas pertencem ao XIX. De qualquer forma, há progresso no pensamento puro e na ciência, não na arte. A arte não progride, pelo mesmo motivo que não progridem os sonhos: por acaso os pesadelos de nossa época são melhores do que os da época do José bíblico?”. 

O ROMANCE COMO REBELIÃO

“A autêntica rebelião e a verdadeira síntese não poderiam provir senão daquela atividade do espírito que nunca separou o inseparável: o romance. Devido à sua hibridez mesma, por estar a meio caminho entre as ideias e as paixões, ele está destinado a produzir a real integração do homem cindido; ao menos suas realizações mais vastas e complexas. Nesses romances de ponta se produz a síntese que o existencialismo fenomenológico recomenda. Nem a pura objetividade da ciência, nem a pura subjetividade da rebelião primeira: a realidade desde um eu; a síntese entre o eu e o mundo, entre a inconsciência e a consciência, entre a sensibilidade e o intelecto.”

Capa do livro Entre o sangue e as letras
Serviço
Título: Entre o sangue e as letras
Autor: Ernesto Sabato
Tradução, prefácio e notas: João-Francisco Duarte Jr.
Editora da Unicamp
Páginas: 256
Preço: R$ 40,00
Acima, cenas de repressão durante a ditadura militar argentina; à direita, generais escondem o rosto durante julgamento em Buenos Aires: Sabato presidiu a comissão que investigou violações dos direitos humanos
 
Quem foi
 
Considerado um dos mais importantes escritores hispanoamericanos do século XX, Ernesto Sabato dedicou-se principalmente à literatura e à pintura, após abandonar uma promissora carreira de pesquisador na área da física. 
Ao longo de 99 anos de vida – ele morreu em 2011, dois meses antes de se tornar centenário -, publicou três romances, além de ensaios sobre a condição humana, entre eles: Nós e o universo, O escritor e seus fantasmas e Antes do fim. Sua obra de ficção foi reconhecida por escritores como Albert Camus e Thomas Mann.
Em 1984, recebeu o Prêmio de Literatura em Língua Castelhana Miguel de Cervantes, concedido pelo Ministério da Cultura da Espanha. 
É Doutor Honoris Causa da Universidade de Murcia (Espanha), Universidade de Rosário (Argentina), Universidade de Turim (Itália) e da Unicamp (veja texto).
‘Em breve, o atraso será uma das grandes virtudes do ser humano’
 
Abaixo, trechos do discurso de agradecimento de Ernesto Sabato na cerimônia em que recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Unicamp, em 16 de agosto de 1994. A tradução foi feita pelo escritor e jornalista Eustáquio Gomes, à época coordenador da Assessoria de Imprensa da Unicamp e editor do Jornal da Unicamp, que publicou uma matéria sobre a vinda do escritor argentino a Campinas.
 
PROFESSOR
Experimento sempre uma espécie de pudor quando me chamam professor. Fui professor, ensinei relatividade e teoria quântica ao retornar do Laboratório Curie, quando já estava intimimamente resolvido, aliás, a abandonar a ciência para sempre. E assim que esse tratamento me coloca em uma situação um pouco delicada. Sofri muito por causa dessa troca (da ciência pela literatura). Não creiam que foi fácil. Essas trocas aparentemente abruptas e aparentemente arbitrárias que eu fiz obedeciam a uma consciência anterior muito autêntica, eram quase uma obrigação.
 
MATEMÁTICA
Ainda muito cedo decidi me dedicar às matemáticas, e logo à fisica-matemática, que também tem sua beleza; melhor, tem uma grande beleza. Uma teoria como a da relatividade, por exemplo, se me afigura uma espécie de catedral construída com teoremas. Tudo isso me fascinou. Continuei a escrever pequenas coisas, pintando outras, até que um professor — um grande professor de física que eu tinha, porque tínhamos grandes professores no colégio da Universidad de La Plata — me estimulou a fazer um doutorado em física-matemática. Comecei a fazê-lo e foi por essa época que começaram para mim as vicissitudes alheias à matemática, as tribulações, as ditaduras, a necessidade de justiça, de luta pela liberdade. Encontrei-me então em meio a um tumulto que era quase o contrário do que havia aprendido com as matemáticas. E assim foi que abandonei os estudos durante cinco ou seis anos para lutar pela liberdade, pela justiça social.
 
IDEOLOGIAS
Agora se diz que as ideologias chegaram ao fim. Mas isso não quer dizer que tenha chegado o fim também para os ideais. Sempre haverá ideal onde haja alguém lutando para que uma criança não passe fome, como sempre será um ideal que não haja raças perseguidas, nem pobres oprimidos, nem classes dominadas. Eu desprezaria um filho meu que não se importasse com essas coisas.
 
MORTE
Ainda há pouco estive mal, por conta de uma gripe viral. Um amigo, grande médico e grande sujeito, disse-me: “Ernesto, vamos ter que te internar”. Mais tarde me confessou que estive a ponto de morrer. Eu disse: “Se tenho que morrer, que seja em minha cama, à antiga. Não me ponham aparelhos eletrônicos” - essas famosas e sinistras salas de terapia intensiva, a que me referi em Homens e Engrenagens, já em 1951, e pelo que fui tantas vezes taxado de reacionário. Não vejo o que pode haver de reacionário em alguém preferir estar com sua mãe, sua mulher e seus filhos na hora da morte. Parece que estão compreendendo, por fim, essa verdade óbvia. Agora se permite às vezes que haja na sala um membro da família. Garanto que isso cura mais que todos os aparelhos, todos os remédios e todos os tubos.
 
VELHICE
Lamentavelmente, somos uma sociedade sem anciãos. Nos Estados Unidos não há avós, não se os vê na rua. Ou estão recolhidos porque têm frio, cobertos com trapos nas esquinas, ou estão em clínicas geriátricas de luxo. Nas velhas culturas o avô era o sábio da família. Enquanto o pai terçava lanças com outras tribos e a mãe tecia ou cuidava da comida, o avô tinha o filho menor sob seus cuidados e passava o tempo narrando-lhe as velhas tradições de sua tribo. Assim essas tradições eram transmitidas a cada geração nova. Num colóquio em Dacar, certa vez, ouvi de um poeta senegalês: “Para nós, a morte de um ancião, de um sábio da tribo, corresponde ao que é para vocês o incêndio de uma biblioteca”. Hoje é como se as pessoas morressem todas aos quarenta anos.
 
PROGRESSO
Em breve, o atraso será uma das grandes virtudes do ser humano. Em breve teremos de ir buscar sabedoria nas poucas aldeias que ainda possa haver na Polinésia. Por vezes me chamam de reacionário, como num programa de televisão em que eu disse coisas inocentes como estas, que entretanto são verdadeiras. Uns dizem: “Que há com Sabato? Por que não se muda então para uma aldeia africana?”. Respondo: “Já não há aldeias, foram todas arrasadas desde que por lá passaram os imperialistas ingleses, americanos e franceses”. Na verdade desde que as mulheres africanas, com seus formosíssimos vestidos que elas próprias teciam, tiveram-nos substituídos por porcarias fabricadas em Manchester — e a isso se chama progresso.
 
LER
Às vezes me param na rua para me perguntar o que ler. Eu digo: leiam o que lhes apaixona. Nada que se faz sem paixão vale a pena. E em segundo lugar, não leiam novidades. Esperem uns dez anos.
 
MODA
Os franceses, quando descobriram o existencialismo, converteram-no em moda. O existencialismo vem dos gregos, como se sabe. Um dia, se bem me recordo, havia um artigo de Sartre ao lado de um vestido de época. Uma combinação de metafísica e moda feminina. Não digo que todos os franceses sejam assim. Tenho grandes amigos franceses e alguns são grandes homens. Basta pensar em homens como Pascal, que abandonou a geometria, mesmo sendo o gênio matemático que era, para converter-se numa espécie de místico. Não estou falando dos franceses, mas de uma certa tendência de certos franceses. Um arquétipo, na verdade.