Edição nº 635

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 31 de agosto de 2015 a 06 de setembro de 2015 – ANO 2015 – Nº 635

Passos para a interação

Pesquisa inova ao usar a dança em abordagem com pessoas diagnosticadas com autismo

A pessoa dita autista não somente tem a possibilidade concreta e o direito de realizar uma prática artística, como tem muito a ensinar nesse aspecto. A afirmação é da bailarina e coreógrafa Anamaria Fernandes Viana, que defendeu recentemente a tese de doutorado intitulada “Dança e autismo, espaços de encontro”. O trabalho rendeu à autora um duplo diploma, visto que a pesquisa foi desenvolvida em cotutela pela Unicamp e Université Rennes 2, da França. As orientadoras do estudo foram as professoras Marcia Strazzacappa, da Faculdade de Educação (FE), e Christiane Page, da instituição francesa.

De acordo com Anamaria, a tese é resultado de uma longa experiência prática desenvolvida por ela na França, país no qual viveu por mais de 20 anos e onde fez o mestrado. Lá, a bailarina e coreógrafa realizou um trabalho diferenciado de dança com pessoas com transtornos mentais. “Foi uma experiência extremamente rica, mas que a meu ver podia ganhar maior dimensão com o suporte teórico. Por isso resolvi abordar o tema no mestrado e agora no doutorado”, explica.

A escolha das professoras Marcia e Christiane como orientadoras, conforme Anamaria, foi fundamental para a concretização da pesquisa. As docentes abriram novas perspectivas para o trabalho, que por sua vez ganhou uma importante dimensão multicultural e multidisciplinar. “Na pesquisa, acredito que abracei as culturas do Brasil e da França. Também tive a oportunidade de conciliar vários olhares e saberes sobre o tema abordado, proporcionados pela arte, educação e psicanálise, entre outros”, considera.

Anamaria relata que começou a trabalhar com pessoas em situação de transtorno mental desde que se mudou para a França, depois de ter feito a graduação em Dança na Unicamp. Na tese, ela denominou essas pessoas, que eram atendidas por diferentes instituições, de “extraordinárias”. A bailarina conta que ao iniciar a pesquisa não tinha o autismo como objeto único da sua investigação. “Essa definição foi feita posteriormente, graças às orientações da professora Marcia”, pontua.

A docente da FE explica que a decisão se deu porque tanto no Brasil quanto na França há pouquíssimos estudos que associam a dança como prática artística ao autismo. “Existem trabalhos que abordam a dança relacionada a outros tipos de transtornos mentais ou deficiências físicas, mas não especificamente ao autismo. Percebemos, então, que este seria um bom caminho para percorrermos”. Segundo Anamaria, para que a tese fosse concluída foi preciso superar inúmeros desafios.

A bailarina Anamaria Viana: segundo a autora da tese, a pessoa dita autista não somente tem a possibilidade concreta e o direito de realizar uma prática artística, como tem muito a ensinar nesse aspectoO primeiro deles foi encontrar uma forma de estabelecer contato com cada sujeito, na sua singularidade. “Um dos aspectos mais difíceis e também mais importantes dessa prática é reconhecer nossa ignorância. Cada pessoa é uma paisagem em constante movimento. A partir do momento em que pensamos que sabemos algo, a partir do momento em que temos certezas, a possibilidade de cometermos erros cresce. Para que esse trabalho pudesse se desenvolver, foi necessário me deixar aprender com o outro continuamente. Para mim, foi como trilhar um caminho desconhecido, que precisou ser desbravado passo a passo”, relata Anamaria.

Outro ponto crucial trabalhado, segundo ela, foi a questão do desejo do outro. A autora da tese explica melhor esse aspecto. “Quando colocamos no outro as nossas projeções de conquistas, às vezes não enxergamos as pérolas que esse outro pode nos oferecer. Assim, nesse tipo de abordagem, é importante ficarmos atentos a essas pérolas, para construirmos paisagens a partir delas”, pormenoriza. Anamaria destaca também a importância da possibilidade de tocar o outro no esforço de aproximação da pessoa autista, algo não muito frequente na França.

Ela conta que os franceses, dependendo da região em que vivem, estabelecem diferentes relações com o próprio corpo. Introduzir o toque numa instituição francesa, conforme a bailarina, não foi uma tarefa trivial. “Foi preciso fazer um trabalho com os profissionais locais para que eles pudessem se desfazer de seus casacos de proteção e, consequentemente, descobrir as pessoas com as quais estavam se relacionando. Durante cada percurso, nós cometemos erros, mas aprendemos muito com todos eles. Tudo isso ajudou a construir um método de trabalho que, segundo os relatos dos profissionais, provocou uma mudança radical no olhar que tinham sobre as pessoas acompanhadas por eles”, relata.

A metodologia resultante da experiência, observa Anamaria, deve ser encarada não como uma cartilha a ser seguida, mas sim como uma ferramenta a partir da qual cada profissional poderá construir a sua própria abordagem. “Uma das minhas preocupações foi usar uma linguagem bem acessível, de modo que qualquer interessado no tema, seja ele profissional da dança ou não, inclusive pais de crianças autistas, possa ler”. Segundo a professora Marcia, esse cuidado foi importante, principalmente por causa da carência de bibliografia sobre o assunto, tanto em plano nacional quanto internacional. “Também nesse aspecto o trabalho da Anamaria traz uma importante contribuição às pesquisas da área, dado que a literatura sobre o assunto é muito escassa”, entende.

Retornando à questão da interação, a autora da tese informa que trabalhou com pessoas ditas autistas na faixa etária de 7 a 23 anos. De acordo com ela, foi possível estabelecer contato com todas, inclusive com aquelas que apresentavam um diagnóstico de “autismo profundo”. “O trabalho foi realizado por meio de oficinas, com abordagens individualizadas e com a ajuda de objetos como tecidos de texturas diversas, sacos de areia, bolas, plumas, entre outros. Procurei privilegiar a improvisação, de modo que um dia jamais era igual ao outro. Em todas as oficinas, a busca era sempre pela aproximação dessas pessoas extraordinárias, mas dentro do universo de cada uma. Em vez de realizar ações premeditadas, eu me deixava levar por elas. O que posso dizer é que essa experiência me ensinou muito tanto sobre a dança quanto sobre a vida”, garante Anamaria.

COLABORAÇÃO

Professoras Marcia Strazzacappa e professora Christiane PageEm visita ao Brasil para participar de um evento organizado em meados de agosto pelo Laboratório de Estudos sobre Arte, Corpo e Educação (Laborarte), ligado à FE, a professora Christiane Page enfatizou a importância de a tese de Anamaria ter sido desenvolvida no sistema de cotutela entre a Unicamp e a Université Rennes 2. “Entretanto, mais importante que isso foi o fato de o trabalho ter contado com duas orientadoras, o que conferiu à orientanda a oportunidade de construir dois campos de referência”.

Christiane também assinalou a relevância do aspecto prático do trabalho realizado por Anamaria. “O meio acadêmico francês é muito teórico. Um ponto que despertou o meu interesse pelo projeto foi justamente a possibilidade de agregar essa prática à investigação teórica”. A docente da Université Rennes 2 manifestou a disposição de dar sequência à colaboração nascida dessa experiência de cotutela. “Como vocês dizem por aqui, em time que está ganhando não se mexe. A ideia é de dar continuidade à cooperação, ampliando os focos de ação. Gostaria muito de promover intercâmbios de estudantes entre as duas universidades”, adianta.

De acordo com a professora Marcia, a proximidade dos trabalhos realizados por ela e pela professora Christiane favorece essa continuidade. “Eu faço um trabalho com clown, através da personagem dona Clotilde. A professora Christiane, que também é atriz, tem um trabalho com bufão. Ambas trabalhamos nas interfaces entre arte, educação e saúde. Temos grande afinidade, o que é um aspecto que favorece a parceria”, entende. 

Para desenvolver a tese, Anamaria contou com bolsa do tipo sanduíche concedida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), órgão do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Atualmente, a pesquisadora está de volta ao Brasil. Ela acaba de ser aprovada em concurso para professora no curso de Dança da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde ministrará, entre outras, disciplina de dança e necessidades especiais.

 

Publicação

Tese: “Dança e autismo, espaços de encontro”

Autora: Anamaria Fernandes Viana

Orientadora: Marcia Strazzacappa

Coorientadora: Christiane Page

Unidade: Faculdade de Educação (FE)

Financiamento: CNPq