Edição nº 633

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 17 de agosto de 2015 a 23 de agosto de 2015 – ANO 2015 – Nº 633

Debatendo e combatendo a má conduta científica

Representantes da Unicamp participam de conferência sobre a
integridade em pesquisa e trazem sugestões e ideias para a PRP

Instituições de ensino superior que pretendam ganhar relevância no meio científico global serão, cada vez mais, pressionadas a lidar com casos de má conduta científica de forma correta e transparente, sem ceder à tentação do corporativismo, e a estabelecer comitês internos de integridade em pesquisa para evitar um ostracismo internacional. Essa foi uma das principais impressões trazidas pela delegação de professores da Unicamp que assistiu à 4ª Conferência Mundial de Integridade em Pesquisa, realizada no Rio de Janeiro no início de junho.

Quando um artigo científico atrai suspeitas de má conduta, o periódico que o publicou só tem condições de investigar o caso até certo ponto, e a partir daí a questão é repassada à instituição a que o pesquisador responsável é filiado. “E quando a revista joga para a instituição e a instituição não responde à altura, a revista pode aplicar sanções: outros cientistas da mesma universidade podem vir a ser proibidos de publicar nesse periódico”, disse Sandro Guedes de Oliveira, professor do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW), um dos representantes da Unicamp no evento. 

“Se uma instituição não resolver os casos dela, a revista pode decidir que ela não vai mais publicar lá”, disse ele. “Então, imagine se, por exemplo, um dia aparece na Nature um caso que a Unicamp não tem como tratar e, a partir daí, nenhum pesquisador da Unicamp publica mais na Nature? Acho que isso ajuda a consertar um pouco o corporativismo, porque acaba afetando outras pessoas, cria uma pressão contrária: a preocupação passa a ser preservar a instituição”.

Além de Guedes, representaram a Unicamp na conferência mundial os docentes e pesquisadores ; Rogério Custodio, do Instituto de Química (IQ); Renata Celeghini, do Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas (CPQBA); Pedro Luiz Rosalen, da Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP); e Rosana Almada Bassani, do Centro de Engenharia Biomédica (CEB).

 Sandro Guedes, do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW), Renata Celeghini, do Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas (CPQBA), Rogério Custodio, do Instituto de Química (IQ) e Maria Luiza Moretti, da Faculdade de Ciências Médicas (FCM)

PLÁGIO

“Foram apresentados, no evento, números que mostram que as más práticas são mais comuns do que se imagina, em todo o mundo”, disse Rogério Custodio. Foi citada uma pesquisa mostrando que num único campo do conhecimento, a Psicologia, a maioria dos pesquisadores americanos – de uma amostra de mais de 2 mil, sondada pelo periódico Psychological Science – admite ter cometido algum tipo de “ato questionável” em sua carreira, incluindo engavetar resultados negativos (50% dos entrevistados) ou inventar dados (1,7%).

Há vários tipos de má conduta científica, que podem ir desde a assinatura indevida de artigos por pesquisadores que, na verdade, não participaram do estudo ao uso de técnicas de análise estatística inadequadas, mas os mais citados na conferência foram os que se reúnem nas categorias plágio, fabricação e falsificação, disse o pesquisador. “Plágio é cópia sem a identificação da autoria, fabricação é quando você inventa um dado ou o resultado de um experimento que na verdade não fez, e falsificação é quando você adultera o resultado de um experimento”, explicou ele.

Das três modalidades, o plágio parece ser a mais comum, estimulada pelas pressões por produtividade e pela “cultura de copy-paste” trazida com a disseminação da internet. “A forma de abordar esse problema começa na educação”, disse Renata Celeghini, que também é coordenadora do Comitê de Ética em Pesquisa da Unicamp. “Temos que educar o aluno que está ingressando. Porque o acesso aos dados é muito ágil nesta era da internet. Para o novo pesquisador, pode ser muito difícil discernir o que é dele e o que é de outra pessoa, porque na internet, está tudo muito acessível para o copiar e colar”, disse. “Há um processo educativo que temos que fazer na base, para que possamos ter pesquisadores mais íntegros ao longo do tempo, conscientes dos padrões éticos”.

INCENTIVOS

Os palestrantes da conferência também deram atenção à questão da estrutura de incentivos do sistema atual de produção científica, que pressiona os pesquisadores a produzir e a publicar grandes quantidades de trabalhos. O mesmo problema foi alvo de dois artigos em edição recente da revista Science.

“Existem as métricas estabelecidas – citações, publicações, o fator h, entre outras – mas os palestrantes apontam que o uso indiscriminado disso acaba criando distorções”, relatou Guedes. “O que um grupo de pessoas que estuda isso recomenda é que se olhe caso a caso, sem generalizar. Um exemplo dado foi o da área de História, onde a literatura local é muito importante. Os textos em português são muito importantes – só que os textos em português não estão indexados nas grandes bases de dados internacionais. Se você for usar os critérios mais usuais para comparar um historiador com, por exemplo, um pesquisador da Medicina, vai acabar concluindo que o pesquisador da Medicina é produtivo e o da História, não. Por isso é preciso observar essas particularidades de cada disciplina. Nenhum indicador é absoluto”, disse ele, citando ideias do Manifesto de Leiden para Métricas de Pesquisa, publicado em abril deste ano na revista Nature.

“Na verdade, não se sabe qual a receita”, complementou Custodio. “Numa das sessões a que assisti, o palestrante questionou os quantificadores de produção. E aí alguém perguntou: se todos são inadequados, o que a gente tem que usar? E ele respondeu: não sei”. A afirmação contundente, explicou Custodio, baseava-se na premissa de que estudos que podem não parecer relevantes de imediato podem vir a se tornar a base de algo que terá um papel fundamental no futuro da ciência.

Incentivos financeiros à produtividade também podem levar a resultados indesejados, como exemplificou Renata Celeghini. “O que se relatou também, numa palestra a que assisti, é que os pesquisadores chineses recebiam uma verba extra, caso conseguissem publicações em revistas conceituadas: quanto mais publicações, mais recebiam”, disse ela. “Mas eles interromperam os benefícios, pois constataram que o aumento do número de publicações ocasionou falta de qualidade dos manuscritos e aumento drástico do número de plágios”.

A situação chinesa foi muito comentada na conferência. “A China foi o país que mais cresceu em número de publicações nos últimos anos. Teve o maior crescimento do mundo. E vai passar os EUA em número de publicações, em breve será o país que mais publica. Mas também é o país com o maior número de retratações, de dados falsos”, disse Maria Luiza Moretti. “Isso pode ser pela pressão do cientista em publicar, uma cobrança muito grande, provavelmente política. E isso leva um pouco à descrença do dado chinês, uma perda de credibilidade da ciência do país”.

REMÉDIOS

Má conduta científica é algo que acontece por toda parte, incluindo em instituições conceituadas – o que muda é a forma como as universidades, os órgãos de financiamento e os governos lidam com a situação. Há países que têm leis, órgãos e políticas específicas para tratar do problema, o que não é o caso do Brasil, disseram os pesquisadores da delegação da Unicamp. Eles também manifestaram desapontamento com o silêncio das autoridades brasileiras presentes na conferência internacional.

“Fizeram as saudações de praxe, desejaram a todos uma boa conferência e não disseram nada sobre a posição do Brasil nessas questões”, disse Custodio. Em diferentes países, a formalização dos procedimentos de integridade em pesquisa parte de medida do governo central e, em outros, nasce de medidas das próprias instituições de ensino e pesquisa. Poucas universidades brasileiras, porém, contam com comitês ou conselhos de integridade científica.

No caso da Unicamp, Renata Celeghini acredita que comissões já existentes, como o Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos (CEP), Comissão de Ética no Uso de Animais (CEUA) e do Patrimônio Genético (Patgen), poderão servir de embrião para um comitê mais geral. “A Unicamp já tem esses três, que já dão um respaldo ético à pesquisa, mas ainda precisa desse maior, que englobaria todos”, disse.

A delegação de professores trouxe, do evento no Rio de Janeiro, algumas recomendações que estão sendo repassadas à Pró-Reitoria de Pesquisa (PRP), que pretende realizar um evento de integridade em pesquisa na Unicamp. 

Os pesquisadores tiveram contato com ferramentas educacionais para ensinar aos cientistas, principalmente aos pós-graduandos, sobre boas práticas de pesquisa, e também com um software para a detecção de plágio. “É possível fazer seminários, workshops, criar disciplinas, de alguma forma você tem que educar o jovem”, disse Custodio.  “Existe a falta de conhecimento de que determinadas coisas são erradas. E os alunos aprendem imitando. Você tem, num determinado momento, de mostrar quais são as regras, quais são os princípios da boa prática em termos de pesquisa. Isso não é trivial”.