Edição nº 622

Nesta Edição

1
2
3
4
5
6
8
9
10
11
12

Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 13 de abril de 2015 a 26 de abril de 2015 – ANO 2015 – Nº 622

Roupa, um objeto da cultura


publicacoes analisadas pela pesquisadoraMais que um produto da indústria da moda, a roupa é um elemento da cultura material que contribui para a compreensão da educação do corpo e de aspectos da vida em sociedade. A conclusão faz parte da tese de doutoramento da pedagoga Fernanda Theodoro Roveri, defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, sob a orientação da professora Carmen Lúcia Soares, junto à linha de Pesquisa Educação e História Cultural. O trabalho de Fernanda analisou o lugar das roupas na educação do corpo de crianças nos anos de 1950, considerados como os “anos dourados” no Brasil.

As principais fontes utilizadas pela autora foram revistas infantis e de variedades publicadas no período tomado para análise, como Tico-Tico, Cirandinha, Manchete e Jornal das Moças. Na investigação que promoveu sobre os vestuários de meninas e meninos, Fernanda considerou tanto os conteúdos editoriais quanto os materiais publicitários veiculados pelas publicações. “Foi importante olhar para as roupas e para os moldes encartados nas revistas, para entender como o vestuário contribuía para a educação do corpo das crianças da época. De modo geral, foi possível identificar uma clara distinção de gêneros”, afirma.


A professora Carmen Lucia Soares, orientadora do trabalhoEm relação aos meninos, prossegue a autora da tese, as revistas destacavam a necessidade de os garotos terem um comportamento similar ao dos militares. Assim, as roupas precisavam ser limpas e bem passadas. Os sapatos tinham que estar brilhantes e os cabelos, alinhados com gomalina. “A mensagem presente nas imagens e textos era de que as pessoas precisavam mostrar uma elegância que as distinguissem do grupo rural, visto que os anos dourados eram marcados pelo ideal de progresso, o que incluía a afirmação da vida urbana. Além disso, as peças publicitárias sugeriam que um menino bem vestido provavelmente seria visto como o aluno mais inteligente da turma”, relata a pedagoga.

As revistas também transmitiam a ideia de que os garotos podiam brincar e se sujar livremente, dado que tal comportamento era natural da infância. A rua era vista como um espaço privilegiado para a diversão, que muitas vezes era vivenciada ao lado da figura do pai. Já em relação às meninas, os conceitos difundidos pelas publicações eram muito diferentes. “Nos anos 1950, as roupas das garotas eram muito parecidas com as das mães. As peças eram volumosas, o que tolhia a liberdade de movimentos delas, ao contrário do que ocorria com os meninos. A ideia subjacente era a de que as mulheres deveriam ser educadas para serem boas mães e donas de casa. Não por acaso, alguns vestidos, tanto de adultos quanto de crianças, vinham dotados de avental, numa clara referência ao universo doméstico”, pontua Fernanda.

Ainda em relação à distinção entre meninos e meninas, a pesquisadora assinala que os garotos normalmente eram retratados brincando com carrinhos ou jogando bola, enquanto as garotas apareciam brincando de boneca ou com um regador nas mãos. “Um aspecto que me chamou a atenção era o uso frequente de babados e franzidos na altura dos seios das meninas, transformando o corpo da criança em corpo de mulher. Era uma roupa de excessos. As meninas dificilmente apareciam de calça comprida. Mesmo para passear de bicicleta ou brincar no parque, as crianças do sexo feminino eram retratadas sempre de vestido”, reforça a autora da tese.

Questionada se esses aspectos ajudam a explicar o fato de, hoje em dia, muitas mães vestirem suas filhas como se fossem adultas, a professora Carmen Lúcia Soares faz uma ponderação. De acordo com ela, é problemático estabelecer uma relação direta de situações atuais com as que foram constatadas na tese de Fernanda, que se concentra nos hábitos e costumes dos anos 1950. “Entretanto, nós sabemos que alguns traços permanecem. Um deles é a concepção de que meninos e meninas devem ser educados de forma diferente, e a roupa é um elemento constitutivo dessa educação. Ainda hoje, as meninas são constrangidas em seus corpos ao serem induzidas a usar adereços excessivos. Elas são levadas a eliminar a ideia de conforto nas roupas e calçados. Esse conceito, ao que parece, ainda não foi totalmente superado”.

A pedagoga Fernanda Theodoro Roveri, autora da teseDe acordo com a docente, a roupa é um artefato da cultura. Como tal, permite a compreensão da sensibilidade de uma época. “Ao trabalhar com fontes muito específicas, no caso as revistas, Fernanda conseguiu perceber de maneira clara como certas imagens e certas publicidades veiculadas com frequência contribuíam para a construção de uma sensibilidade que colocava a menina como um ser frágil, que, ao crescer, continuaria sendo uma figura frágil, merecedora de proteção dentro do ‘doce lar’”.

Citando o historiador francês Daniel Roche, uma das referências teóricas do trabalho de doutorado que orientou, a professora Carmen Lúcia Soares observa que objetos tidos como banais, como as roupas, ajudam a contar parte da história da humanidade, o que outros objetos muitas vezes não são capazes de fazer. Conforme a docente, no livro História das coisas banais, Roche fala do botão, artefato considerado prosaico, mas que na realidade não é tão desimportante assim. “No livro, Roche conta que por muito tempo os botões fizeram parte somente das vestimentas masculinas. As roupas das mulheres só passaram a contar com esse artefato, que facilita o ato de se vestir e de se desnudar, muito tempo depois”, diz.

Por fim, tanto orientadora quanto orientanda destacam que, como objeto da cultura, a roupa também é um marcador social, em diferentes níveis. “A roupa é um marcador de idade, de gênero, de classe social, de religiosidade e de etnia. Em determinados países, a vestimenta é importantíssima para balizar a cultura e os costumes locais. O que a tese de Fernanda nos mostra é que a roupa não é uma coisa menor. Ela representa, entre outras dimensões, os valores dominantes de uma determinada época. Além disso, também faz parte do mundo do consumo e das trocas econômicas”, completa a professora Carmen Lúcia Soares.

 

Publicações

ROVERI, F. T. Criança, o botão da inocência: as roupas e a educação do corpo infantil nos “anos dourados”. 2014. Tese de Doutorado em Educação, Unicamp, Campinas, 2014.

ROVERI, F. T. Barbie na educação de meninas: do rosa ao choque. São Paulo: Annablume, 2012.

ROVERI, F. T. ; SOARES, C. L. . Entre laços, rendas e fitas, onde estão os botões? As roupas de crianças e a educação do corpo (década de 1950). ArtCultura (UFU), 2013.

ROVERI, F. T. A roupa infantil nas páginas do Jornal da Mulher: Notas sobre a educação do corpo – década de 1950. Anais do VI Congresso Internacional de História. Maringá, UEM, 2013.

Tese: “Criança, o botão da inocência: as roupas e a educação do corpo infantil nos ‘anos dourados’ ”

Autora: Fernanda Theodoro Roveri

Orientadora: Carmen Lúcia Soares

Unidade: Faculdade de Educação (FE)