Edição nº 619

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 16 de março de 2015 a 22 de março de 2015 – ANO 2015 – Nº 619

Lêdo Ivo, revisor do método


imagem da capa do livro "O universo poético de Raul Pompéia" de Lêdo IvoO ensaísmo de Lêdo Ivo carece de atenção, seja pela riqueza informativa, pela originalidade das interpretações ou ainda pela abundância de gêneros em que se expressou. O alagoano produziu ensaios longos, centrados na ponderação minuciosa de textos e autores (Poesia observada e A ética da aventura), artigos, perfis e resenhas de média extensão (A república da desilusão e Teoria e celebração) e até aforismos (O aluno relapso). Em todas as vertentes, aliam-se inflexão memorialística e humor, lançando o ensaísta em interessante mas esquecida tradição de críticos brasileiros, como Antônio Torres, Humberto de Campos, Agrippino Grieco e outros fesceninos. Lêdo destaca-se pelo método vagabundo: não raro, suas obras se parafraseiam, quando não se repetem integralmente, zombando da crescente demanda de novas produções acadêmicas. Seu interesse não está nas escolas literárias, antes nas afinidades eletivas entre os autores, “continuadores ou renovadores de certas linhagens espirituais”. O universo poético de Raul Pompeia confirma a maioria desses aspectos.

O substantivo “universo” indicia a proposta globalizante de explorar o conjunto da obra pompeiana: O Ateneu (1888), romances inacabados, contos, crônicas, novelas, desenhos, poemas em prosa e prefácios. O adjetivo “poético” anuncia a “atitude simbólica diante da vida” e a “visão deformadora ou transfiguradora da realidade”, incompatível com o arrolamento de Pompeia no plantel naturalista. As escabrosidades do internato não seriam suficientes para detectar traços zolaístas em O Ateneu, tanto porque não intentam encetar estudo fisiológico do ambiente escolar, quanto porque o estilo adotado nada incorpora da objetividade requerida pelos naturalistas. Outra marca antinaturalista seria o papel atualizador da memória, recriada pelo narrador de primeira pessoa, em geral rechaçado pela técnica realista, afeita ao foco narrativo externo. Além disso, na famosa conferência do professor Cláudio no capítulo VI de O Ateneu, a arte se define inútil e imoral, avessa, portanto, à missão edificante e higienizadora que os naturalistas lhe imputavam. Lêdo, no entanto, não tece comentários acerca da ambígua atuação do meio sobre os personagens de O Ateneu: se o diretor Aristarco e os alunos cooptam o protagonista Sérgio à degradação e à subserviência, as mulheres (Ema, sobretudo) oferecem alento ao espaço castrador.

O Ateneu tampouco “é só escritura artística”: é romance em que “a inteligência vigilante predomina sobre as gratuidades consentidas, a se voltar para o mistério da alma humana, a promover o cotejo entre a solidão individual e a sociedade, e a trazer, em sua linguagem e em seu enredo, uma dramática visão do universo”. 

Destruindo mais clichês, Lêdo observa que a atemporalidade de O Ateneu não elimina seu potencial histórico: o caráter volúvel e interesseiro dos personagens reflete o paternalismo e a hegemonia do dinheiro no Segundo Reinado. Contra a leitura redutoramente autobiográfica, pondera que o “lastro vivencial” não colide com o “caráter de autêntica obra de imaginação”. O incêndio no desfecho do romance não é folhetinesco, constituindo, na verdade, importante destruição simbólica para o amadurecimento de Sérgio. Analista de ressonâncias, Ivo busca integrar os pormenores à macroestrutura da narrativa: assim, os selos internacionais trocados pelos alunos estampam o desejo de evasão do internato. As flutuações estilísticas de O Ateneu corresponderiam às hesitações do protagonista.

Lêdo também privilegia as Canções sem metro (1900), obra publicada postumamente e iniciadora do poema em prosa no Brasil, gênero sobre o qual o ensaísta realiza percuciente síntese teórica. Demonstra como nossos simbolistas preteriram o livro brasileiro em favor dos Gouaches (1892), do português João Barreira, o que acabou deflagrando, no século XIX, a configuração prolixa e rebarbativa de muitos poemas em prosa, infensos à concisão iluminadora de Raul Pompeia.

Concentradas em “A cosmologia malograda”, último capítulo d’O universo, as reflexões sobre o poema em prosa pompeiano são meritórias de resgatar tema e título renegados pela crítica brasileira. Sente-se, porém, certa pressa no ensaio derradeiro, quase tão malogrado quanto a obra tratada. É questionável, por exemplo, a opinião de que Pompeia defenda o progresso; títulos como “Comércio” merecem, cremos, apreciação em clave irônica, sobretudo em livro antecipadamente ecológico.


Gilberto Araújo é professor adjunto de literatura brasileira (UFRJ). Autor de Literatura brasileira: Pontos de fuga (Verve, 2014), Júlio Ribeiro (ABL, 2011), entre outros.