Edição nº 618

Nesta Edição

1
2
3
4
5
6
8
9
10
11
12

Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 09 de março de 2015 a 15 de março de 2015 – ANO 2015 – Nº 618

Histórias que não se contam

Tese aborda universo de pessoas que se desdobraram para voltar a estudar

exemplos de superacao

Até pouco tempo, Raimundo, João, Eliezer, Maria Iva e Vitalina fizeram parte das estatísticas do analfabetismo no Brasil. Em comum, essas pessoas tiveram o fato de terem migrado de suas cidades para Campinas, a fim de buscarem uma melhor condição de vida. Fizeram um longo percurso para chegarem à escolarização, e chegaram, muito pelo empenho pessoal, porque dificilmente o ensino formal correspondeu à realidade a eles imposta pela sobrevivência. “Por isso vejo que é preciso saber ouvir esses sujeitos e o que eles têm a dizer”, concluiu Ana Maria de Campos em sua tese de doutorado desenvolvida na Faculdade de Educação (FE) entre 2010 e 2014.

Segundo a autora do estudo, os relatos desses personagens contam a escolarização que tiveram e o regresso à escola no final da adolescência ou na idade adulta, tentando se inserir nesse processo a partir de demandas muito próprias, isso porque na infância tinham sido convocados para o trabalho e não puderam percorrer o caminho regular que a sociedade prevê para a escolarização.

Na sua tese, intitulada “Histórias contidas e nem sempre contadas na formação de jovens e adultos”, Ana Maria pondera que as demandas apresentadas pela escola para o aluno que em geral faz o percurso regular de escolarização, que inicia no ensino fundamental e que prossegue, é uma trilha prevista e universal. Já os sujeitos estudados, averiguou, não fizeram uma trilha universal e sim uma trilha imposta pelas necessidades de adequação da sobrevivência aos estudos.

Eles acabaram servindo de referência neste projeto porque as suas histórias são emblemáticas, prototípicas, representando um grande número de pessoas da sociedade. “Logo, essas histórias são singulares porque os sujeitos determinaram como fazer esse percurso de escolarização e a sua conclusão”, expõe.

Para a historiadora, esse tema conseguiu reunir histórias escondidas no debate acadêmico, revelando a luta e a ousadia desses sujeitos para recusar os destinos traçados e inventar percursos escolares alternativos aos que são universalmente propostos pelas instituições escolares. Os avaliados não se contentaram com esse percurso que a escola praticamente lhes impôs, dando a sua própria conclusibilidade.

Histórias

O Brasil aparecia, em 2014, na oitava posição entre os 150 países com maior número de analfabetos adultos, conforme dados da Unesco. De acordo com a pesquisadora, em 2003 eram mais de 36 mil analfabetos totais em Campinas, segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). E, desse universo, ela escolheu cinco pessoas. “Tive uma vida em comum com eles, sendo que a maioria conheci na década de 1980.”

Raimundo Moura Leal foi o sujeito que a convocou a começar esse estudo. Ele voltou à escola com 18 anos porque necessitava de escolarização para trabalho mais qualificado na indústria metalúrgica. Na primeira tentativa, foi barrado, por ser analfabeto. Procurou então uma escola. Não encontrou vaga.

A sua história é dramática, revela, porque começou a ir à escola todos os dias até descobrir quando começariam as aulas. Nesse dia, comprou um caderno, um lápis e uma borracha, porém ficou do lado de fora da sala de aula. Trabalhava em período integral. Saía do trabalho e ia direto para a escola. Ficou lá três dias, assistindo aula no escuro, observando pela janela. Depois desse tempo, conseguiu entrar na sala e seguiu seu percurso.

João Zinclar, fotógrafo que retratava os movimentos sociais na região de Campinas, abandonou a escola na adolescência, após repetir três vezes a mesma série. Não ter completado a escolaridade era, para ele, uma humilhação. Fez Senai e ingressou no mundo do trabalho ainda bem jovem. Foi diretor do Sindicato dos Metalúrgicos, em Campinas, onde Ana Maria já havia trabalhado. Ele deu a conclusão do seu curso, voltando a estudar porque precisava do certificado do ensino médio para requisitar o MTB e exercer o jornalismo.

Eliezer Mariano da Cunha era pouco escolarizado e atuava na lavoura com sua família. Estudou na roça três anos e quando veio a Campinas, para trabalhar como metalúrgico, viu necessidade de retomar os estudos. “Ele é tratado por mim como um filósofo. Mas a escola não forma o filósofo. Conforma as pessoas para aceitarem seu destino”, acredita. Eliezer faz a crítica sobre o modo de organização da escola.

Maria Iva Lopes da Silva conheceu Ana Maria em 2003, no Letraviva, um projeto de alfabetização de jovens acima de 15 anos, fruto de parceria entre a Prefeitura Municipal e o Programa Brasil Alfabetizado, do MEC. Iva é educadora e também deixou a escola na infância porque morava no sítio, onde permaneceu na segunda série até os 16 anos, por falta de professor. Somente alcançou a escolarização quando saiu de sua localidade para ser doméstica. 

Vitalina foi alfabetizada no projeto Letraviva aos 60 anos. A sua história é, da negação dos direitos, a mais grave. Na adolescência, na ânsia de querer estudar, foi trabalhar em casa de família. Acabou sendo escravizada e perdeu o contato com os seus. O trabalho não era remunerado. Com muito custo, criou um artifício para sair dessa situação, voltando para casa. Retornou à escola somente após a aposentadoria.

“Todas essas histórias são absurdamente de luta”, enfatiza a pesquisadora. “Elas dão para nós, educadores, um sinal de que é preciso ouvi-las e se comprometer com elas, pois corre-se o risco de fazer um programa genérico – que não atende a vida dessas pessoas.”

A pesquisadora Ana Maria de  Campos, autora da tese

Ana Maria nota que as pessoas lutam tanto para voltar à escola e, quando chegam lá, deparam com um currículo infantilizado. “Vitalina apenas não desistiu de estudar porque fiquei como sua professora oculta. Foi assim que criava novas situações de aprendizado para ela”, recorda.

Outros sujeitos, sugere, foram criando formas de resistir a um currículo que não atendia às suas necessidades. “É importante ouvir as pessoas que estão demandando principalmente o programa de Educação de Jovens e Adultos (EJA), não somente nas escolas fundamentais. O censo do IBGE apontou, em 2010, que 2,1 milhões de alunos que entraram na escola não eram alfabetizados após passar pelos primeiros quatro anos. “Isso mostra que precisamos fazer programas mais inclusivos.”

A pesquisadora lembra o entrave de Eliezer que, ao deixar a roça, chegou a Campinas e não entendia o que as pessoas falavam durante as aulas. O universo cultural dele era outro. Foi preciso comprar um gravador e depois da aula ficar ouvindo os diálogos.

“A produção de conhecimento é criação. Não é possível estudar baseado em um currículo de depósito, em uma educação bancária, como combatida por Paulo Freire. A cada dia, com novas metas, as vidas estão sendo relegadas ao isolamento social, que é o mais grave”, critica Ana Maria. “Os direitos de cidadania que a Constituição brasileira prevê são inclusivos e preveem uma escolarização com sentido.”

Hoje

Esses cinco sujeitos, a despeito de tudo, construíram percursos alternativos e são agentes sociais de modificação social, garante Ana Maria. Agora, Eliezer é diretor do Sindicato dos Metalúrgicos e João Zinclar já ocupou esse posto. Iva atualmente trabalha no Sindicato dos Metalúrgicos e é terapeuta corporal. Pertence ao Grupo de Mulheres da Periferia, que intervém na cidade, com ações para a ampliação de vagas em creches e também no combate à violência contra as mulheres. Vitalina concluiu o ensino fundamental e pretende continuar os estudos. Está buscando uma escola compatível com sua vida. 

Ana Maria relata que passou a ter consciência da problemática que envolve o retorno aos estudos na idade adulta e, já formada em História, foi trabalhar no Departamento de Formação do Sindicato dos Metalúrgicos. Ali teve que formular, junto com os trabalhadores, programas, cursos de formação, cadernos de formação e textos, entre outras ações.

Teve que aprender a negociar os sentidos da história: a história dos vencedores, que é feita de um ponto de vista, e a dos vencidos (dos trabalhadores). “Mas comecei a me formar muito antes e me interessar pela história feita de baixo para cima”, informa.

Os depoimentos desses sujeitos ensinam a compaixão, diz. Iva, por exemplo, quis voltar a estudar para dar aula no sítio. Também estes depoimentos ensinam como intervir na sociedade e como os percursos escolares acabam sendo determinados pelo próprio estudante, em função das opressões que a vida lhe atribuiu.

“A sociedade pode até não aceitar isso. Mas as pessoas voltam quando querem e pelo motivo que querem, porque suas histórias são reais e encarnadas. A Constituição indica que temos direito à educação, porém não é qualquer educação. Ela tem que favorecer a participação na sociedade. E uma educação supletiva, compensatória, não favorece isso”, reflete.

A maior emoção de Ana Maria foi que os cinco sujeitos de sua tese atingiram o propósito do estudo. Contudo, João Zinclar faleceu em 2012 em um acidente de ônibus, no qual foi a única vítima. “Não viu a minha defesa de doutorado. Sempre me perguntava em que pé o projeto estava. A voz dele continua, bem como o meu compromisso”, sustenta a historiadora, que prossegue trabalhando em programas de formação municipal e estadual.

As histórias relatadas, apesar de fazerem referência a situações específicas, mostram os sentidos que os sujeitos imprimiram aos constrangimentos impostos pela instituição escola, como também os sentidos que criaram para retornar a ela. Como a escola não é genérica e nem tampouco as suas vidas, olhar o percurso singular de cada um permitiu ao menos enxergar a diversidade da vida e de suas demandas, recorda a pesquisadora.

“Quando ouvimos histórias, narrativas, elas são ressignificadas. E elas são potentes porque nos ensinam, nos aconselham e nos tiram do lugar acostumado”, frisa Ana Maria, aludindo-se à fala do filósofo Walter Benjamin. “Mas para isso é preciso ser um bom ouvinte”, sinaliza.

 

Publicação

Tese: “Histórias contidas e nem sempre contadas na formação de jovens e adultos”

Autora: Ana Maria de Campos

Orientadora: Corinta Maria Grisolia Geraldi

Unidade: Faculdade de Educação (FE)

Financiamento: Capes