Edição nº 612

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 31 de outubro de 2014 a 09 de novembro de 2014 – ANO 2014 – Nº 612

Ciência na Paisagem


No início do século 19, a arte da pintura de paisagem ajudou a geografia a nascer como ciência e o Brasil a se enxergar como país, diz a dissertação de mestrado “A Geografia e a Paisagem Tropical nas Pinturas de Johann Rugendas”, defendida por Vonei Ricardo Cene do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp.

“A premissa desta pesquisa é que a pintura de paisagem é concomitante ao próprio processo de desenrolar do conceito de paisagem na geografia, havendo assim, uma profunda interconexão entre estes dois atos, o acadêmico, sobre a construção do conceito de paisagem e o prático, sobre a pintura e toda a técnica envolvida”, afirma o trabalho.

“Existia uma corrente, muito impulsionada por Goethe [Johann Wolfgang von Goethe, pensador, poeta e escritor alemão, que viveu de 1749 a 1832] e por Humboldt [Alexander von Humboldt, naturalista e filósofo alemão, que viveu de 1769 a 1859] que só se conseguiria transmitir o conhecimento do mundo tropical, em sua totalidade, através da pintura”, disse Cene ao Jornal da Unicamp.

“O naturalista estudava a folha, o tamanho da folha, o tamanho da árvore, o tipo de solo, eram estudos feitos por um cientista, mas cada elemento separadamente. Como eu conseguiria representar isso tudo junto? Eu precisaria de um artista, porque só a arte ia conseguir transmitir esse conhecimento científico. Então as coisas caminhavam juntas, não havia uma distinção entre ciência e arte. Era uma junção”, declarou.

Os naturalistas europeus que vinham estudar as Américas nos séculos 18 e 19, explica o pesquisador, tinham várias técnicas para preservar e analisar espécimes separadamente, mas não meios de reproduzir a sensação que os cientistas e artistas tinham do conjunto da paisagem. “A grande importância da pintura é que havia várias técnicas de dissecação, taxidermia, de secagem para levar as folhas, os frutos para a Europa”, disse Cene. 

“Só que você tirava esse elemento de seu meio. Como é esse elemento no seu meio natural? Só a pintura que permitia ver isso. Você então é um cientista, um naturalista, e eu fiz a viagem, levei todos esses materiais para você analisar. Mas se não tiver o quadro ali, você não saberia como era a harmonia dos elementos naturais in situ. Você precisava do artista para transmitir isso, mesmo que na visão particular dele”.

 

Rugendas

O fio condutor da dissertação vem da vida e da obra do artista alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858), artista que esteve duas vezes no Brasil: primeiro, como membro da expedição científica do cônsul do Império Russo no Brasil, Barão von Langsdorff [Georg Heinrich von Langsdorff, 1774-1852], e depois de forma independente. 

“O Rugendas, especificamente, era desenhista de uma família que já tinha tradição artística, e que depois vai se tornar pintor”, contou Cene. “Num primeiro momento, ele acompanha Langsdorff, alemão que era um cônsul do império russo aqui no Brasil. É o Langsdorff quem dizia ao Rugendas, nesse primeiro momento, o que devia ser representado ou não na pintura. Mas depois Rugendas rompe com ele e segue por conta própria”. Essa primeira passagem do artista pelo país vai de 1822 a 1825. Ele retorna, depois, para uma estada, de 1831 a 1846, onde além de paisagens, pinta também retratos da família imperial.

“Boa parte doas quadros que ele pinta com a família real ou com o imperador tem os retratados no meio e a vegetação ocupando o resto do quadro, para ligar o símbolo do poder político com o símbolo de identidade da terra”, disse Cene.

Além de fazer parte do estudo científico das terras tropicais, no Brasil especificamente a pintura de paisagem ajudou a construir o conceito de identidade e de nação, após a independência, conta o pesquisador.

“A natureza como peça fundamental na formação de uma nação, ganhou ressonância na elite logo após a independência, por estar apoiada na legitimação dada no imenso território”, diz o texto da dissertação, que mais adiante acrescenta: “Havia a necessidade de unir os diferentes povos que aqui se encontravam, a fim de tornar-se uma única nação. Mas não havia interesse por parte da elite em considerar a história dos nativos, muito menos dos negros trazidos como escravos. Por isso, ocorreu a exaltação da natureza”, como um substituto da história como fator de identidade nacional.

 

Geografia e história

“Na Europa a história é que cria a geografia”, disse Cene. “Primeiro surge a história, e depois nasce a geografia, como ciência. No Brasil, é a geografia que vai criar a história, na verdade. Num outro sentido de história, mas é a geografia que vai dar essa união dos povos. Era preciso um elemento que unisse todo mundo. A elite não queria a história dos negros, muito menos a dos indígenas. Então, que elemento há para eu usar e unir todo mundo? Como unir todo mundo em torno de um mesmo sentimento? Tem que ser um sentimento que dê orgulho, e que também projete prosperidade, para que todo mundo acreditasse que, através da natureza, era possível gerar desenvolvimento, o que é uma ideia que já existia na época, mesmo fora do Brasil”.

A natureza, explica o autor, ajuda a resolver três problemas na fundação do Brasil: o da criação de uma identidade comum dos brasileiros; o da conservação da unidade territorial; e a justificação do império, num continente onde o modo republicano vinha sendo adotado pelos novos países independentes. 

“Essa floresta é típica do Brasil, então todo aquele território que ela cobre pertence a nós”, relata Cene.  “No caso do império, a natureza também vai ajudar, porque projeta a exuberância, o exotismo. É como se dissesse, olha, é exuberante, é daquele país, é típico daquela região, é exótico”.

“A natureza é como um quadro em branco, você pode pôr qualquer ideologia política, qualquer contexto você pode criar lá”, disse. De acordo com a dissertação: “Buscam-se, na geografia, os elementos que pudessem ser usados como símbolos de uma nação, que a unificasse em torno deles. Encontram-se, nos estudos geográficos da natureza, fontes para tais símbolos”. E mais adiante: “Vale lembrar que a ciência era tida como elo entre uma nação e a modernidade, ser moderno era ter apreço e promover o desenvolvimento da ciência”.

O trabalho cita a criação da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro, estabelecida em sede própria em 1826, como sinal do fortalecimento da ligação entre a pintura de paisagem tropical e a ideia de criar uma nação calcada nos símbolos da natureza, processo que vem a fortalecer o reconhecimento artístico de Rugendas no Brasil.

A dissertação lembra a grande influência exercida pelo artista francês e amigo de Rugendas Félix-Émile Taunay (1795-1881), professor de pintura e paisagem da Academia e, posteriormente, seu diretor. “A Academia Imperial esteve, entre os anos de 1824 a 1851, anos de criação e consolidação, estritamente ligada à vida de Félix-Émile o qual fez dela seu projeto de vida”, diz o texto. Taunay tinha uma visão neoclássica da arte, que via como imitação da natureza, o que dava um espaço espacial à pintura de paisagens: “Dentre as contribuições da Academia e de Félix-Émile em sua direção, podemos ressaltar a importância que ele atribui ao trabalho do ensino das artes e do artista (já formado) com a representação da natureza. Félix-Émile acreditava que era preciso estabelecer uma relação entre a natureza e a obra, na qual a obra era uma imitação da natureza”.

 

Flamingos

Como a pintura poderia ser usada como instrumento científico, se toda criação artística é subjetiva? “Mas mesmo a fotografia cai nessa questão, tem o ponto de vista do fotógrafo”, disse Cene. “A obra de arte permite uma múltipla investigação: é um documento histórico, é também um elemento de como o artista vê. Então, para saber como ele vê tem que investigar todo o contexto histórico: o que estava acontecendo na política, na filosofia, na arte, por exemplo”.

Para além do apuro técnico no desenho detalhado das características de plantas e animais, Cene desvenda algumas das escolhas subjetivas feitas por Rugendas na composição geral de seus quadros. “Na pintura de paisagem dele, a mata sempre aparecia fechada. Por quê? Para dar a ideia de mata virgem: no imaginário da época, a mata virgem tinha que ser fechada. Também tem o coqueiro. Coqueiro era visto como uma coisa típica, uma marca do mundo tropical. Quase todas as obras dele têm coqueiros”. 

Outro exemplo: “Há também a ideia da natureza ocupar todo o quadro: você via só um pedacinho do céu, o que é diferente da origem da pintura da paisagem na Holanda, onde havia outra concepção, o céu ocupava metade do quadro, havia uma concepção religiosa de aproximar o céu da terra”. 

E havia também o lado comercial, que às vezes se sobrepunha à fria fidelidade científica. Muitos trabalhos de Rugendas foram reproduzidos pela técnica de litografia e reunidos num livro que fez sucesso na Europa, “Voyage Pittoresque dans les Brésil” (Viagem Pitoresca através do Brasil). “Num dos quadros, ‘Floresta virgem próxima a Mantiqueira’,  tem a floresta e dois flamingos lá no meio, sendo que o flamingo não era típico daquela floresta”, exemplifica Cene. “Mas havia essas duas coisas: ele precisava transmitir o conhecimento científico e os europeus se interessavam muito pela questão do exótico, então ele às vezes representava diferentes elementos que nem sempre estariam naquele mesmo lugar”.

 

Publicação

Dissertação: “A Geografia e a Paisagem Tropical nas Pinturas de Johann Rugendas”
Autor: Vonei Ricardo Cene
Orientador: Antonio Carlos Vitte
Unidade: Instituto de Geociências (IG)

Comentários

Comentário: 

Peço, se possível, me facilitem o contato de email de Vonei Ricardo Cene, autor da dissertação sobre Rugendas. Sou Prof. da UFMT, e autor do catalogue raisonné da obra do artista, e todo o relacionado com Rugendas me interessa. Obrigado. Pablo Diener

fadiener@terra.com.br