Edição nº 600

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 09 de junho de 2014 a 22 de junho de 2014 – ANO 2014 – Nº 600

Reformas abortadas, a falta de resistência e o papel dos EUA

Navarro de Toledo, Quartim de Moraes e Moniz Bandeira falam sobre temas abordados por eles no livro



(Continuação da página 6)

 

Na época do golpe de 1964 havia tensões entre grupos sociais e econômicos em razão de reformas sociais e econômicas (por exemplo, a reforma agrária) que se mostravam necessárias e importantes naquele contexto. Que papel o golpe de 1964 desempenhou no sentido de acomodar ou não essas tensões? Elas persistem no Brasil contemporâneo?

Caio Navarro de Toledo – Pode-se dizer que em ambas as conjunturas – no pré-1964 e no momento atual – um programa de reformas sociais e econômicas deveria se impor no capitalismo brasileiro. Ou seja, as reformas socioeconômicas postuladas nos anos 1960 também seriam necessárias 50 anos depois - a reforma agrária, a reforma bancária, a reforma tributária, a reforma urbana, o controle do capital estrangeiro etc. 

Talvez a maior diferença entre as duas conjunturas seja o fato de que, no pré-1964, as mobilizações sociais, particularmente nos últimos meses do governo Goulart, foram incentivadas pelo Executivo, pois eram vistas como recursos políticos importantes à realização das reformas. As manifestações não eram, pois, criminalizadas nem reprimidas pelo governo. 

Hoje, nas ruas e praças da atual conjuntura, as mudanças reivindicadas têm como principais protagonistas os estudantes (setores médios) e alguns movimentos sociais de extração popular, apoiados por partidos políticos socialistas. As bandeiras que, hoje, são desfraldadas nas ruas do país, contudo, não têm sido empunhadas pelas maiores centrais sindicais e partidos políticos congressuais.

Por sua vez, diante de ações que atentam contra o patrimônio de empresas privadas, particularmente bancos, o governo federal não tem hesitado em apelar para dispositivos da Lei de Segurança Nacional – herdada da ditadura militar – a fim de ameaçar o conjunto dos manifestantes. Tropas do Exército têm sido cogitadas para reforçar a ação repressiva das PMs estaduais, particularmente no período da Copa da Fifa.

Concluindo: no pré-1964 os setores nacional-reformistas e de esquerda postulavam reformas do capitalismo brasileiro na direção daquilo que Florestan Fernandes chamou da “Revolução dentro da ordem”; hoje, as revoltas estudantis e as iniciativas dos movimentos sociais – por meio de seus programas e reivindicações – não parecem questionar os fundamentos da ordem econômico-social dominante.

O senhor enfoca a ausência de resistência ao golpe de 1964. Se entendi corretamente, a atitude e comportamento do então presidente João Goulart foram decisivos para que os militares assumissem o poder com tanta “facilidade”, por assim dizer. Mas, naquele contexto histórico e social, havia condições para resistência? E, caso houvesse, seria possível outro encaminhamento histórico?

João Quartim de Moraes – No artigo, a ênfase foi sobre a ausência de resistência militar ao golpe. Uma esquadrilha da Força Aérea Brasileira (FAB) teria destroçado as tropas comandadas pelo fascista [Olímpio] Mourão Filho, que desencadeou a sedição marchando de Minas Gerais para o Rio de Janeiro. Mas os oficiais da Aeronáutica fiéis à legalidade que tentaram decolar foram presos. O mesmo ocorreu com os oficiais do Exército que esboçaram resistência. 

Bem antes dos que imaginam estar dizendo algo novo ao enfatizarem o caráter também “civil” do golpe de 1964, o saudoso Nelson Werneck Sodré, que participou do colóquio de 1994 no IFCH, sobre os 30 Anos do golpe, sublinhara com lúcida precisão que o golpe “foi político, embora operado por forças militares”. 

Werneck Sodré sustenta que “os próprios empreiteiros do golpe” surpreenderam-se com a ausência de resistência militar por parte do governo, pois sabiam que Goulart dispunha de elementos militares suficientes para a resistência – embora não seja possível saber se ela seria bem sucedida. Na visão dele, o que paralisou a ação das forças militares a favor do governo foi a prévia derrota política das forças populares que o apoiavam.

Lembrando que, de 1945 em diante, as intervenções políticas das Forças Armadas foram inspiradas pelos partidos de direita, ligados aos latifundiários e à burguesia – salvo a do general Teixeira Lott para garantir a posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek em 1955 –, Werneck Sodré constatou que os militares “devidamente dopados pelo anticomunismo e pela ação maciça da mídia”, acreditavam estar realmente salvando Deus, a Pátria e a Família. 

O senhor aponta o papel decisivo desempenhado pelos Estados Unidos no sentido de apoiar e viabilizar a ascensão de governos militares na América Latina, num contexto em que se buscava conter uma suposta onda revolucionária esquerdista. Sem a influência dos Estados Unidos, o golpe de 1964 teria acontecido?

Luiz Alberto Moniz Bandeira – O golpe de Estado, que derrubou o governo João Goulart e destruiu o regime democrático no Brasil, não teria ocorrido se os Estados Unidos não o houvessem preparado e patrocinado. A documentação desclassificada não deixa a menor sombra de dúvida. 

Após a Revolução Cubana, em 1960, as atenções dos Estados Unidos voltaram-se mais e mais para a América Latina e, particularmente, para o Brasil. Àquela época, a Junta Interamericana de Defesa (JID), por iniciativa do Pentágono, aprovou a Resolução XLVII, em dezembro de 1960, propondo que as Forças Armadas, percebidas como instituição mais estável e modernizadora no continente, empreendessem projetos de “ação cívica” e aumentassem sua participação no “desenvolvimento econômico e social das nações”.

Em seguida, janeiro de 1961, John F. Kennedy, ao assumir a presidência dos Estados Unidos, anunciou sua intenção de implementar uma estratégia tanto terapêutica quanto profilática com o objetivo de derrotar a subversão onde quer que se manifestasse. E o Pentágono tratou de priorizar, na estratégia de segurança continental, não mais a hipótese de guerra (HP) contra um inimigo externo, extracontinental (União Soviética e China), porém a hipótese de guerra contra o inimigo interno, isto é, a subversão. 

Essas diretrizes, complementando a doutrina da contra insurgência, foram transmitidas, através da JID e das escolas militares no Canal do Panamá, às Forças Armadas da América Latina, região à qual o presidente Kennedy repetidamente se referiu como “the most critical area e the most dangerous area in the world” [a região mais crítica e mais perigosa no mundo]. 

O surto de golpes desfechados pelas Forças Armadas no continente, a partir de então não decorreu somente de fatores domésticos, mas, principalmente, da mutação na estratégia de segurança do hemisfério realizada pelo Pentágono, com o fito de submeter às diretrizes de Washington dos países que recalcitravam e se opunham à intervenção e à ruptura relações com Cuba. 

Essas intervenções militares na política doméstica, induzidas pelos Estados Unidos, constituíram batalhas da hidden World War Three, da Guerra Fria. Constituíram um fenômeno de política internacional, aí fora necessário criar as condições objetivas, tanto econômicas quanto sociais e políticas, que compelissem as Forças Armadas a derrubar governos contrários aos interesses dos Estados Unidos. 

A CIA dedicou-se, então a promover spoiling operations, operações de engodo, uma das quais consistia em penetrar nas organizações políticas, estudantis, trabalhistas e outras para induzir artificialmente a radicalização da crise, a fim de criar as condições para a intervenção das Forças Armadas. Com efeito, o golpe militar de 1964 foi made in USA, ou seja, planejado, articulado e impulsionado por Washington. O Pentágono, a partir de julho de 1963, começou a elaborar vários planos de contingência, denominados “Brother Sam”, que consistiam no envio de uma força-tarefa, com o porta-aviões Forrestal, para o litoral do Brasil, com a missão de dar apoio logístico aos insurgentes e desembarcar marines, se o golpe de Estado desencadeasse uma guerra civil. 

O presidente João Goulart, informado sobre a preparação dos Estados Unidos para intervir militarmente e dividir o Brasil, percebeu que qualquer resistência poderia representar um gesto heróico, porém não passaria de uma aventura, inútil o derramamento de sangue, uma “sangueira” inútil, conforme sua própria expressão.

 

Entendendo o discurso dos generais

RODRIGO OLIVEIRA FONSECA

A nova edição de A fala dos quartéis e as outras vozes chega em um momento especial. Em razão do clima político no país, o aniversário de 50 anos do golpe de 1964 não foi burocrático ou melancólico. Trouxe mais ingredientes ao caldeirão ideológico que cozinha os humores nacionais desde junho passado, e que também se manifesta em torno dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade. E, em razão da Copa do Mundo da Fifa no Brasil, os sentidos de pátria estão em disputa nas ruas, sob o risco de enquadramento de manifestantes e grevistas como terroristas e inimigos da lei e da ordem. Também por isso, é mais que pertinente saber como falavam aqueles que, por 21 anos, arvoraram-se da tarefa de salvar o país da desordem, da corrupção, da república sindicalista e do comunismo. 

Em perspectiva discursiva e não subjetivista, pertinente à filiação teórica de Freda Indursky a Michel Pêcheux, a questão que o livro desenvolve é: o que falou aí, em todos estes anos, desde o lugar da Presidência da República?

Indursky, ao analisar o discurso presidencial da República Militar Brasileira à luz da Análise de Discurso (AD), contribui para o adensamento de nossa compreensão do discurso político e, em especial, dos meandros do autoritarismo. Mobiliza de modo singular e produtivo autores como J.J. Courtine e Claudine Haroche. No caso desta última, propõe importante ajuste no tocante ao conceito de determinação discursiva, pelo qual a saturação de um substantivo associa-se a uma seleção de cunho ideológico: democracia decente, bons brasileiros, a única e autêntica revolução nacionalista.

São instigantes as análises do livro, demonstrando e atravessando as fronteiras entre a sintaxe frasal e a sintaxe discursiva. Formas de negação, de discurso relatado, de interlocução e (in)determinação... — atestamos em sua base linguística o fato de que uma formação discursiva, mesmo autoritária, não é um monólito homogêneo, fechado em si mesmo e estático. Por exemplo, os funcionamentos de NÓS nas falas presidenciais. Do majestático à imagem de porta-voz do regime, há também a captura de interlocutores em teias para lá de constrangedoras (“Digo ‘nossa’ revolução, neste instante, sobretudo porque ela foi obra também da imprensa”, atirou Costa e Silva sobre jornalistas em coletiva de 1969). 

Um processo interessante é o da construção da quarta pessoa discursiva. Após percorrer a origem psicanalítica do conceito, forma de ausentar-se do seu dizer, Freda Indursky trabalha o seu funcionamento propriamente discursivo, pelo qual se indetermina o agente da enunciação, falando de si como se falasse de outro. Seja em “Hoje o sacrifício que se pede é a véspera da prosperidade nacional” (Castelo Branco), ou em “Se o governo não tivesse o partido, só se poderia realizar uma grande e ampla obra num país em ditadura” (Geisel), o SE das construções transitivas pronominais produz o efeito de uma verdade absoluta em torno de fatos que independem da vontade do enunciador. Apaga-se o agente político que pede sacrifícios à população, no período em que “se” rebaixaram os salários aos menores índices de toda a história; o mesmo agente que não pode prescindir de seu partido, a Arena, para emprestar ares de democracia ao governo. 

Um elemento-chave do caráter autoritário desse discurso refere-se às formas de construção do outro, em representações como povo, classes trabalhadoras, (bons e maus) brasileiros etc. Ora o dilui, ora o indetermina, e por vezes fala desse outro como ventríloquo. Quando o outro é o contrário ao governo, a conjuntura histórica implica fortes inflexões no dizer: determina que nas falas de Castelo Branco, Geisel e Figueiredo ele seja um alvo fácil e sempre visível, enquanto nas de Costa e Silva e, de modo extremo, de Médici, haja um ocultamento radical, um recalcamento da oposição, não havendo lugar para emergir o diferente, o externo e o oposto, em sensível proporção ao avanço da repressão política. 

Muito da AD brasileira só se conhece por artigos e livros de coletâneas, nos quais os procedimentos de análise da materialidade linguística dos discursos, em geral, pouco aparecem. Nesse sentido, A fala dos quartéis é um prato cheio para todos os que apreciam a sustentação analítica desse campo, de(sen)volvendo muitas questões pertinentes aos estudos de linguagem.

A fala dos quartéis também é um banquete para os apreciadores das análises do discurso político, e contribui com aqueles campos de saber que tomam a política e o político como questão. 

J.J. Courtine diz que em AD é preciso ser linguista e deixar de sê-lo ao mesmo tempo. Freda Indursky faz algo ainda mais arrojado, não deixando de ser linguista em momento algum, incitando-nos a acompanhar a todo instante a demanda e as insuficiências do saber linguístico em torno das práticas ideológicas que se materializam nos discursos. Essa é, afinal, mais uma forma de nos recusarmos a ser capturados na cruel e autoritária injunção entre amar e deixar.

 


Rodrigo Oliveira Fonseca é pesquisador associado da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

 





Serviço

Título: A fala dos quartéis e as outras vozes
Autora: Freda Indursky
Páginas: 352 
Preço: R$ 46,00
Editora: da Unicamp