Edição nº 600

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 09 de junho de 2014 a 22 de junho de 2014 – ANO 2014 – Nº 600

Na gênese do golpe

Três dos intelectuais que participam do livro “1964 – Visões críticas do golpe: democracia e reformas no populismo”, relançado pela Editora da Unicamp, analisam as origens e os reflexos da ditadura



Voltar às razões e aos significados do golpe de 1964, que resultou em 21 anos de ditadura, é a proposta central do livro “1964 – Visões críticas do golpe: democracia e reformas no populismo”, organizado pelo filósofo Caio Navarro de Toledo, professor aposentado do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.

A obra, cuja segunda edição foi recentemente lançada pela Editora da Unicamp, reúne artigos de 13 intelectuais que jogam luz sobre a economia, a política, os movimentos sociais, as possibilidades de resistência e os legados de um dos acontecimentos que mais fortemente modelaram a sociedade brasileira contemporânea: a tomada do poder pelos militares em 31 de março de 1964.

Ao longo dos artigos, os autores expõem suas visões – muitas das quais pautadas por suas próprias vivências dos acontecimentos daquele período – sobre a sociedade brasileira no contexto pré-golpe, elucidando os arranjos sociais, políticos e econômicos que funcionaram como mote para a tomada do poder pelos militares. Os artigos, por sua vez, constituem a súmula do seminário “O Golpe de 1964: 30 anos”, realizado no IFCH em março de 1994 e que resultou na primeira edição da obra, publicada três anos após o evento. 

Como um mosaico, o livro “1964” traz à tona dimensões fundamentais para se compreender o Brasil contemporâneo, especialmente no que diz respeito ao jogo de forças entre os diferentes atores sociais, as dinâmicas desencadeadas nessas interações permeadas por ideologias, interesses e visões de mundo, bem como seus efeitos sobre a vida dos brasileiros. Nessa medida, o livro funciona como um espelho, que nos permite olhar para o presente a partir da lente do passado. 

Assim como em certa medida ocorre hoje, a pauta de reivindicações de 50 anos atrás perpassava o acesso a direitos sociais, a reforma agrária e o equilíbrio da economia – dentre outras questões. O Brasil de hoje não é obviamente o mesmo de João Goulart, mas é possível identificar, nas análises dos intelectuais que participam do livro, continuidades e relações entre o presente e um passado não tão distante.

A seguir, três dos autores que participam da coletânea, apresentam algumas reflexões sobre o golpe militar e seus legados. 

Caio Navarro de Toledo analisa detalhadamente a teia de relações políticas e sociais do Brasil nos primeiros anos da década de 1960 e alerta para importância e a necessidade de se fortalecer o debate público e a memória do golpe de 1964 e da ditadura militar.

O professor titular aposentado do IFCH da Unicamp João Quartim de Moraes analisa o impacto negativo do golpe militar sobre o intenso processo de reformas de base que o Brasil vivia no início da década de 1960. Moraes, que é bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais e em Filosofia, enfatiza o papel da burguesia na sustentação do golpe militar, visando à manutenção de seus privilégios – o que evidenciaria, segundo ele, uma afinidade das elites com o fascismo.

Já o bacharel em Direito Luiz Alberto Moniz Bandeira – professor titular aposentado de História da Política Exterior na Universidade de Brasília (UnB) que atualmente atua como professor visitante nas universidades de Heidelberg e Colônia, na Alemanha – revive, a partir de suas pesquisas documentais, o papel central desempenhado pelos Estados Unidos na materialização do golpe que resultou na derrubada de João Goulart.

Leia, a seguir, os principais trechos das entrevistas concedidas ao Jornal da Unicamp.

 

 

Qual o legado do golpe militar de 1964 para a sociedade brasileira? Qual foi o seu impacto na constituição/consolidação da democracia política no país?

Caio Navarro de Toledo – O golpe de 1964 estancou um extenso movimento social e político que, no início da década de 1960, reivindicava o aprofundamento da democracia política no país. 

A batalha contra o caráter excludente da democracia liberal se manifestava em torno de reivindicações como direito ao voto dos analfabetos e dos subalternos das Forças Armadas, irrestrita liberdade partidária e ideológica, liberdade de imprensa, ampliação da liberdade de organização sindical, revogação da Lei de Segurança Nacional, dentre outras. 

No campo, percebia-se – em virtude da presença das extensas propriedades rurais e do latifúndio improdutivo – a inexistência de relações democráticas, manifestadas, por exemplo, no poder arbitrário dos coronéis, na violência e nos “currais eleitorais”. 

Bem sabiam, pois, os setores nacional-reformistas e de esquerda que a reforma política não podia se dissociar de reformas sociais e econômicas defendidas por setores partidários, pelas Ligas camponesas, pelos sindicatos, pelos subalternos das Forças Armadas, pelas entidades estudantis. 

Contra uma ampla mobilização social – representada pela emergência na cena política de novos atores e movimentos – organizam-se as frentes partidárias e núcleos político-ideológicos do empresariado (nacional e multinacional), a grande mídia, a cúpula da Igreja Católica, as agências de inteligência e o governo dos Estados Unidos.  Estes setores civis interpelarão as Forças Armadas a fim de dar um basta à “subversão” em curso no país. O golpe militar, pois, teve amplo apoio de setores significativos da sociedade civil brasileira.

O legado político do golpe de Estado e da ditadura militar foi altamente negativo à cultura política do país. Além de o golpe bloquear o avanço da democracia política, o regime militar destruiu as entidades dos trabalhadores e impôs, de forma sistemática, o medo e a repressão sobre a vida política. 

João Quartim de Moraes – O legado do golpe foram 21 anos de ditadura. Ele veio para enterrar as reformas de base, o movimento de cultura popular, a política externa independente, o espírito crítico e contestador dos estudantes e intelectuais, em suma, o novo Brasil socialmente avançado que se anunciava nas lutas de massa e das forças de esquerda. 

O aspecto mais macabro desse funesto legado é, sem dúvida, a institucionalização da tortura como método de extorsão rápida de informações úteis ao aniquilamento da resistência clandestina. 

O golpe deixou também para a consciência democrática nacional uma lição histórica de grande valia para as gerações presentes e futuras: em situações de crise política aguda, quando o controle exercido sobre a “opinião pública” pelos grandes meios privados de comunicação social não logra garantir a “funcionalidade” do sufrágio universal, a burguesia, para manter seus privilégios econômicos, portanto suas posições de classe, redescobre sua afinidade com o fascismo. 

Para manter a “liberdade” essencial, a propriedade privada dos meios sociais de produção, os capitalistas não têm escrúpulos em revogar o conteúdo ético-político do liberalismo (“Estado de Direito”, liberdades e garantias individuais, etc.), trocando-o por medidas (e, se necessário, por regimes) de exceção, que vão do “estado de sítio” às ditaduras militares. 

Ao assumir a presidência em 1974, Ernesto Geisel anunciou um projeto de “abertura política lenta e gradual” que acarretou, dentre outras coisas, a ab-rogação do Ato Institucional nº5, após mais de 11 anos de vigência. Essa manobra bem sucedida de estabilização conservadora implicou na renúncia ao poder discricionário do Estado de exceção. 

Mas o regime não renunciou ao controle dos centros nevrálgicos do poder – ao contrário, pretendia assegurar por outros métodos a continuidade da política de estabilização conservadora vigente desde 1964. Não tem cabimento falar, nesse contexto, em democratização ou redemocratização. Democracia é o regime político em que o povo é soberano. 

Luiz Alberto Moniz Bandeira – O legado do golpe de 1964 foi o pior possível para a sociedade brasileira. Seu impacto foi extremamente negativo para a evolução da democracia no Brasil. A ditadura militar desarticulou todo o sistema político e partidário existente no país, bem como corrompeu e prostituiu o Congresso, com a prática das cassações de mandato e suspensão de direitos políticos. 

E, devido ao sufoco da liberdade e ao terror que o Estado impunha, a corrupção grassou, mais do que em qualquer governo. Um empresário alemão, que tinha inclusive contribuído financeiramente para o golpe, mostrou-se arrependido, ao dizer-me, em 1976, que sob o governo militar até para entrar em uma concorrência ele tinha de oferecer dinheiro, o que antes nunca tivera de fazer.

(Mais nas páginas 6, 7 e 8)

 

 




Serviço

Título: 1964 – Visões críticas do golpe: democracia e reformas no populismo
Organização: Caio Navarro de Toledo
Páginas: 208 páginas
Preço: R$ 40,00
Editora: da Unicamp