Edição nº 593

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 07 de abril de 2014 a 13 de abril de 2014 – ANO 2014 – Nº 593

Nas trilhas de um gênio


Vinícius de Moraes, um de seus parceiros, lhe pediu a bênção no samba famoso que só homenageia os grandes: “A bênção, maestro Moacir Santos/ Não és um só, és tantos, como o meu Brasil de todos os santos”. Mas, embora tantos, e respeitado, o “Ouro Negro”, como era chamado, Moacir Santos demorou a ocupar o lugar que era apenas seu, no panteão dos mestres da música brasileira. Em 1967, quando deixou o trabalho de tantos anos na Rádio Nacional do Rio de Janeiro, foi para a Califórnia. Permaneceu e lá morreu, em 2006, uma centelha menos ignorado no Brasil, graças à iniciativa dos músicos Mário Adnet e Zé Nogueira, que transcreverem seus arranjos originais cinco anos antes, e lançaram o álbum duplo Ouro Negro, com as participações de Milton Nascimento, João Donato, Gilberto Gil, Djavan, Ed Motta e do próprio Santos.

Deu-se então um processo de redescoberta da obra de Moacir Santos, e se ainda hoje o maestro permanece desconhecido do grande público, pelo menos no circuito artístico e musical existem grupos e festivais em sua homenagem. Seus arranjos e composições são cultuados. “Foi o responsável pela renovação da linguagem da harmonia no país”, lemos nas páginas especializadas. O professor de Paulo Moura, Oscar Castro-Neves, Baden Powell, Maurício Einhorn, Sérgio Mendes, João Donato, Roberto Menescal, Dori Caymmi e Airto Moreira, entre outros, subiu aos céus pelas mãos dos artistas. Saravá!

Foi antes de lançar Coisas, seu primeiro álbum solo, que Moacir Santos ingressou no universo audiovisual, repetindo a história de uma geração de compositores anterior à sua, e que, do rádio, fez suas incursões no cinema e na TV. Radamés Gnatalli e Guerra-Peixe haviam trabalhado nas companhias cinematográficas Atlântida e Vera Cruz. Santos encontrou um cinema diferente dos seus antecessores, mais independente e com menos recursos. Ainda assim manteve sua marca de sofisticação, equilibrando o erudito com o popular na medida certa.

As trilhas musicais feitas por ele para cinco filmes, realizados no período entre 1963 e 1966, formam o recorte da dissertação de mestrado “A trilha musical como gênese do processo criativo na obra de Moacir Santos”. Seu autor, Lucas Zangirolami Bonetti, procurou aprofundar-se neste período da carreira do maestro, que era apenas citado em suas biografias. “Sua música autoral tem muitos traços destas trilhas, importantíssimas para a consolidação do trabalho de Santos como compositor, inclusive”, assinalou Lucas. O pesquisador afirma que, juntamente com o álbum de 1965, as trilhas foram os primeiros trabalhos autorais lançados pelo compositor.

Audiovisual
O cinema brasileiro na década de 1960 experimentava as primeiras tentativas de gravação com equipamentos novos e gravadores portáteis. “Nesse período, ainda foi muito comum o uso de gravações pré-existentes, tanto de música erudita como de música popular contemporânea. Havia menos verba para contratar um compositor, um grupo, uma orquestra”, afirma Lucas. Porém, as trilhas de Santos ainda refletem o período mais abastado, que se aproxima das formações orquestrais.

Na década anterior, os maestros tinham mais autonomia para escrever as músicas nas companhias cinematográficas. “Havia uma tradição sinfônica, romântica, do século 19, com aquela música orquestral que dialogava um pouco mais com o cinema hollywoodiano”. Mesmo tendo formação tradicional, ressalva o pesquisador, Moacir Santos conseguia fundir a escrita formal com a música popular, especialmente de temática afro-brasileira, folclórica, ou processos composicionais que remetem a gêneros nordestinos. 

“Moacir vai trabalhar com o cinema autoral, mas ainda tem essa tradição arraigada dos compositores que o precederam. Suas trilhas refletem um pouco isso. Às vezes, conseguimos ver um número maior de sopros e de escrita coral, que não eram tão comuns nessa década”, complementa o autor da dissertação. Mais sofisticação, apesar de menos dinheiro. Santos escreve partituras para formações de cinco ou até 15 músicos ou mais. Isso se deve, de acordo com o mestrando, ao fato de as produções às quais o maestro foi convidado investirem maiores quantias. É o caso do filme Seara Vermelha (1964), de Alberto d’Aversa, grande produção audiovisual brasileira, com uma verba alta para os padrões da época.

Segundo a pesquisa, o filme custou mais de 60 milhões de cruzeiros, e foi considerado um dos mais caros realizados até aquele momento. “Isso acabou refletindo na trilha musical, que apresenta vigoroso uso orquestral com composições feitas especialmente para a produção”, ressalta Lucas.

Outros filmes que compõem o trabalho científico e que tiveram um bom investimento na parte musical, apresentando formações instrumentais grandes e/ou médias ou orquestrais, foram: O Beijo (1964), de Flávio Tambellini; e Ganga Zumba (1964), de Carlos Diegues. Além destes, Lucas pesquisou O Santo Módico (1964), de Sacha Gordine e Robert Mazoyer; A Grande Cidade (1966), de Carlos Diegues; e Os Fuzis (1964), de Ruy Guerra. 

“O foco da primeira parte do trabalho foi a análise individual de todas as trilhas, que foram transcritas em partituras. Também foram recortados trechos de filmes com o objetivo de avaliar cena a cena a articulação dramático-narrativa da música”. No segundo momento da dissertação, Lucas verificou nas trilhas o que resultou em composições posteriores e aparecem em discos autorais de Moacir Santos. Tanto no álbum Coisas, como nos outros trabalhos, o pesquisador encontrou às vezes melodias inteiras, ideias de instrumentação, frases, ideias melódicas ou até composições prontas que estavam nos filmes. 

Em A Grande Cidade, de Carlos Diegues, Santos não atua como compositor, mas como diretor musical e tem a responsabilidade de escolher o material musical. Utiliza então Ernesto Nazareth, Villa-Lobos, e uma compilação de outros artistas. No exercício desta outra função, Santos faz uso da música de maneira rebuscada e semelhante às suas composições, como avalia Lucas. “E isso se deu pela refinada escolha de materiais que dialogam com a ação fílmica, e que dão unidade à obra”, acrescenta.

O pesquisador ressalta mais uma qualidade do maestro: Santos realizava uma pesquisa aprofundada sobre a temática do filme, o que fazia parecer que cada produção havia sido realizada por um compositor diferente. “Em Seara Vermelha, que trata de retirantes nordestinos, é uma música mais sinfônica, mas que trabalha com todos esses processos e conceitos da música modal. Em Ganga Zumba, em que a temática é a fuga de escravos de uma fazenda para Palmares, o trabalho é feito com instrumentos típicos como atabaques, executando diversas rítmicas que dialogam com o candomblé”.

Em Os Fuzis, que trata da seca e da fome no Nordeste, Santos suprime partes da música e utiliza o silêncio para obter o significado narrativo/dramático que ele pretendia. O tema principal, Bluishmen, surge na segunda faixa do álbum The Maestro, o primeiro lançado nos Estados Unidos, em 1972, pelo selo Blue Note. “Na trilha do filme, a música é tocada por um instrumento solo quase que sem tempo, uma melodia bastante lírica. No álbum de 1972 se transforma em uma composição que reúne quase uma big band”, salienta Lucas.

Especial

A música de Moacir Santos equilibra a simplicidade e o requinte composicional, complementa Lucas. “Apesar de não ser um acadêmico, o maestro era um pesquisador informal que dedicou sua vida ao estudo da música”. A carreira do compositor reflete o investimento. Saiu do interior de Pernambuco, alcançando uma posição de destaque na Rádio Nacional do Rio de Janeiro, uma das mais notórias do país. Do rádio para a TV Record e, depois, a carreira internacional.

O pesquisador enfatiza a forte expressão jazzística na obra do compositor, que se revela na improvisação e instrumentação, especialmente de sopros (metais como saxofone, trompete, trombone, flauta e clarinete). Todo o trabalho que também aparece nas trilhas para o cinema. “Uma das ideias para desenvolver essa pesquisa foi exatamente retomar o trabalho do Moacir como compositor de audiovisual, já que as publicações que falavam sobre ele ainda não traziam nenhum aprofundamento sobre este período. O trabalho recupera esses filmes para o universo da pesquisa e disponibiliza as partituras que não existiam. É uma ideia que pode ramificar em diversas outras pesquisas. Esperamos que isso aconteça”.

Publicação
Dissertação: “A trilha musical como gênese do processo criativo na obra de Moacir Santos”
Autor: Lucas Zangirolami Bonetti
Orientador: Claudiney Rodrigues Carrasco
Unidade: Instituto de Artes (IA)

Veja os vídeos:
Ganga Zumba
O beijo
Seara Vermelha

Vídeo Ascom/RTV