Edição nº 593

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 07 de abril de 2014 a 13 de abril de 2014 – ANO 2014 – Nº 593

Dissertação revela caos na regulação fundiária no país

Estudo do Instituto de Economia analisa ocupação de terras no Brasil após 1964

Em raríssimo esforço no combate aos problemas fundiários no Brasil, o Instituto de Terras do Pará (Iterpa) desencadeou um processo de mapeamento das terras públicas e de combate à grilagem que culminou no cancelamento de mais de 10 mil títulos de terras, referentes a uma área de 500 milhões de hectares. O dado correspondente ao período 2007-2010 é ainda mais assombroso quando comparado com o próprio território do Pará, 125 milhões de hectares, quatro vezes menor. Existe também a estimativa de que 30 milhões de hectares estejam nas mãos de grileiros, que utilizam esses documentos falsos, muitos deles forjados em cartórios de registros de imóveis, para se apossar de terras públicas.

O estudo do caso do Pará recheou de números a pesquisa de mestrado de Vitor Bukvar Fernandes, cujo objetivo é demonstrar que o Estado brasileiro não tem controle sobre suas terras (devolutas), desconhecendo inclusive a extensão e localização das mesmas; e que o fenômeno jurídico da posse, especialmente sobre estas áreas não demarcadas, amplifica o caos em matéria de regulação fundiária ao permitir a privatização de patrimônios públicos. A dissertação “Passado não resolvido: a histórica falta de regulação na ocupação de terras no Brasil após 1964” foi orientada pelo professor Bastiaan Philip Reydon e apresentada em fevereiro no Instituto de Economia (IE) da Unicamp.

“O trabalho aborda um padrão de apropriação de terras que se repete desde a descoberta do Brasil e que considero perverso por se sustentar em uma estrutura agrária altamente concentrada, mantendo-se até hoje em essência”, afirma Vitor Fernandes. “Em minha opinião, este padrão de expansão com a apropriação territorial na fronteira está diretamente ligado a mazelas como base fundiária concentrada, degradação ambiental (sobretudo desmatamentos), grilagem de terras, conflitos violentos e trabalho escravo no campo. E agora, como no passado, temos os indígenas entrando em choque com esta frente de expansão que ameaça as reservas na Amazônia.”

Para definir seu projeto de pesquisa, o economista se inspirou na tese de doutorado de uma historiadora, Lígia Osório Silva, autora do livro “Terras devolutas e latifúndio”, em que ela resgata a história da apropriação territorial da chegada dos portugueses até 1930. “Gostei do tema e me apropriei da ideia central da autora no intuito de mostrar que aquele padrão se mantém, pois sempre houve uma distância muito grande entre a letra da lei e a forma como se dá a apropriação efetivamente. Meu recorte para o período anterior e posterior a 1964 se deve ao fato de que o golpe militar abortou todos os esforços de intelectuais e de movimentos populares para resolver a questão agrária.”

Vitor Fernandes recorda que a sesmaria – instituição jurídica portuguesa trazida para normatizar a distribuição de terras brasileiras – foi dominante até meados do século 19. Tratava-se de uma concessão mediante a contrapartida de que áreas mínimas fossem destinadas à produção, sob o risco de retomada da terra. “Era este o sentido das sesmarias em Portugal, mas não funcionou assim no Brasil, que sempre praticou uma agricultura itinerante e que deixa para trás a terra desgastada. Era informalmente aceito que o beneficiário utilizaria apenas parte da extensa área concedida, até desgastá-la e passar a outra parte, sucessivamente. Como sempre houve necessidade de expansão da fronteira interna, a demarcação de terras devolutas não era politicamente interessante.”

Segundo o autor da dissertação, o golpe de misericórdia contra o sistema de sesmarias se deu com a primeira Lei de Terras, em 1850. A proposta era que o Estado assumisse o controle de suas terras e os interessados passassem a comprar os títulos, proibindo-se o apossamento. “Na prática, porém, os posseiros continuaram invadindo e se apossando das terras públicas que o governo não conseguia demarcar, para depois regularizá-las, transformando-as em patrimônio privado. Não falo necessariamente do grande posseiro, mas como o apossamento se dá principalmente pela força, o pequeno pode ser expulso pelo primeiro, e não o contrário. Tivemos a Independência, a Proclamação da República, a Constituição, e este padrão se mantém em essência.”

Fernandes ressalta que, talvez excetuando a Holanda, o Brasil é o único país a possuir uma instituição de tipo paraestatal como os cartórios de registro de terras, que mesmo sendo idôneos em maioria, contribuem para o caos na regulação fundiária abrindo margem para a grilagem. “Os Estados Unidos, por exemplo, adotam uma legislação agrária denominada Homestead Act, assinada por Abraham Lincoln em 1862 dentro do esforço para ocupar o oeste americano. Em troca de uma quantia simbólica, os aventureiros recebiam lotes de terras federais [65 hectares] que já ficavam demarcados; não havia esta flexibilidade do Brasil, que até hoje não controla a maior parte das terras devolutas.”

O registro de entrada no Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), conforme o economista, indica a localização e dimensão da terra, mas menos de 5% das propriedades estão georreferenciadas. “É preciso considerar ainda as propriedades que contam com ‘vários andares’, ou seja, vários registros de terras no mesmo lugar (ou com intersecções entre elas). Pouco se repara no detalhe de que o Brasil é um dos últimos países onde a fronteira interna continua em expansão; e que a permanência deste padrão de apropriação territorial depende exatamente da existência de terras reservas, como vemos no oeste do Pará. Os grandes proprietários vão se apropriando e reconcentrando a base fundiária, enquanto os pequenos acabam expulsos para as franjas.”

 

Expectativa abortada

Vitor Fernandes vê a década de 1950 até 1964 como o momento de maior expectativa de mudanças na estrutura agrária, devido à efervescência dos movimentos sociais (Ligas Camponesas obviamente incluídas) e de intelectuais como Caio Prado Junior, Alberto Passos Guimarães e Ignácio Rangel na discussão das reformas de base. “Na época, a maioria da população já morava nas cidades, mas ainda existia margem para uma distribuição de terras. Apesar de especificidades apontadas por cada autor, prevalecia o consenso de que a concentração da base fundiária era arcaica, um problema a ser resolvido. Mas o movimento foi abortado pelo golpe.”

Na opinião do pesquisador, contribuiu decisivamente para a manutenção do padrão fundiário o peso político exercido nos anos 80 e 90 pela UDR [União Democrática Ruralista], representante de uma oligarquia rural que, por sua vez, foi um dos pilares de sustentação dos governos militares. “Um fato irônico é que o Estatuto da Terra foi promulgado em 1964 e, lendo a lei, notamos uma regulação bastante progressista, com figuras até então inexistentes como da desapropriação por interesse social e da necessidade de cobrança do Imposto Territorial Rural.”

Fernandes acrescenta que igualmente irônico foi o fato de que a aprovação do Estatuto da Terra com uma redação tão progressista se deu por influência direta dos EUA. “Logo depois da revolução cubana criaram a Aliança para o Progresso, por temor de um possível levante comunista caso não se promovesse alguma distribuição de terras dentro dos países da América Latina. Para o Brasil interessado em recursos que financiassem seus projetos de desenvolvimento, a solução veio no jeito malandro de fazer passar o estatuto, mas postergando a sua aplicação, que nunca ocorreu a pretexto da necessidade de aprovação de dispositivos específicos.”

Estratégia semelhante, conforme observa o economista, foi empregada na Constituição de 88, que em relação ao campo resultou em texto bem mais retrógrado que do Estatuto da Terra. “José Gomes da Silva, que participou da elaboração das questões agrárias no anteprojeto da Constituição de 88, possui dois livros – ‘Caindo por terra’ e ‘Buraco negro’ – mostrando que todos os assuntos problemáticos, que criavam impasse, foram jogados no buraco negro e abafados. E, tanto nos governos neoliberais como nos mandatos de Lula, persistiu o total descontrole sobre as terras devolutas, não se registrando o menor esforço para arrecadá-las.”

O pesquisador informa que uma breve exceção se deu no Pará, na gestão da petista Ana Júlia Carepa (2007-2010), e justifica a escolha deste estudo de caso por se tratar de um Estado territorialmente extenso e que experimenta a expansão da fronteira interna há 40 anos. “Nesta fronteira, os problemas gerados pela falta de regulação e pela apropriação de terras devolutas através do apossamento se tornam exponenciais. De fato, o Pará é o Estado que registra mais mortes em conflitos fundiários, mais trabalho escravo e um dos mais altos índices de desmatamento. Ao mesmo tempo, como o Brasil é o país dos paradoxos, o governo paraense fez um esforço político que resultou em 500 milhões de hectares de títulos cancelados, na demarcação de terras indígenas e na regularização de propriedades de pequenos posseiros. Não se deu sequência a este esforço a partir de 2010, mas ele trouxe uma luz, mostrou o melhor caminho.”

Na visão de Vitor Fernandes, o melhor caminho é a reorganização institucional para que os órgãos que lidam com as questões da terra – Incra, ministérios, Funai, Institutos da Terra, municípios, cartórios – se comuniquem. Nesse sentido, ele revela que já trabalha como assistente de pesquisa do professor Bastiaan Reydon, seu orientador, que vem articulando esforços em busca de melhorias na governança fundiária, tanto em projetos com o Banco Mundial quanto em iniciativas recentes ao lado do Ministério do Desenvolvimento Agrário. “O primeiro passo é consolidar um cadastro único [cada órgão possui o seu] para que uma instituição não invada a área da outra, com a sobreposição de responsabilidades e interesses. A assimetria de poder, diante dos que se opõem a mudanças na estrutura fundiária, ainda é enorme. E hoje, com a modernização da agricultura, o latifundiário não é mais o coronel, é quem tem escritório na Paulista e atua em nome de um grupo que mistura terra com capital financeiro, gerando outro tipo de embate.”

 

Publicação

Dissertação: “Passado não resolvido: a histórica falta de regulação na ocupação de terras no Brasil após 1964”
Autor: Vitor Bukvar Fernandes
Orientador: Bastiaan Philip Reydon
Unidade: Instituto de Economia (IE)

Comentários

Comentário: 

Parabéns Vitor e Bastiaan pelo trabalho. Desejo sucesso na articulação para a melhoria da governança fundiária no Brasil. Na verdade o que falta no Brasil é a melhoria da governança em praticamente todas as áreas.

Atenciosamente

Tomaz

tomaz@nipeunicamp.org.br

Comentário: 

Estou impressionado com o trabalho de Vitor & Bastiaan. E inacreditavel como nosso Brasil e mal administrado. Achei esta pagina no meu interesse de conhecer mais como funcionou o homestead act nos EUA e me perguntei a mim mesmo como funciona aqui no Brasil. Um absurdo e descaso! Todos deveriam ler esta pagina para conhecermos o governo que temos!

carlos@aol.com