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Edição nº 588

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 24 de fevereiro de 2014 a 09 de março de 2014 – ANO 2014 – Nº 588

Eustáquio,


Na manhã do dia 8 de junho de 2010, uma terça-feira, você planejou ir à Unicamp para encaminhar os papéis de sua aposentadoria. Havia muito tinha em mente o que fazer com ela e disso não fazia segredo a ninguém, pelo contrário; passaria a dedicar-se à literatura em tempo integral. Agora não se tratava apenas de acalentar o sonho, mas de pavimentar a perspectiva, que já vinha se abrindo, muito concreta, nos meses propiciados por férias e licenças vencidas, que você aproveitou para, justamente, escrever.

Lalinka o levaria à universidade, pois tinha assuntos também a tratar por lá; iriam depois que ela e Vera voltassem de outro compromisso. Você as esperava em seu escritório, nos fundos da casa. Trancara a porta – costume de escritor cioso das exigências e prerrogativas do ofício, a principal das quais, no caso, sendo a reclusão temporária, com alheamento do espaço doméstico. Ao voltar, Vera foi avisá-lo; chamou-o várias vezes e você não respondeu. Pegou a cópia da chave e abriu a porta. Encontrou-o derreado no sofá em que costumava descansar.

“Dissecção da carótida” é a expressão médica que se empregará para explicar o acidente que comprometeu a metade esquerda de seu cérebro. Cirurgiões abriram sua caixa craniana, para aliviar a pressão do órgão inflamado. Por quase um mês você ficou em coma, sob cuidados intensivos. Especulamos sôfrega e desorientadamente sobre a causa provável ou, pelo menos, a conjuntura do terrível evento. Teria estado você muito tenso e ansioso com a expectativa e mesmo a euforia da iminente libertação? Quando se recuperar, disse seu filho Leandro, você próprio contará o que lhe aconteceu.

Às vezes, por um instante, algum sentido parece cintilar no tempo indiferente. Que aconteça, então, de você recobrar e retomar seu labor literário. Do quê ou de onde esperamos? Não sabemos; a esperança pende de um fio solto no ar. Mas o que todos queremos saber não comporta expressão em nenhuma linguagem e mesmo o silêncio é demais e insuficiente. O terrível acidente pingara como ferro fundido na escuma dos dias. (E assim ficou marcado aquele dia, não por seu nome, não por seu número, que estão longe de ser sua carne, mesmo sua pele.)

Surgiu um Eustáquio mais afetuoso e jovial, que fazia questão de mostrar como, com só a mão esquerda, podia, muito rapidamente – muito destramente... –, abotoar os botões todos da camisa, e como evoluía nos exercícios fisioterápicos, recuperando aos poucos o movimento do braço e da perna direitas – e como, além de tudo, era capaz de responder às demandas dos colegas de trabalho e às dificuldades do mister, coroando assim o currículo e a carreira com o título de Servidor Emérito que, justificadamente, a universidade lhe concedeu.

O escritor, entretanto, não voltou (inconsistência da linguagem: como se fosse um caso de partida e retorno.) E se o corpo é a grande razão, essa não deu conta de preservá-lo, conservando-se. Você parou de viver na última sexta-feira, 31 de janeiro de 2014, quando reiniciava sua trajetória ascendente um sol como o que brilha e queima sobre a terra de Merseault.

O Estrangeiro foi um dos livros que alimentaram a atmosfera comum em que vicejou nossa amizade, iniciada nos idos de 1972 na Redação do Correio Popular, entre uma reportagem e outra. Camus repousa – ou se agita – um pouco no fundo (ou no horizonte) de seus romances, sempre com alguma ironia (como n’Os Jogos de Junho), mesmo sob o burlesco (como n’A Febre Amorosa, em que é possível adivinhar uma paródia d’A Peste, que você citou como referência na época em que começou a gestar seu “romance bandalho”).

De Hemingway você reteve e cultivou a paciente obsessão pela “frase verdadeira”, não raramente associada à perseguição e à contemplação da beleza em sonoridades como as que você capturou na palavra “solombra”, atribuindo-lhe a dignidade de figurar como título de um de seus últimos livros, no qual ela ressoa com o timbre ternamente sombrio de um violoncelo.

Não era incrédulo, mas tampouco crédulo. Interessava-se pelas crenças na vida além-túmulo, sem entretanto conseguir aderir a elas. Lembro-me de você citando, numa conversa que deve ter mais de trinta anos, o compromisso assumido por Monteiro Lobato em sua última carta a Godofredo Rangel: se houvesse Além, a primeira pessoa com quem se comunicaria seria o amigo correspondente... Seu ceticismo alcançava também modas e moedas culturais. Mais de uma vez você me perguntou: “Acredita mesmo nisso?..”

Mas não eram matéria de fé a disposição e o esforço persistentes que, desde o início, desde sempre, você investiu no “fazer literatura”, expressão banal que somente escritores como você conhecem carnalmente, em seu completo significado. Eram uma evidência, inclusive pela contrapartida. Pois o “fazer literatura” lhe retribuía, dando-lhe vigor e ânimo. Era sua vez, então, de parecer entusiasmado demais, ao confiar nas formas internéticas de divulgação como um horizonte em expansão para a produção literária ou ao propalar que, na rampa dos cinquenta, sentia-se cada vez mais jovem.

Sendo sua paixão, esse fazer é que terá sido sua grande razão – ele é que terá animado e dirigido o corpo, o qual, como um cantor sem fôlego, falhou na mínima tarefa de sustentá-lo. Lembro-me de, numa das visitas que lhe fiz no hospital, observar algo a que não prestara atenção: sua pálpebra esquerda não abria completamente. Vera contou então que, uns 25 anos antes, você tivera um desmaio, caindo sobre o fogão; a ferida sangrou bastante. Quando se casaram, Vera acrescentou, sua mãe disse a ela para tomar conta de você.

Ágil, rápido, hábil em tudo que fazia, você sempre deu a impressão de que seus problemas de saúde poderiam ser – e seriam de fato – superados pela capacidade de trabalho e pela vontade de escrever. E a literatura você sempre a colocou à sua frente e acima de sua cabeça, como o fuzil que o soldado carrega com as duas mãos ao atravessar um rio. Se não podia escrever uma linha de ficção, se não pudesse dar um minuto de atenção a algum romance em andamento, isso o desalentava mais que o excesso de trabalho que subtraía energias de seu corpo.

Algumas obras restaram no estado de planos e esboços, mas você escreveu sempre, infatigavelmente, sem deixar que encargos e compromissos profissionais pudessem determinar, por um momento que fosse, a desistência ou a deserção da arte literária. Você produziu e deixou uma obra na acepção plena da palavra: o que o acidente de 8 de junho interrompeu não foi uma mera promessa, mas um florescimento, um trabalho em franco progresso.

Tanto quanto a angústia que emana da folha – ou tela – em branco, todo autêntico artista da palavra conhece a angústia ainda mais densa e enevoada de não conseguir, não ter tempo suficiente para terminar o que começou a escrever. Enquanto escreve, porém, frui aquela felicidade absurda de Sísifo empurrando a pedra encosta acima; há que ser feliz, realmente, pelo fato de haver uma pedra, pelo fato de haver uma condenação divina. Enquanto escreve, afasta as dúvidas a respeito do próprio ofício; ficam longe então, reduzidas a um rumor quase inaudível, as objeções que ordinariamente ouve – não raro de si mesmo – e que, menosprezando a literatura como coisa reles e fútil, dão essa arte como perda de tempo.

Mas o escritor não é, como Sísifo, imortal. De repente – “do nada”, diria melhor, no caso, a expressão popular –, a pedra desaparece encosta abaixo e não há como retomá-la. Não há algo, nem alguém, ao qual se possa atribuir esse evento, esse “acidente” – somente o sol de Merseault brilhando indiferente, absurdamente.

No fundo (esse mesmo no qual tenta aquietar-se novamente minha comum condição de mortal, que sua morte pôs em estado de vigília), é para me consolar que escrevo isso. Você próprio, mudado em outro, não deve ter sentido a hecatombe, o sacrifício bruto, repentino, de um projeto que constituía a essência de seus trabalhos e dias, o corte ríspido e calado de seus liames com o sentido que, fazendo do navegar o viver e vice-versa, você imprimiu à sua existência.

Na verdade – e isso também é uma evidência –, continuamos a conversar, e podemos fazê-lo com a mesma verve, a mesma vivacidade que animaram nossos diálogos, em que, mais do que as palavras, éramos nós que fluíamos, sem pretensões outras além da de nos expressarmos, sem vontade alguma de receber ou dar lições e tampouco a de contestar ou afirmar. E creio que ambos saíamos leves, assim como se sai da leitura de um bom romance, isto é, com ideias e sentimentos que fazem, justa e simplesmente, pensar e sentir, e não pesam.

Continuamos a conversar pela (re)leitura de seus romances, pela fruição de seus textos, garimpando camadas ainda não exploradas, retomando ressonâncias de sua voz por entre as vozes de seus narradores e personagens. Por isso a vírgula, que quer dizer apenas um até logo, um até mais do amigo Roberto Goto

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Roberto Goto é professor da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp. Este artigo foi publicado na edição de 6 de fevereiro do Correio Popular.

 

 

 

 

 

A boa semente


Paulo Franchetti

Escrevia há trinta anos o diário. Agora, selecionava o que poderia reunir em livro. Intercalou a história do modelo do gênero, que passara a vida angustiado por não ter uma obra literária e morreu sem saber que o consagraria a coisa menor, a obsessão da página quotidiana, o ensaio privado, dirigido a um leitor cancelável a cada momento difícil, pela própria natureza do texto.

Depois revelou o seu empenho: buscar o centro do dia. O diário era a forma de descobri-lo. Os acontecimentos caóticos, o corre-corre, a lista das frustrações e dos tropeços, as ideias que atravessavam o cérebro, com milhares de outras, num segundo, antes de afundar no nada. No recanto da mesa, com os velhos livros e a proteção das rotinas, podia repassar calmamente cada pequena fração do intervalo de vida, em busca do momento feliz ou infeliz que resgatasse alguma ordem, compondo um desenho inteligível.

Nem sempre acontecia logo. Às vezes, somente no final do inventário, como um ímã reorganizando os pregos soltos na caixa de ferramentas, o sentido emergia. Uma segunda narrativa, então – uma vez que a coerência era uma conquista, e a edição tudo poderia refazer, caso chegasse a hora de o leitor ser admitido na câmara secreta –, redimensionava o mosaico anterior, hierarquizando e selecionando os fatos no bloco bruto dos acasos.

Era, portanto, uma busca obscura de Deus. Uma indagação pela Providência. Ou, pelo menos, um ensaio de psicanálise bastarda, um cântico ao deus desconhecido e aos poderes balsâmicos da ordem.

Todas as noites, a busca de um centro. O dia esperava por aquele momento para se fechar, como uma noz, deslizando a seguir para o fundo da caixa de provisões. Havia talvez, por isso, um gosto perverso de avareza na empreitada. Era preciso não só ordenar, mas acumular o produto, para uso futuro. Se não, qual o sentido da escrita? Ou de manter o escrito? Mas havia também alguma outra coisa: uma obscura aposta na redenção coletiva.

Ao menos, foi o que comecei a imaginar, à medida que ele discorria.

Se fizesse sentido ao menos para um, parecia pensar, o mundo apareceria outro. Salvo. De alguma forma, a presença de Deus habitaria o que era caos, separaria, naquele minúsculo intervalo da eternidade, a luz das trevas. A queda, nesse caso, era apenas a cedência ao sono: o intervalo entre um e outro momento de luz garantia o recomeço, a ressurreição para a nova conquista do sentido, que não transitava de um dia para outro dia. Se o fizesse, seria preciso esperar pelo fechamento, pelo momento da morte, para encontrar o centro. Não era uma possibilidade. Apenas as personagens de ficção tinham essa grandeza, a de uma vida completa, cujo significado – ou cuja ausência de significado (casos mais pungentes) – se revelava ao leitor no silêncio final. Ou, pelo menos, ficava vibrando como possibilidade, sem que se pudesse de fato decidir.

Para quem fala da realidade e da própria vida, e tem consigo um pacto de verdade (com limites, é certo, mas ainda assim um pacto), buscar adivinhar hoje o sentido de amanhã é cavar a cova do silêncio prematuro. A postulação do sentido no menor não resiste à ameaça do adiamento da busca, à postergação do discurso até que o quadro esteja completo.

Ouvia-o apenas dar exemplos de descobertas, enquanto tentava traduzir o que as suas mãos pareciam desenhar, percorrendo a superfície do corpo, puxando o lábio inferior, agarrando a pele do pescoço, tamborilando sobre as pernas. 

Continuei a seguir o deslizar da ideia: se fosse preciso esperar pelo sentido pronto para escrever, qual seria a razão dessa escrita e desse discurso, que se erguiam com tal espírito redentor? Bastaria o silêncio dos místicos ou o exemplo dos santos.

Ele ainda falou um pouco mais. Fiz um gesto brusco, quando me surpreendi longe da conversa, arrastado pelo desenrolar das sugestões. Ele o entendeu como sinal de fim do encontro e contraiu o corpo, como se fosse levantar-se e sair pela porta.

Era sempre muito atento a tudo. 

Fiz ver que não era nada, apenas um gesto. Ainda conversamos cerca de meia hora. Não me lembro sobre o quê.

Talvez ali, naquele momento de diálogo desatento, tivesse acontecido algo que pudesse ser tomado como o centro desse dia. Se aconteceu, não dei por isso. Para mim, pensei naquela noite, ainda sob o efeito da conversa, aquele dia juntou-se a todos os outros, e sobre nenhum pairou o espírito de Deus. 

Não sei o que terá escrito ao longo de tantos anos, o que será o livro projetado. Nem se o seu desenho e o seu tom combinarão com a imagem e o ideal que se esboçaram naquele fim de tarde. Mas foi bom imaginar que tinha ali um crente. E também é verdade que, por algum tempo, confortou-me a ideia, nas horas mortas da noite, de que ele talvez estivesse, enquanto eu olhava para um livro ou terminava de ver um filme na TV, lutando para redimir um dia mais, para salvar-se. E que, ao fazê-lo, de alguma forma absurda e generosa se esforçava um pouco por todos nós.

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Paulo Franchetti é professor do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp.