Edição nº 583

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 11 de novembro de 2013 a 24 de novembro de 2013 – ANO 2013 – Nº 583

Em outra Língua

Pesquisa multidisciplinar resulta em guia e disciplina sobre Libras para dentistas em formação

A linguagem de sinais não é mímica. A sentença que ecoa entre o grupo multidisciplinar de pesquisadores da Unicamp sustenta a relevância do anúncio: um guia, em vídeo, para dentistas em formação aprenderem a Língua Brasileira de Sinais (Libras), além de uma disciplina já no início de 2014 para orientar futuros profissionais da odontologia.

A iniciativa – pioneira e inovadora, conforme o grupo envolvido – é fruto de uma parceria entre a Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP) e o Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação (Cepre) “Prof. Dr. Gabriel Porto” da Faculdade de Ciências Médicas (FCM). O objetivo é humanizar um tipo de atendimento que mesmo em pessoas com facilidade de comunicação já gera receio e medo.

“Por mais que a odontologia tenha evoluído, o atendimento ainda causa ansiedade. Existem procedimentos invasivos e que acarretam dor, ainda que em grau reduzido. Para a pessoa que tem um déficit de comunicação, essa ansiedade é muito maior. Esperamos que a iniciativa seja replicada em outras universidades, expandindo o universo de profissionais com capacidade de dialogar com os pacientes surdos”, enseja o cirurgião dentista Jacks Jorge Júnior, diretor da FOP.

Cerca de 10 milhões de brasileiros possuem algum tipo de deficiência auditiva, segundo censo realizado em 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Atualmente, o número já passa dos 15 milhões, de acordo com a Sociedade Brasileira de Otologia (SOB). Já a deficiência auditiva severa, que caracteriza a surdez, atinge mais de dois milhões de pessoas, demonstra o levantamento do IBGE.

Os números dão a dimensão do problema no país, afirma a linguista Ivani Rodrigues Silva, que coordenará a disciplina de Libras na FOP. “Se levarmos em conta o total de brasileiros, a surdez atinge 1% de toda a população”, calcula a docente do curso de fonoaudiologia da FCM e pesquisadora do Cepre. 

Ivani Silva ressalta que a Libras não é a sinalização do idioma português, mas outra língua, com estrutura fonológica, morfológica e semântica própria. Ela possui suas especificidades em vários países, ou seja, cada grupo de surdos conta com uma Língua de Sinais própria, exemplifica.

“Por isso, a importância não apenas do reconhecimento da surdez como diferença, mas da adoção, na prática, da Libras no Brasil. A Unicamp tem tradição neste tipo de ensino. Realizamos um dos primeiros cursos entre 1984 e 1985 no Cepre, voltado para os pais de surdos e profissionais interessados. Antes, essa língua era conhecida apenas como mímica, muito por conta do surdo ser visto na perspectiva da patologia e da deficiência”, situa.

A professora Ivani Silva lembra que a grande mudança, que considerou os surdos como parte de uma minoria, começou após a primeira descrição realizada pela linguista Lucinda Ferreira Brito na década de 1980. “Esta descrição possibilitou mais informações acerca da Língua de Sinais utilizada pela população surda nos centros urbanos brasileiros. O vídeo e a disciplina da FOP contribuirão nesta vertente, que é a de estimular o conhecimento de Libras num determinado grupo de profissionais”, associa.

Produzido em formato DVD (Digital Versatile Disc), o filme simula diálogos mais comuns em consultórios odontológicos. Com uma tiragem inicial de mil cópias, a produção foi totalmente realizada na Unicamp. Houve a colaboração da pesquisadora surda Daniele Silva Rocha; da doutoranda do IEL Aryane Santos Nogueira; da aluna do Instituto de Artes (IA) Ravena Maia; do aluno de graduação em letras Eric Silva; e do técnico em produção de vídeo da FOP, Paulo Roberto Rizzo do Amaral. O material deverá ser utilizado como apoio na disciplina de graduação da Unidade, implementada inicialmente como atividade extracurricular, em 2014; e curricular, a partir de 2015.

 

Despreparo

O diretor da FOP admite que a falta de preparo de alguns profissionais da odontologia pode causar sofrimentos desnecessários e excessivos aos pacientes. Jacks Jorge assegura que condutas simples poderiam amenizar o medo e a dor dos usuários. 

“A explicação sobre os principais passos do tratamento é a forma mais básica para reduzir a ansiedade. E isso ainda é uma coisa pouco comum em odontologia. Quantos dentistas têm uma preparação para fazer um atendimento mais humanizado? O que se dirá, então, do atendimento voltado a pacientes surdos?”, expõe. 

Além disso, acentua o diretor, existem procedimentos na odontologia que devem ser estabelecidos por meio do diálogo entre o usuário e o profissional. “O caso de uma prótese para substituir um dente, por exemplo: não existe um perfil universal de dente. Isso é decidido junto com a pessoa que está fazendo o tratamento. Até para situações mais simples, em que o dente pode ser tratado ou removido, quem vai decidir com o profissional é o paciente”, ilustra.

 

Sensibilização

O professor Pablo Augustin Vargas, coordenador de Graduação da FOP, foi um dos idealizadores da proposta do vídeo e da disciplina para o curso. Ele se sensibilizou com esta problemática após a participação no workshop “Sentidos no silêncio: experiências e práticas em Libras”. Esse workshop teve duas edições, e após participar da primeira, realizada no campus de Campinas, o professor Pablo se empenhou para que ele também ocorresse  na Faculdade de Odontologia.

“Fiquei bastante comovido com as experiências e dificuldades de vida dos surdos. E logo depois do workshop transpus esta situação para a minha área profissional, que é a odontologia. Percebi, então, que não estávamos fazendo quase nada. Tive então a ideia que foi prontamente recebida pela colega Ivani e pelo nosso diretor”, recorda Pablo Vargas.

A iniciativa da realização dos workshops e posteriormente do material audiovisual, teve também o apoio da docente do IEL Carmen Zink Bolognini, que à época foi assessora da PRG e, depois, da Coordenadoria Geral da Unicamp (CGU). Ela afirma que o trabalho com toda a equipe envolvida aponta para o sucesso dos projetos interdisciplinares na Unicamp.

Segundo Pablo Vargas, será o primeiro curso de graduação do país a contar com uma disciplina direcionada para o ensino de Libras em atendimento odontológico. “Vamos começar a formar uma geração de dentistas que terão contato com esta língua. A proposta é que estes profissionais se sensibilizem de modo a poderem realizar um atendimento mais humano aos pacientes com diferentes níveis de surdez”, projeta.

A ação certamente culminará em outras que devem ser desenvolvidas na Unicamp, complementa Ivani Silva. Ela cita a possibilidade da disciplina de Libras integrar os demais cursos da área da saúde, como medicina e enfermagem. “No atendimento de saúde em geral sempre alguma pessoa, familiar ou amigo, acaba falando pelo surdo. E isso causa constrangimento ao paciente, podendo até mesmo prejudicar o tratamento”, justifica.

 

Pesquisas recentes

O vídeo e a inclusão da disciplina de graduação na FOP inserem-se no âmbito de pesquisas desenvolvidas na Unicamp por um grupo multidisciplinar que atua na FCM e no Centro de Formação Continuada de Professores do Instituto de Estudos da Linguagem (Cefiel). Os pesquisadores realizam diagnósticos e propõem novos materiais pedagógicos para o ensino de surdos.

Ivani Silva, que coordena a equipe, salienta que as investigações procuram elaborar materiais mais críticos e adequados, além de inserir o próprio surdo no grupo. “O objetivo é que as pesquisas deem voz a este grupo minoritário”, delineia.

A coordenadora menciona o caso da pesquisadora surda Daniele Silva Rocha, graduada em pedagogia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e especializada no desenvolvimento e inclusão de surdez pelo Cepre. Daniele, uma das ‘atrizes’ do vídeo, é instrutora de Libras em várias iniciativas promovidas aos funcionários pela Unicamp.

Também participam do grupo outra “atriz” do filme, a fonoaudióloga Aryane Santos Nogueira. Ela finaliza doutorado sobre a produção de imagens e a busca por estratégias no processo de letramento de estudantes surdos. Aryane é orientada pela docente Marilda do Couto Cavalcanti, do Departamento de Linguística Aplicada do IEL. Marilda Cavalcanti realizou a interlocução do pós-doutorado da professora Ivani, cujo resultado permitiu a reflexão sobre materiais didáticos para a área da surdez.

Outro trabalho vem sendo desenvolvido por Juliana Mello. Ela investiga em seu mestrado a questão das legendas de filmes nacionais para os surdos. Ivani Silva, orientadora da dissertação, explica que, ao contrário dos filmes estrangeiros, as produções nacionais não recebem qualquer tipo de legenda, tornando-se inacessíveis aos surdos.                                   

“Além destas pesquisas, há uma investigação que analisa como os cursos de graduação do país estão se organizando para cumprir o decreto de Libras. A pesquisadora Julia Luiza, aluna do mestrado interdisciplinar da FCM e orientada por mim, está fazendo um mapeamento de como as universidades públicas estão se estruturando para responder a este decreto”, acrescenta.

A docente da Unicamp refere-se ao Decreto nº 5.626 publicado em 2005 pelo Governo Federal. A legislação determina que a Língua de Sinais deva constar na grade curricular das universidades e nas licenciaturas de ensino superior. Ivani Silva considera, no entanto, que apenas leis são insuficientes para avançar à acessibilidade de minorias no país, especialmente dos surdos.

 

Empoderamento e conscientização

Além das leis, a linguista da Unicamp aponta outras duas ações para a evolução deste cenário: o empoderamento dos sujeitos e a conscientização do entorno. Os conceitos, assinala a pesquisadora, foram emprestados de uma colega do IEL, a professora Terezinha de Jesus Machado Maher, que desenvolve estudos sobre língua, cultura e identidade. 

“No Brasil, as leis já existem. A outra questão é o empoderamento deste grupo minoritário. Temos que dar voz a estas pessoas, de modo que os professores surdos participem da vida da universidade e das pesquisas”, reconhece Ivani Silva.

Outra ação fundamental, mais complexa ainda, é a conscientização da população do entorno. “Tem sempre alguém falando que o surdo é ‘coitadinho’, que ele não precisa ir à escola, pois ‘não aprende mesmo’. Por isso, a importância desta iniciativa na FOP. Os alunos de odontologia vão perceber o surdo de outra forma e entender que eles são pessoas normais que apenas se expressam por uma língua diferente.”

Comentários

Comentário: 

Parabéns a essa equipe! Eu como mãe de surdo, só tenho que agradecer muito a essa equipe do CEPRE! Onde tivemos os nossos primeiros atendimentos... E sei que meu filho ainda hoje é acolhido com carinho quando precisa... Fico feliz por saber que cada vez mais, tem profissionais interessados nas suas dificuldades... Muito obrigada!

Comentário: 

Sou professora de educação especial, não trabalho com surdos, mas sei que é trabalho de formiguinha, mas os direitos do surdo não podem ficar só no papel. Parabens. Sei que ainda tem muito trabalho por vir (hospitais, pronto socorro, transurc, escola), etc e tal. Parabenizo a o esforço do CEPRE onde fiz minha pós.

Comentário: 

Gostaria de deixar registrado que a área de psicologia aplicada da FOP, sob minha responsabilidade, ministra aulas de LIBRAS aos alunos do 7º semestre de graduação, trazendo uma fonoaudióloga, professora desta língua, desde o ano de 2007. Antes disso, ainda sob a responsabilidade do Prof. Antônio Bento, professoras do CEPRE contribuíram, por anos, com nossa disciplina, abordando o tema sobre atendimento de surdos.