Edição nº 580

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 21 de outubro de 2013 a 27 de outubro de 2013 – ANO 2013 – Nº 580

O homem dividido e uma tradução por inteiro


Vittorio Alfieri (1749-1803) é um tragediógrafo italiano pouco conhecido no Brasil, desconhecimento que se deve em boa parte a uma obra propositadamente de difícil compreensão, construída com um italiano estranho aos próprios italianos e cuja tradução para o português representa um desafio. Mais ainda quando se traduz a versão do autor para Antígona de Sófocles, considerada não apenas a melhor tragédia grega, mas também a obra de arte mais próxima da perfeição entre todas as produzidas pelo gênero humano.

Antigone de Vittorio Alfieri: uma tradução” é a dissertação de mestrado de Nádia Jorge Berriel, orientada pela professora Suzi Frankl Sperber e apresentada no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). “A versão italiana desta tragédia, escrita em 1776, revela inquietações artísticas e particularidades linguísticas tanto no âmbito político quanto no que se refere à cultura e ao idioma italiano, e que refletem o período que antecede o Risorgimento – movimento que buscou, entre 1815 e 1870, unificar a Itália, que era então uma coleção de pequenos Estados submetidos a potências estrangeiras, fato que a enfraquecia frente às demais nações europeias”, informa a autora do trabalho.

Nádia Berriel também apresenta um perfil biográfico do tragediógrafo, a partir de sua autobiografia e de estudos sobre sua obra e seu envolvimento com movimentos políticos. “Alfieri é do Piemonte [norte da Itália] e tinha como língua originária o francês. Foi defensor ardoroso da Revolução Francesa, pela qual lutou no início, até a eclosão do período de terror que o fez temer pelos rumos do movimento e fugir da França para não ser decapitado. Voltou para Piemonte e se instalou depois na Toscana, começando a estudar o idioma de Florença, que era o italiano mais próximo do que temos hoje.”

A pesquisadora observa que Alfieri vive justamente este período subitamente anterior ao Risorgimento, em que a Itália desunificada não foi capaz, por exemplo, de conquistar colônias no resto do mundo, o que fortaleceu países da Península Ibérica, como Portugal e Espanha, e a Inglaterra. “Alfieri procura, então, juntar as culturas da Península Itálica em uma só, acreditando que unida por meio de valores comuns, e sobretudo de uma língua comum, a Itália poderia se tornar nação e restaurar a glória do passado.”

De acordo com Nádia Berriel, a Itália possuía sociedades que estavam perdendo a característica rural e se tornando mais urbanas – a mesma cisão social que se vê em Antígona. “Alfieri também era extremamente crítico em relação aos italianos da época, vendo-os como ‘enfraquecidos’ que gostavam apenas de óperas farsescas, quando deveriam ser políticos e fortes em suas crenças. Alegando que a Itália precisava endurecer, decidiu criar tragédias que exigiam grande esforço intelectual para serem assistidas e entendidas.” 

A autora da dissertação conta que Vittorio Alfieri veio inclusive a encenar sua versão de Antígona em Roma, em 1782, interpretando ele próprio a personagem Creonte, com o restante do elenco formado por atores diletantes, membros da nobreza. “Alfieri apresenta algumas das grandes questões da humanidade presentes tanto na Itália do Settecento quanto nos dias de hoje, como por exemplo: o direito privado versus o direito público, o amor pela família e o dever para com ela e pelo Estado, a incomunicabilidade e o que seria a arethé (virtude que cabe a cada um) da mulher e do político.”

Segundo a pesquisadora, a Antígona de Sófocles, embora jamais tenha sido esquecida, teve seu brilho esmaecido pelas interpretações de Freud sobre o mito e a tragédia de Édipo. “As primeiras traduções da peça surgiram por volta de 1530. Durante o século em que Antígona foi a tragédia grega mais celebrada na Europa (entre 1790 e 1905), houve uma enorme produção de novas peças sobre essa personagem e esse tema. Sabe-se que mais de trinta peças líricas sobre o tema de Antígona foram compostas, desde o Creonte de Alessandro Scarlatti, em 1699, até a Antigone de Francesco Basili, em 1799.”

 

A tragédia inesquecível

Na tragédia original, Édipo é levado pelo desígnio dos deuses a matar o pai, e torna-se assim rei de Tebas, mantendo, sem saber, uma relação incestuosa com a mãe Jocasta. Descoberto o parentesco do rei tirano com seu pai, Édipo é exilado de Tebas. Ao trono deveriam subir os filhos homens de Édipo, Etéocles e Polinices, alternando-se no poder. Mas Eteócles, o primeiro a reinar, recusa-se a passar o cetro a Polinices, que, irado, une-se ao rei da cidade inimiga de Argos para um ataque contra Tebas. Na guerra, os dois irmãos acabam se matando. 

O confronto entre Eteócles e Polinices, na verdade, havia sido ardilosamente articulado pelo tio Creonte, que assim assume o poder. A Eteócles, por ter lutado pela pátria-mãe, Creonte ordenou um enterro envolto com todas as honras; quanto a Polinices, que o corpo fosse largado nos portões de Tebas, com pena de morte para quem providenciasse rituais fúnebres. A crença era que a alma de um insepulto ficaria vagando pela terra, o que representava uma ofensa aos deuses, à família e à pátria.

É nesse momento que Antígona, irmã de Eteócles e Polinices, entra em cena para fazer valer sua arethé – a virtude que lhe cabe de proteger os valores sacros e familiares. Desafiando o decreto do rei, a heroína resgata o corpo de Polinices a fim de cremá-lo na pira, com ajuda da viúva. Mas ambas são descobertas pelos soldados de Creonte, que condena Antígona a morrer enterrada viva. Enquanto isso, Hémon, filho do tirano, fracassa na tentativa de conseguir o perdão do pai para a mulher com quem se casaria.

“A riqueza da peça está no embate entre Creonte, defendendo os valores da pólis [a cidade-estado da Grécia Antiga], e Antígona, defendendo os valores tradicionais, familiares e religiosos. Os dois têm seus motivos, fazendo o que pede a arethé de cada um. Não há solução para esse conflito”, afirma Nádia Berriel. “Quando Hémon corre até o campo para onde fora enviada a amada, encontra Antígona morta. E Hémon se mata na frente do pai, que se arrepende do excesso, compreendendo que a sabedoria só vem no infortúnio, e quando já é tarde. Esse é o final da peça.”

Na opinião da autora da dissertação, Antígona é uma tragédia reveladora de um mundo em cisão, no momento em que a vida em comunidade em Atenas dava espaço para algo novo. “Se antes os valores tradicionais e os valores da pólis caminhavam juntos, naquele mundo em transformação o direito privado e o direito público não mais se completam e, sim, se conflitam. É possível repercutir esse conflito ao longo da história, até os dias de hoje, quando a nossa ética bate de frente com a fachada que precisamos assumir frente à sociedade. Antígona retrata o homem que não consegue mais ser inteiro.”

 

O desafio da tradução

O conhecimento que Nádia Berriel possui do idioma italiano vem desde adolescente, quando morou em Florença com a família. No curso de artes cênicas na Unicamp, sua peça de formatura foi uma adaptação de Antígona de Sófocles e, depois de se deparar com um texto de Antigone de Alfieri, durante estágio com uma companhia teatral na Itália, ela resolveu retomar o estudo do italiano já enferrujado. “Uma das muitas dificuldades para a tradução é que o italiano de Alfieri não é falado por ninguém, ele praticamente criou uma língua. São palavras antigas, cujo sentido eu não encontrei nos dicionários italianos e tive que buscar, por exemplo, no italiano dantesco de A Divina Comédia.”

O autor settecentista, comenta a pesquisadora, foi provavelmente o dramaturgo que possuía maior compreensão da função da palavra na espacialidade teatral de sua época, utilizando-se do ritmo – talvez tanto quanto dos temas – para a construção das tensões de cena. “Alfieri escreveu em hendecassílabos, dificultando ainda mais a tradução. Em italiano, por vezes é possível cortar a última sílaba e a palavra continua a fazer sentido; em português, não. Por isso, ficou difícil manter a sonoridade, preservando o sentido e a poesia. Fiz o máximo possível e, em alguns momentos, consegui; em outros, ainda preciso trabalhar mais.”

Nádia Berriel afirma que a obra de Vittorio Alfieri é muito estudada na Itália e de leitura obrigatória inclusive para estudantes de ensino médio, mas pouco conhecida no Brasil, o que atribui à inexistência de traduções. “Conheço apenas uma tradução para o português, e não se trata de uma tragédia. Fiz esse esforço porque gostei muito de Antigone. É um autor muito potente e seria maravilhoso se montássemos essa tragédia. Vou testar como a peça funcionaria no Brasil, numa leitura dramática no Instituto Cultural Capobianco, em outubro. Quero começar a mostrar o texto para, quem sabe, encená-lo dentro de um ano ou dois.”

 

Trecho da tradução

da cena II, ato II... 


CREONTE

Teu este trono? Infames,
Filhos de incesto, a vós à morte o direito,
Não ao reino, resta. Prova atroz
De tal não são os ímpios irmãos, agora há pouco
Um do outro assassino?...

 

ANTÍGONA

Ímpio tu, vil,
Que os empurrava aos golpes execráveis. –
Sim, do próprio irmão nascer filhos,
Crime é nosso; mas com nós a pena
Estava já, em nascer de ti sobrinhos.
Ministro tu da nefanda guerra,
Tu nutridor dos ódios, somar fogo
Ao fogo planejavas; adulador de um,
O outro instigavas, e os traia a ambos.
O caminho assim tu te desobstruías ao trono.
E à infâmia.

 

... e seu equivalente

no texto original

CREONTE

Tuo questo trono? Infami
Figli d’incesto, a voi di morte il dritto,
Non di regno, rimane. Atroce prova
Di ciò non fer gli empi fratelli, or dianzi
L’un dell’altro uccisore?...

ANTÍGONA

Empio tu, vile,
Che lor spingevi ai colpi scellerati.
Sì, del proprio fratello nascer figli,
Delitto è nostro; ma con noi la pena
Stavane già, nel nascerti nepoti.
Ministro tu della nefanda guerra,
Tu nutritor degli odi, aggiunger fuoco
Al fuoco ardivi; adulator dell’uno,
L’altro instigavi, e li tradivi entrambi.
La via così tu ti sgombrasti al soglio,
Ed alla infamia.

 

Publicação

Dissertação:Antigone de Vittorio Alfieri: uma tradução”
Autora: Nádia Jorge Berriel
Orientadora: Suzi Frankl Sperber
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)