Edição nº 576

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 23 de setembro de 2013 a 29 de setembro de 2013 – ANO 2013 – Nº 576

O cristal de tempo de Fellini

Estudo desenvolvido no IA prega que cineasta italiano não traiu o neorrealismo, mas o reinventou

Ganhador de cinco Oscars, criador de um estilo que mistura fábula, sonho e realidade que acabou definido por um adjetivo próprio, “felliniano”, Federico Fellini (1920-93) iniciou sua carreira cinematográfica entre os neorrealistas italianos, colaborando de perto com um dos maiores deles, Roberto Rossellini. As duas primeiras indicações de Fellini ao prêmio da Academia norte-americana vieram do trabalho como corroteirista nas obras-primas rossellinianas Roma, Cidade Aberta (1945) e Paisà (1946). Ao dirigir A Doce Vida (1960), Fellini parece romper definitivamente com o neorrealismo, o que, aparentemente, pode ter motivado Rossellini a criticar o filme. Tese de doutorado defendida no Instituto de Artes (IA) da Unicamp, intitulada “Cristais de Tempo: Fellini e o Neorrealismo Italiano”, argumenta, no entanto, que nesse filme Fellini não trai o neorrealismo, mas o aprofunda, transcende, reinventa.

“À medida que seus primeiros filmes eram realizados, Fellini passou a ser acusado de trair o neorrealismo com escapismos fabulatórios, no caso de A Estrada da Vida, ou mundanos, no caso de A Doce Vida. Mas o que é preciso observar é que não houve ‘traição’, mas reinvenção do neorrealismo”, disse o autor do trabalho, Euclides Santos Mendes, em entrevista concedida via e-mail ao Jornal da Unicamp.

“Ao passo que, em 1945, o filme Roma, Cidade Aberta, de Rossellini, inaugurou o compromisso ético-estético neorrealista, A Doce Vida, filme de Fellini lançado em 1960, representou a transposição e a reinvenção da dinâmica ético-estética do novo realismo à italiana”, escreve Euclides na sua tese. Mais adiante, acrescenta: “Rossellini, o mestre, e Fellini, seu maior discípulo, são como guardiães das fronteiras do neorrealismo; talvez por isso seus filmes-chave [Roma, Cidade Aberta e A Doce Vida] sejam os dois mais célebres na história do cinema italiano”.

Nascido durante a queda do fascismo na Itália e a expulsão final das tropas nazistas do país, entre 1943 e 1945, e em meio ao colapso da indústria cinematográfica que tinha se formado em torno de Mussolini, o cinema neorrealista italiano é marcado, entre outros aspectos, pelo foco em personagens humildes ou marginalizados, pela temática voltada para a situação social imediata da Itália, pelo uso de atores não profissionais em cena, pela preferência por locações em ambientes naturais. 

Um dos principais nomes do neorrealismo ao lado de Cesare Zavattini, Vittorio de Sica e Luchino Visconti, Rossellini estreou como cineasta trabalhando sob o regime do “Duce”, dirigindo três filmes, no começo dos anos 1940, coletivamente conhecidos como a “trilogia fascista”. Logo em seguida, em Roma, Cidade Aberta, ele ajudou a intensificar o estilo despojado e quase documental do neorrealismo, movimento que deu seus primeiros passos em filmes como “Obsessão” (1943), de Visconti. Federico Fellini começa no cinema como corroteirista, em 1939. Depois passa também a colaborar como assistente de direção sob a égide de Rossellini, e tem seu aprendizado da arte cinematográfica vinculado aos cânones do neorrealismo, também pela parceria com diretores como Alberto Lattuada e Pietro Germi.

Porém, à medida que dava os primeiros passos em sua carreira de diretor independente do mestre Rossellini, Fellini parecia, paulatinamente, descartar esses cânones: por exemplo, A Estrada da Vida (1954), embora ainda gire em torno de figuras marginalizadas – o bruto artista de rua Zanpanò (Anthony Quinn) e sua parceira, a ingênua e delicada Gelsomina (Giulietta Masina) –, é mais fábula humana que um filme sobre a realidade social imediata. 

“À época de seu lançamento, A Estrada da Vida despertou a desconfiança da crítica de esquerda em relação a Fellini, contrapondo-o ao materialismo histórico de Luchino Visconti, que lançava, no mesmo período, o filme Senso (Sedução da Carne)”, aponta a tese. “Sem se valer da miséria e da crítica social para denunciar o fim de uma Itália, Fellini alça voo e, tal como um vidente, vislumbra a outra margem do neorrealismo”. Euclides vê o filme como parte da fase neorrealista da obra felliniana. 

“O mundo dos sonhos na obra cinematográfica de Fellini está verdadeiramente presente a partir de Oito e Meio (1963), filme que, podemos dizer, cunha o adjetivo ‘felliniano’”, afirma Euclides. “No que se refere aos filmes A Estrada da Vida e Noites de Cabíria (1957), obras-primas da primeira fase de Fellini no cinema, integram um processo que cobre toda essa fase, encerrando-se com A Doce Vida. Considero neorrealista essa primeira fase de Fellini, pois ela se configura como um percurso de aplicação do ideário neorrealista”.

Se A Estrada da Vida – que deu a Fellini seu primeiro Oscar, de melhor filme em língua estrangeira – já se afastava do formalismo neorrealista, A Doce Vida, filme premiado com a Palma de Ouro em Cannes, vai ainda mais longe. “Em A Doce Vida, a pobreza e o misticismo, tão presentes em filmes anteriores de Fellini, cedem parcialmente lugar ao requinte frívolo e ao tédio existencial da vida de celebridades, artistas, aristocratas e jornalistas”, diz Euclides. A Doce Vida também é um filme que depende da reinvenção da realidade em estúdio, com a via Veneto recriada em Cinecittà.

A tese de Euclides registra que Rossellini reagiu ao filme dizendo que Fellini mostrava-se “provinciano”. Se A Estrada da Vida causou desconfianças na esquerda, A Doce Vida irritou os conservadores. Lideranças católicas italianas tentaram impedir os fiéis de ver o filme, e petições foram enviadas ao Parlamento italiano para tentar proibi-lo.

“O filme (...) ergue um panorama da vida italiana na passagem dos anos 1950 para os anos 1960, com contrastes reverberantes da vida social e econômica entre uma velha e uma nova Itália. Para isso, Fellini se vale da exuberância, beleza, fascínio e mistério de Roma, qualidades simbolizadas no seu sentido mais místico e feminino no banho de Anita Ekberg na Fontana de Trevi, mas também se vale da angústia e do pessimismo diante de um admirável e incompreensível mundo novo”, escreve Euclides.

“Por mais mundano e metafísico que o filme possa ser, está ancorado num panorama da sociedade italiana do final dos anos 1950”, disse o autor, traçando o que vê como um dos aspectos da herança neorrealista nessa obra. “A aderência de A Doce Vida à atualidade de uma nova Itália certamente recorda, num ponto de vista menos catastrófico, a contemporaneidade de Roma, Cidade Aberta, de Rossellini, em relação à Segunda Guerra. Em ambos os filmes, há vestígios de um jovem Fellini, provinciano, neorrealista”.

Ainda de acordo com Euclides, “a aparente violação dos preceitos neorrealistas em A Doce Vida é a tentativa felliniana de superação do neorrealismo tradicional (o da guerra e da realidade social) pelo neorrealismo dito ‘metafísico’. Na medida em que Fellini leva a cabo tal intenção, ele se destaca do neorrealismo ao ultrapassá-lo, indo além ao ajudar a forjar o chamado ‘cristal de tempo’”.

O conceito de “cristal de tempo” vem do filósofo francês Gilles Deleuze, que vê o tempo como que se dividindo entre um passado que perdura e um presente em movimento. No cristal, criado pela “imagem-tempo” do cinema moderno, há a coexistência de uma imagem real, do presente, com uma imagem virtual, do passado. Em sua tese, Euclides expõe que “Fellini, por meio do neorrealismo, levou a imagem puramente ótica e sonora para além do neorrealismo, moldando-a, segundo o filósofo Gilles Deleuze, como um cristal de tempo”.

O autor não vê na obra felliniana posterior ao filme A Doce Vida resquícios do neorrealismo. “Com A Doce Vida, Fellini fecha o ciclo do seu aprendizado e da sua experiência neorrealistas. Depois, com Oito e Meio, ele se descola definitivamente do movimento que tanto o impulsionou a se tornar um homem de cinema. Tal descolamento não é uma ‘traição’, como diriam os críticos, mas um ‘exame de maturidade’, em que Fellini atesta sua independência criativa e autoral”.

Em 2013, completam-se 20 anos da morte de Fellini (em 31 de outubro) e meio século da estreia de Oito e Meio. O cineasta ainda causa impacto, tanto em cinéfilos quanto em outros realizadores – não é difícil encontrar sinais de sua influência no recente Para Roma, com Amor (2012), de Woody Allen, por exemplo. “Creio que a obra de Fellini ainda é um baú de tesouros”, disse Euclides. “Oito e Meio está fazendo 50 anos e mantém uma atualidade vibrante sobre a condição do artista como agente e refém do processo de criação. Outro dia, revi Noites de Cabíria, meu filme de Fellini favorito, e me impressiona nele o uso da iluminação e do plano sequência como recursos que realçam a sua beleza e a sua eficácia como obra neorrealista e, ao mesmo tempo, fabulatória”.

 

Publicação

Tese: “Cristais de Tempo: Fellini e o Neorrealismo Italiano”
Autor: Euclides Santos Mendes
Orientador: Francisco Elinaldo Teixeira
Unidade: Instituto de Artes (IA)

Comentários

Comentário: 

Disse Anna Magnani em Roma
Não ter confiança em Fellini
Escondido atrás da câmera

Estava certa a loba romana
Só medíocres merecem confiança