Edição nº 572

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 26 de agosto de 2013 a 01 de setembro de 2013 – ANO 2013 – Nº 572

Uma longa história de cooperação

Dissertação revela como o Brasil contribuiu para a construção do sistema de ensino superior de Cabo Verde

O Brasil é o país que mais cooperou para a implantação do sistema de ensino superior de Cabo Verde, país africano que obteve a independência de Portugal em 1975. Essa contribuição se deu tanto na constituição da estrutura educacional propriamente dita, quanto na abertura de oportunidades para que estudantes cabo-verdianos pudessem vir fazer graduação e pós-graduação nas universidades brasileiras, para depois voltar ao país e atuar na formação de novos quadros. A conclusão faz parte da dissertação de mestrado do teólogo Oziel Duarte Morais, defendida recentemente na Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, sob a orientação da professora Debora Cristina Jeffrey.

De acordo com Morais, que é natural de Cabo Verde, embora alguns trabalhos tenham feito referência à participação brasileira na construção do sistema de ensino superior de seu país, nenhum deles se dedicou exclusivamente ao tema. “Na pesquisa que fiz, tanto aqui quanto em Cabo Verde, encontrei poucas menções ao assunto. Ou seja, sempre houve o entendimento de que a colaboração brasileira foi importante, mas não se tinha a real dimensão dela. O que posso afirmar, com base nos documentos e depoimentos que colhi, é que a contribuição do Brasil na área da educação é a maior que Cabo Verde recebeu nos últimos 30 anos”, afirma.

As relações bilaterais entre os dois países, lembra Morais, remontam ao período imediatamente posterior à independência de Cabo Verde. Na ocasião, o país não dispunha de estrutura social, inclusive na área da educação. “Toda a estrutura existente era voltada aos filhos dos portugueses. Os cabo-verdianos praticamente não tinham acesso à escola. Desse modo, foi preciso definir uma estratégia para implementar o ensino no país. Cabo Verde decidiu, então, priorizar o ensino básico nos primeiros dez anos de independência. Na década posterior, o foco foi o ensino secundário. Nos últimos dez anos foi a vez de o país trabalhar na implantação do sistema de ensino superior”, relata.

Conforme o autor da dissertação, o Brasil participou das duas primeiras fases, mas o forte da cooperação com Cabo Verde ocorreu a partir do início da instalação do sistema de ensino superior naquele país. “Essa contribuição ocorreu de diversas maneiras. Uma delas foi a oferta de vagas para que os estudantes cabo-verdianos pudessem vir fazer a graduação no Brasil, num momento em que o país ainda não contava com um sistema de ensino superior”, assinala.

Um dos marcos dessa colaboração, acrescenta a professora Debora Jeffrey, foi o Programa de Estudantes-Convênio de Graduação [PEC-G], que oferece oportunidades de formação superior a cidadãos de países em desenvolvimento com os quais o Brasil mantém acordos educacionais e culturais. “Através do PEC-G, e depois do PEC-PG [Programa Estudantes-Convênio de Pós-Graduação], muitos cabo-verdianos puderam se formar, retornar para casa e ajudar na construção da estrutura social de Cabo Verde”, conta a docente. A maior parte desses jovens foi acolhida por universidades públicas federais e estaduais, entre elas a Unicamp.

Ainda em vigor, os dois programas continuam sendo muito aproveitados pelos jovens cabo-verdianos. Das 55 nações que participam do acordo com o Brasil, o país africano é o que mais envia estudantes para cá, de acordo com dados obtidos junto à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e Ministério das Relações Exteriores do Brasil. Além disso, mais da metade dos alunos africanos que vêm fazer graduação e pós-graduação em instituições brasileiras é originária de Cabo Verde. “De 2000 a 2013, meu país enviou para cá 2.657 alunos de graduação e 125 de pós-graduação”, aponta o autor da dissertação.

História oral

Em relação aos números envolvidos nos acordos bilaterais, a orientadora do trabalho faz uma observação importante. De acordo com ela, não existiam documentos ou estatísticas em nenhum dos dois países sobre a abrangência do acordo de cooperação anterior ao ano 2000. “Para ajudar a reconstituir essa história da cooperação entre os dois países, Morais precisou utilizar a metodologia da história oral. Ele entrevistou pessoas dos dois países que participaram ativamente do processo, como ex-alunos, técnicos, pesquisadores, governantes e o ministro do Ensino Superior de Cabo Verde, para resgatar elementos que ajudassem a contar como Cabo Verde foi constituindo o seu sistema educacional”, esclarece.

Além dos programas mencionados, acrescenta Morais, o Brasil contribuiu com outras iniciativas para a constituição do ensino superior cabo-verdiano. Nos últimos quatro anos, por exemplo, Cabo Verde tem enviado anualmente 30 alunos para participar de cursos e atividades de iniciação científica em instituições brasileiras. Professores do país africano também têm aportado por aqui periodicamente para cumprir cursos de capacitação, notadamente os relacionados às práticas de ensino de matemática e português. “O Brasil também colaborou para a criação da primeira e até hoje única universidade pública de Cabo Verde. Mais recentemente, os dois países firmaram novo convênio com o objetivo de criar um sistema de avaliação do ensino superior, para verificar como está a qualidade do ensino oferecido no país”, relaciona Morais.

Na prática, continua o autor da dissertação, um novo acordo de cooperação tem sido assinado pelas duas nações ao longo dos últimos dez anos. Graças a essa parceira, e obviamente ao esforço nacional, Cabo Verde conseguiu promover uma mudança expressiva no perfil de seus graduados. “Dez anos atrás, a maioria dos nossos estudantes fazia graduação no exterior. Atualmente, a maioria estuda no próprio país. Hoje, temos aproximadamente 12 mil jovens matriculados no sistema de ensino superior cabo-verdiano”, destaca Morais.

Um dos desafios ainda a serem superados pelo país, aponta o pesquisador, é a interiorização do sistema. As instituições de ensino superior de Cabo Verde estão todas localizadas em duas ilhas, Santiago e São Vicente. “É preciso levar o ensino para as demais ilhas, para onde o aluno está. Nem todas as famílias têm condições de manter um filho por vários anos em outra cidade”, pondera Morais. Questionado sobre os resultados práticos desse acordo para desenvolvimento de Cabo Verde, o autor da dissertação diz que esta pergunta deverá ser respondida durante a sua pesquisa de doutorado, que deseja realizar na própria FE.

Ele esclarece que o projeto inicial do mestrado tinha como foco essa questão. “Entretanto, discutindo com minha orientadora, concluímos que antes de buscar essa resposta seria necessário primeiramente contar a história de como foi firmado e conservado o acordo de cooperação educacional entre o Brasil e Cabo Verde, e como isso contribuiu para a construção de um sistema de ensino superior no país, aspecto que ainda não havia sido contemplado pela literatura. No doutorado, meu objetivo é recorrer aos documentos oficiais e a entrevistas com diversos atores para descobrir quem são e onde estão as pessoas que se beneficiaram desses acordos bilaterais e de que forma elas contribuíram para o avanço de Cabo Verde”, adianta.

Morais tem algumas pistas sobre o destino de algumas dessas personagens. Afinal, vários jovens que viajaram ao exterior para buscar a formação que não podiam encontrar na própria nação se transformaram em quadros importantes da política, do segmento empresarial, da academia e de tantos outros setores. “O primeiro-ministro de Cabo Verde, José Maria Pereira Neves, por exemplo, é um ex-aluno da Fundação Getúlio Vargas (FGV), onde estudou Administração Pública graças aos acordos bilaterais com o Brasil”, aponta Morais, ele também um beneficiado pelo PEC-PG. O pesquisador revela que também pretende voltar ao país de origem depois de concluir o doutoramento. “É meu projeto de vida retornar a Cabo Verde e contribuir para a continuidade da construção do país”, revela.

Para a professora Débora Jeffrey, a cooperação entre Brasil e Cabo Verde não resultou em benefícios somente para o país africano. Segundo ela, um dos aspectos levantados pela banca examinadora da dissertação foi justamente a relevância dos acordos para as duas partes, visto que eles permitem uma troca cultural extremamente rica e relevante. “Nessa história contada por Morais, não é somente o Brasil que proporciona o apoio. Ele também recebe, principalmente por ter tido a oportunidade de ter acesso a outras perspectivas de educação. O estudo contribui para entender a relevância dessa parceria. Ajuda a compreender, ainda, que os resultados relacionados à educação não são imediatos. Depois de 30 anos, no caso de Cabo Verde, é que se está conseguindo consolidar a formação de quadros. Agora os resultados podem ser avaliados, de modo a oferecer elementos para, quem sabe, promover a constituição de um sistema de ensino genuinamente cabo-verdiano”, infere.

Publicação
Dissertação: “Cooperação bilateral entre Brasil e Cabo Verde: uma análise a partir dos convênios de ensino superior”
Autor: Oziel Duarte Morais
Orientadora: Debora Cristina Jeffrey
Unidade: Faculdade de Educação (FE)