Edição nº 566

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 23 de junho de 2013 a 29 de junho de 2013 – ANO 2013 – Nº 566

Da universidade à periferia, os sentidos do mundo real

Pesquisadores do Labeurb desenvolvem projeto que leva arte, cultura e lazer a moradores de bairro com problemas de infraestrutura


Todas as semanas, um grupo de pesquisadores e alunos ligados ao Laboratório de Estudos Urbanos (Labeurb) viaja 32 quilômetros entre o campus de Barão Geraldo e o Núcleo Residencial Eldorado dos Carajás, na região do Ouro Verde, em Campinas, a fim de ministrar oficinas de informática, contação de histórias, fotografia, realização de sessões de cinema, entre outras atividades, para a comunidade local. Esta é uma rotina que se repete desde fevereiro de 2010, quando teve início o projeto de extensão “Barracão: Eldorado dos Carajás”, desenvolvido pelo laboratório.

O projeto, que conta com financiamento do Ministério da Educação e apoio da Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários (Preac) da Unicamp, foi concebido com o objetivo de articular as três linhas de atuação fundamentais da Universidade – pesquisa, ensino e extensão – por meio de oficinas, com foco em atividades educativas.

“Inicialmente, as oficinas foram pensadas como espaço de elaboração de materiais artísticos sobre a história dos sujeitos que vivem no núcleo”, explica a coordenadora do projeto, Cristiane Pereira Dias, que também é vice-coordenadora do Labeurb, que integra o Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade (Nudecri).

“Trabalhamos com linguagem, então nossa intenção era colocar o sujeito em confronto com sua realidade, a fim de mostrar que o sentido do espaço que ele habita pode ser diferente do que se costuma acreditar”, defende Cristiane. O desafio que se colocava, continua a linguista, era dar sentido para o conhecimento produzido por moradores de um bairro de periferia, já significado como um lugar de pessoas excluídas e destituídas de saber.

Para o professor Eduardo Guimarães, coordenador do Labeurb, a importância do projeto reside em estabelecer uma relação entre a Universidade e a sociedade numa perspectiva de uma relação de trabalho real, e não somente como construção de um corpus de pesquisa. “É essa relação dinâmica que é muito própria de um projeto como o Barracão que dá a riqueza dele nos dois lados, da Universidade e da sociedade”.

Assim, do objetivo inicial até o presente, os pesquisadores percorreram um caminho de mão dupla em que tanto as oficinas quanto a pesquisa foram se remodelando no contato entre os pesquisadores e a comunidade. Como analisa a linguista e professora Eni Orlandi, integrante do Labeurb, “poder compreender o efeito da prática da pesquisa na sociedade atinge essa população na vida dela”. De um lado, as oficinas foram assumindo formatos, se adaptando às condições existentes no bairro e às expectativas de seus moradores. De outro, o projeto acabou dando origem a artigos científicos e a duas pesquisas de mestrado.

O jornalista Vinícius Wagner Oliveira Santos defendeu sua dissertação em 2012, no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor). Seu trabalho enfoca, a partir de sua experiência no projeto, as contradições inerentes ao discurso da inclusão digital. A também jornalista Andrea Klaczko, mestranda do Labjor, está realizando uma pesquisa sobre o processo de produção de um jornal comunitário com base em sua atuação na oficina Fotografias do Cotidiano, que desenvolve com adolescentes.


Marcas de uma história 

A história do Eldorado dos Carajás ajuda a compreender a proposta que norteia o projeto Barracão e seus desdobramentos. O núcleo, localizado em uma das áreas mais empobrecidas do município, surgiu de uma ocupação no ano de 1996. É, então, um lugar carregado de sentidos de exclusão. A começar pelo próprio nome do bairro, que remete ao massacre do Eldorado dos Carajás, ocorrido no sul do Pará, naquele ano, durante uma passeata em protesto contra a demora da desapropriação de fazendas que haviam sido ocupadas pelos manifestantes. Durante a manifestação, um confronto com policiais militares resultou na morte de 19 sem-terra.

Esta história inspirou as famílias que ocuparam a área na região do Ouro Verde, numa trajetória marcada, desde então, pelas tensões entre exclusão e inclusão: dos barracos de tábua construídos no primeiro momento, às casas de alvenaria, muitas ainda sem acabamento, ocupadas pelas cerca de 900 famílias que hoje vivem no núcleo residencial, foi um longo processo de negociação com o proprietário da terra, intermediado pela Companhia de Habitação Popular de Campinas (Cohab-Campinas).

Atualmente, a Associação dos Moradores do Parque Eldorado dos Carajás detém a escritura da área ocupada pelo bairro, mas a escritura individual dos terrenos ainda está em negociação com o poder público. Por isso, os moradores do bairro sofrem com a precariedade da infraestrutura urbana: as ruas não são asfaltadas, o que impossibilita que os caminhões da limpeza pública entrem no bairro, por exemplo.

“Esta é nossa principal necessidade hoje. Quando chove, as ruas ficam enlameadas. Quando está seco, a poeira é insuportável. Muitas pessoas têm asma, bronquite”, conta Maria Elisângela Frutuoso, presidente da associação. Luz elétrica, água tratada e esgoto, serviço de correio e linha de ônibus até o terminal Ouro Verde já fazem parte do cotidiano dos moradores do Eldorado dos Carajás.


A voz da comunidade

Além de melhorias na infraestrutura urbana, as ações sociais e culturais sempre foram outra forte demanda da população local. “Antes, tinha uma escolinha de futebol, mas acabou”, lamenta Elisângela. É justamente nesse contexto que o projeto Barracão se insere. Uma demanda que marcou, no ano de 2008, o início da aproximação entre a comunidade Eldorado dos Carajás e a Unicamp, por meio do Labeurb.

Lideranças do bairro participaram de um evento periodicamente organizado pelo Labeurb, o Conversa de Rua, que traz para a universidade pessoas, grupos e atividades desenvolvidas nas ruas da cidade com a finalidade de estabelecer um diálogo. Na ocasião, foi apresentada a reivindicação para que fosse coberto um barracão que começou a ser construído pelos moradores do Núcleo. A ideia era criar um espaço para atividades de lazer e cultura, especialmente para as crianças.

Graças às gestões do Labeurb com o poder público, o barracão foi coberto, materializando um espaço desejado. “Quando o projeto foi montado, a ideia era realizar as oficinas neste barracão, daí o nome do projeto. Mas nos desdobramentos das negociações com a comunidade, o espaço viabilizado foi o da associação de moradores”, relembra Cristiane.

Dessa forma, atualmente, as únicas atividades de lazer e cultura a que crianças, adolescentes e mulheres têm acesso na comunidade são as oficinas do projeto, na casa da Associação de Moradores. Em 2012, as atividades também passaram a ser realizadas no Centro de Políticas Sociais (Ceps) Nelson Mandela e na unidade do programa “Jovem.com”, no terminal Ouro Verde. “O ideal seria ter uma atividade por dia, a semana toda”, reivindica a presidente da associação de moradores. “As oficinas são uma oportunidade para aprender coisas novas e as mães gostam porque as crianças não ficam na rua”.

Quem participa, aprova. Júlia Inácio, de 5 anos, diz que participa da oficina “Era uma vez...”, de contação de histórias, porque gosta de “desenhar, estudar e de livros”. Guilherme Rian da Cruz Alvez, de 11 anos, relata que passou a ler livros desde que começou a participar da oficina. E Ana Luisa Zanardo Cassiano, de 9 anos, é frequentadora assídua desde 2011. “Gosto das histórias. Fico esperando o dia chegar”, diz.

Mais que propiciar contato com o mundo dos livros, a oficina, que funciona desde 2010, quando o projeto teve início, criou um espaço diferenciado de relacionamento entre as próprias crianças, bem como uma interface com a comunidade, abrindo possibilidades de interação com materiais pouco comuns naquele universo: no início deste ano, foi montada, com recursos do projeto (Programa de Extensão Comunitária 2011 da Unicamp e MEC), uma biblioteca infantil com livros e brinquedos educativos, à qual as crianças que participam da atividade têm acesso.

Além de propiciar contato com o mundo dos livros, a oficina tem o objetivo de conduzir as crianças a vislumbrarem novos sentidos para o local onde vivem por meio da criação de uma maquete do bairro no futuro, utilizando materiais recicláveis. “Dessa forma, elas podem enxergar o espaço onde vivem não apenas como um lugar de exclusão, pobreza, precariedade, mas como um lugar de criação. A construção da maquete é uma construção de sentidos para cada rua do bairro, para cada casa, para o comércio”, analisa Cristiane Dias. “O que tem no meu bairro? O que não tem? O que eu gostaria que tivesse? É uma forma de fazer com que as crianças olhem para o bairro, reflitam, se sintam parte dele/nele e não apenas ouçam o que dizem dele”.


Ampliando horizontes

Todas as oficinas do projeto caminham na mesma direção: buscam colocar os participantes em confronto com a realidade em que vivem, trazendo a eles elementos – por meio da arte, da cultura e do lazer – que possibilitem a construção de uma percepção mostrando que o espaço que habita não é, necessariamente, o da exclusão. “É neste sentido movente que queremos trabalhar, interferindo, afetando a realidade social da comunidade”, complementa.

Assim como as crianças que participam da oficina “Era uma vez...”, que teve como responsável, até o final de 2012, Débora Massmann, despertaram para a leitura, o prazer de desenhar e de imaginar que seu bairro pode, no futuro, se constituir como um espaço com ruas asfaltadas, praças e parques, os participantes das demais oficinas estão tomando contato com conhecimentos, tecnologias, arte e cultura, e possibilidades de construir novas relações com o espaço onde vivem. Um exemplo são as sessões de cinema, coordenadas por Greciely Costa, que o projeto realiza periodicamente nos bairros da região dos DICs. “Cada pesquisador tem uma questão que norteia seu trabalho. O pano de fundo é pensar o papel da universidade na sociedade”, afirma a coordenadora do projeto.

Nesse sentido, Eni Orlandi afirma que “uma prática de pesquisa desse tipo faz com que a gente tenha um contato muito real, forte e exigente, do ponto de vista teórico e metodológico, com a sociedade, o grupo social, com o que a gente está trabalhando”. A autora e inspiradora do projeto diz ainda que, muitas vezes, a denominação “projeto de extensão” parece definir no que ele consiste. “Mas acho que é só trabalhando num projeto como esse que me faz compreender um pouco melhor quantos sentidos podem ser colocados no que seja um projeto de extensão”.

Afinal, continua a linguista, um projeto dessa natureza pode assumir um caráter utilitário, de produzir algumas coisas a serem deixadas para um grupo social específico. Pode ainda ser “de extensão” no sentido de ser alguma coisa que está sendo produzida na universidade e que ela estende, então, para um grupo social ou para alguma instituição. “Mas, aqui, nesse trabalho, não é só uma extensão para fora da universidade. A universidade é atingida também no seu modo de trabalho, o que é muito importante. A extensão, justamente, não tem o aspecto linear. Há muito de inesperado e há muito de provocador, para nós mesmos, que estamos envolvidos no projeto”, diz. Eni Orlandi participa do Barracão realizando um trabalho com as mulheres do Eldorado dos Carajás, com o objetivo de produzir um documentário sobre essas mulheres e suas vivências.

Já a oficina Fotografias do Cotidiano, conduzida por Andrea Klaczko e da qual participam oito adolescentes, tem como objetivo produzir um jornal comunitário, e é o tema de sua pesquisa de mestrado, ainda em andamento. Para chegar ao produto final, Andréa percorreu algumas etapas, começando pela sensibilização das fases de produção de um jornal – diagramação, produção de textos e de fotografias, edição etc.

O formato do jornal já foi definido pelos próprios adolescentes: serão criados um blog e um jornal impresso, sob o comando deles próprios. “O jornal será baseado em perfis dos moradores da comunidade”, explica Andrea. A intenção é relatar histórias que envolvem as fotos, apresentando a realidade em que vivem a partir da perspectiva dos personagens dessas histórias.

O trabalho com fotografia abrangeu desde o exercício de fotografar, até uma reflexão sobre a identidade dos moradores dos bairros daquela região. Andrea conta que, embora a maior parte dos participantes da oficina seja negra, estes não se identificavam como tal. Daí a ideia de levá-los ao museu Afro Brasil, em São Paulo, para praticarem fotografia e para um trabalho de resgate da própria identidade. Os exercícios dos alunos também resultaram em uma exposição no Ceps Nelson Mandela, no início de junho.

Vinícius Santos, por sua vez, está envolvido no Barracão desde a concepção do projeto. Já conduziu diversas oficinas: de imagem, de informática básica, de produção de blogs e, atualmente, está à frente, pela segunda vez, de uma oficina sobre edição de áudio. A intenção é trabalhar com as crianças e os adolescentes que participam da atividade é transmitir conhecimentos básicos, que possam ser aplicados num programa de rádio criado por eles para ser divulgado na internet ou por meio de outro meio.


Mútiplas direções

As oficinas não se constituem, então, como um espaço no qual os pesquisadores transmitem à comunidade seu conhecimento ou o saber acadêmico e científico, promovendo o contato com um mundo da qual ela estaria excluída.

Diferentemente, o processo é complexo e comporta, muitas vezes, o inesperado, levando-os a replanejarem as atividades e a ajustarem os objetivos. Cristiane Dias conta, por exemplo, que foram necessários cerca de seis meses para adequar a estrutura física para dar início às oficinas de informática: a sala disponível tinha apenas uma tomada, com capacidade insuficiente para conectar os computadores. Além disso, durante muito tempo, o grupo contava com apenas três máquinas, que não atendiam à demanda. “Foram muitas as dificuldades, muitas das quais inesperadas. Mas isso faz parte do projeto e enriqueceu nossa proposta de trabalho”, relembra.


Ao mesmo tempo, o contato com a comunidade remodela e direciona a pesquisa daqueles que estão envolvidos nas atividades. A mestranda Andrea tinha a intenção de pesquisar jornais comunitários enquanto ferramenta de reflexão para moradores de periferia. “Acreditava que as técnicas jornalísticas poderiam ser apropriadas por esses adolescentes e, a partir delas, eles poderiam criar novas relações com o mundo onde vivem”.

Mas a participação no Barracão deslocou seu foco: “Com o desenrolar do projeto, fui vendo que um projeto de extensão é a própria ferramenta de reflexão social, pois quando duas realidades tão distintas se encontram, necessariamente, se chocam”, analisa a pesquisadora, referindo-se a seu trabalho na oficina de fotografia. “São esses choques os responsáveis por produzir novos pensamentos e uma reflexão sincera sobre a realidade”.


Da mesma forma, quando iniciou seu mestrado, Vinícius Santos tinha a intenção de trabalhar o conceito de inclusão digital, acompanhando as atividades de um telecentro. O envolvimento com o Barracão e, em particular, com as oficinas, possibilitou a ele uma reflexão sobre as contradições inerentes ao conceito, que muitas vezes assume os contornos de instrumentalização, ou seja, ensinar pessoas que não dominam os códigos e comandos do mundo da informática.

A vivência nas oficinas trouxe a ele outras perspectivas e, consequentemente, uma mudança de rumos da dissertação: na medida em que as crianças e adolescentes tomavam contato com as ferramentas e possibilidades dos softwares e dos computadores, descolavam-se do lugar “daquele que nada sabe”, do excluído. Alguns porque demonstravam ter algum conhecimento prévio do mundo da informática – mesmo que tenham se declarado “iniciantes” ao se inscreverem na oficina, outros porque, ao aprenderem a usar as ferramentas, assumiam uma posição de autonomia, construindo imagens e músicas.

Nesse sentido, uma das conclusões de Santos, em sua dissertação, remete ao questionamento do formato, muitas vezes excessivamente instrumental, dos programas de inclusão. “Nosso questionamento vai na direção de que o investimento em inclusão deveria ser destinado a projetos diversos, que estimulem uma produção própria de conhecimentos e saberes”, reitera.

Comentários

Comentário: 

Parabéns Cris pelo empenho e dedicação ao projeto. Trabalhar diretamente com o público é muito gratificante, principalmente com crianças. Parabenizo também os alunos Vinicius e Andrea.

Comentário: 

O desenvolvimento em pesquisa neste segmento, é raro em uma faculdade/universidade, a maioria dos pesquisadores focam na informática e poucos destes investem em sentidos do mundo real.
Parabéns a todos os envolvidos: vocês estão no caminho certo!
Qualquer coisa, estou a disposição no email abaixo:

atendimento@uoiea.com.br