Edição nº 555

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 25 de março de 2013 a 25 de março de 2013 – ANO 2013 – Nº 555

Medida avalia autoaceitação de cego

Desenvolvido na FEF, método inédito no país
mensura aspectos positivos
da imagem corporal

Não havia no país uma medida específica que avaliasse de maneira sistemática aspectos positivos da imagem corporal como a autoaceitação de pessoas com cegueira congênita ou precoce, ou seja, aquelas que nasceram com a cegueira ou a manifestaram até os oito anos de idade. Mas a medida acaba de ser criada pela profissional de educação física Fabiane Frota da Rocha Morgado em seu estudo de doutorado, desenvolvido no Laboratório de Imagem Corporal da Faculdade de Educação Física (FEF) entre 2010 e 2012. O trabalho foi orientado pela docente Maria da Consolação Gomes Cunha Fernandes Tavares e financiado pela Fapesp.

A pesquisadora idealizou uma ferramenta – a Escala de Autoaceitação (EAC) para pessoas com cegueira congênita ou precoce. A EAC é do tipo Likert (variando de 1=nunca até 5=sempre), composta por três fatores: aceitação corporal (expressão de amor e admiração pelo próprio corpo); proteção de estigmas sociais (estruturação de um filtro cognitivo de proteção em que a maior parte de informações negativas de estigmas sociais é ignorada, enquanto as positivas são internalizadas) e sentimentos e crenças de capacidade (reconhecimento e valorização das próprias capacidades e realizações).

Para avaliar esses fatores, um conjunto de 33 itens foi gerado, porém a versão final da escala foi composta por 18 deles. Foram algumas das questões: você gosta de seu corpo como ele é?; você se incomoda com opiniões preconceituosas a respeito de sua cegueira?; e sua cegueira lhe atrapalha a fazer coisas que gosta?

Para afirmar que o sujeito com deficiência visual apresenta autoaceitação por meio desse instrumento, ele deve apresentar altos escores nesses fatores.

A autoaceitação, define Fabiane, é a aceitação de si mesmo da maneira que se é, por meio do reconhecimento tanto das características positivas quanto das negativas, mas da valorização daquelas características consideradas positivas.

A nova medida apresentou adequadas qualidades psicométricas – validade e confiabilidade interna – para avaliar a autoaceitação de pessoas que não enxergam desde idades precoces. Esse resultado foi possível graças a uma ampla investigação realizada com 318 sujeitos com cegueira congênita ou precoce com idade entre 18 e 60 anos, que foram recrutados em cidades distintas das regiões Centro-Oeste, Nordeste e Sudeste.

Em cada uma das regiões, foram entrevistadas pessoas de diferentes centros de atendimento ao deficiente visual e de eventos culturais e científicos destacados que reúnem esse público, como o DOSVOX, no Rio de Janeiro, e o Blind Brasil, no Rio de Janeiro e Fortaleza. Em Campinas, Fabiane avaliou integrantes do Centro Cultural Louis Braille e do Instituto dos Cegos Trabalhadores.

A importância de estudar a autoaceitação de pessoas que não enxergam, segundo a autora do estudo, é que um quadro de não autoaceitação pode lhes trazer inúmeros transtornos psicopatológicos, como depressão, angústia, baixa autoestima e ansiedade. “É uma relação negativa que pode levar a um quadro patológico passível de tratamento e terapia”, diz.

Além disso, a não autoaceitação pode gerar transtornos alimentares como a anorexia e a bulimia nervosa, entre outros fatores. Com a disponibilidade de instrumentos válidos e confiáveis, é possível avaliar esses transtornos viabilizando terapias de intervenção.

Em pessoas com deficiência, a autoaceitação estimula uma imagem corporal integrada positiva, que promove uma relação mais saudável com o próprio corpo e o mundo. Somada a essa questão, pessoas com deficiência com elevados níveis de autoaceitação experimentam inúmeros benefícios: têm altos níveis de valor pessoal, sentimentos e crenças nas próprias capacidades e realizações, facilidade para lidar com dificuldades cotidianas e atuar ativamente na sociedade, ocupando diversos postos profissionais.

RESULTADOS
Algumas inferências emergiram ao ser criada a EAC. Notou-se uma relação entre a frequência semanal da prática de atividade física e a autoaceitação. Os participantes que relataram a prática regular de atividade física (por pelo menos três vezes por semana) tiveram maiores níveis de autoaceitação do que aqueles que praticavam a atividade física com menor frequência semanal.

Esse resultado, constata Fabiane, ressalta o valor que a prática regular de atividade física possui no desenvolvimento e manutenção da autoaceitação em pessoas com cegueira. Em paralelo, a pesquisa trouxe outras inferências estatísticas que condizem com a realidade. Uma delas é que os participantes inseridos no mercado de trabalho têm maiores índices de autoaceitação do que os não inseridos.

Essa informação traz argumentos para políticas públicas de inclusão no mercado de trabalho, realça a doutoranda, mas também contribui para que, nas associações e centros especializados para atendimento de pessoas com deficiência visual, sejam valorizados serviços específicos para preparar esses sujeitos para o trabalho, por meio de oficinas, cursos técnicos e estrutura funcional para encaminhá-los ao mercado.

Outra questão é que os sujeitos que sentem mais preconceitos e estigmas sociais têm menores índices de autoaceitação, o que leva a concluir que a internalização dos estigmas, que comumente consideram o sujeito com deficiência como incapaz, é prejudicial à autoaceitação de pessoas que não enxergam desde idades precoces.

Esse fato, analisa Fabiane, deve ser levado em conta por profissionais da saúde no momento de propor estratégias que auxiliem seus alunos/pacientes com cegueira a filtrar informações negativas a seu respeito, considerando só aquelas que são positivas à estruturação da sua identidade.

Ela desvendou ainda correlação significante e positiva entre a variável autoaceitação e satisfação corporal. Verificou também que o nível de escolaridade se correlaciona significante e positivamente com o fator sentimentos e crenças de capacidade. Esses achados foram essenciais para confirmar a validade convergente da nova escala.

A principal funcionalidade do estudo foi propiciar aos profissionais da saúde um instrumento válido e preciso para conhecerem melhor a autoaceitação de pessoas que não enxergam desde idades precoces, para uma intervenção mais eficiente. “A ideia é contar com profissionais mais preparados. Conhecendo melhor os alunos/pacientes com cegueira, é possível um atendimento mais adequado”, realça Fabiane. “Esperamos contribuir para o avanço na avaliação da imagem corporal, permitindo a ampliação consistente do conhecimento na área e favorecendo a inclusão de pessoas com cegueira nesses estudos”.

INSTRUMENTALIZAÇÃO
De acordo com a autora, até hoje os estudos sobre imagem corporal de pessoas com deficiência visual são muito escassos e uma das prováveis razões é a ausência de instrumentos válidos e precisos para essa avaliação.

De fato, a preocupação da pesquisadora em criar instrumentalização apropriada para investigações sistemáticas da imagem corporal de pessoas com cegueira tem sido recorrente desde 2008, quando iniciou o mestrado. A pesquisadora criou e conferiu as qualidades psicométricas de uma Escala de Silhuetas Tridimensionais (EST).

A EST é composta de 18 bonecos tridimensionais, confeccionados em gesso, com diferentes dimensões e formas corporais, que oscilam do mais magro ao mais obeso. São nove modelos femininos e nove masculinos, todos numerados de 1 (mais magro) a 9 (mais obeso).

Essa escala visa observar a insatisfação corporal de pessoas com cegueira congênita. O sujeito escolhe um boneco que melhor representa o corpo que considera real e outro que representa o corpo ideal. Quanto maior a discrepância entre o número do boneco selecionado como real e ideal, maior é a medida de insatisfação corporal.

No caso, a pesquisadora teve uma preocupação de criar um instrumento que valorizasse um dos principais modos da pessoa com cegueira obter informações sobre o meio que a cerca. “Gostaríamos de lhe oferecer a chance de participar de estudos com um instrumento que correspondesse à sua forma de se relacionar com o mundo: o instrumento tátil, que, naquela época, pensávamos que poderia ser apropriado, e depois confirmamos que realmente era, sobretudo para as mulheres”.

Os bonecos da escala feminina tiveram bons indícios de validade e confiabilidade interna, enquanto que os modelos masculinos não. Fabiane arrisca algumas hipóteses porque esse modelo não teve a mesma qualidade psicométrica do feminino.

Uma das especulações é que o ideal de corpo belo na literatura, para homens, é o corpo musculoso, e não o corpo magro, como comumente apontado para mulheres. A EST varia em dimensão de gordura. Por conseguinte, o que se pretende, no futuro, é testar formas de escala de silhueta para homens com cegueira que possam variar em dimensão de musculatura corporal.

Há ainda outras especulações como a forma artesanal com que esses bonecos foram confeccionados, o que pode ter interferido na qualidade dos modelos para homens. Por outro lado, a escala também não foi criada a partir de medidas antropométricas reais de corpos humanos e sim fundadas na avaliação subjetiva da artista plástica.

Mesmo assim, a doutoranda admite que tanto a EST quanto a EAC foram um avanço para analisar traços da imagem corporal da pessoa com cegueira. E poderão colaborar para ampliar o conhecimento sobre a imagem corporal de pessoas que não enxergam desde idades precoces. Como? Tornando viáveis investigações sistemáticas que possibilitem o entendimento mais aprofundado sobre os fatores potenciais do desenvolvimento e manutenção da insatisfação (EST) e autoaceitação (EAC) na população com cegueira.

Tal conhecimento poderia ser utilizado por diferentes profissionais, como psicólogos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais e, em especial, de educação física, no momento de propor estratégias de intervenção adequadas e consistentes.

Conforme Fabiane, as duas escalas permitem que esses profissionais acompanhem o impacto da sua intervenção, ajustando-as mediante a necessidade de cada aluno com cegueira congênita ou precoce. “Para o profissional de educação física, esse acompanhamento é inestimável, pois há indícios na literatura de que a atividade física, com enfoque no bem-estar, é uma precursora fundamental de maiores níveis de autoaceitação e menores níveis de insatisfação corporal.”

Ademais, a atividade física é um valioso elemento terapêutico e de manutenção da autoaceitação e de satisfação corporal para pessoas com deficiência, principalmente por lhes possibilitar uma agradável relação com o próprio corpo, colaborando para o desenvolvimento integrado, saudável e positivo de sua imagem corporal.

Publicações

Tese: “Escala de autoaceitação para pessoas com cegueira congênita: desenvolvimento e investigação psicométrica”

Autora: Fabiane Frota da Rocha Morgado

Orientadora: Maria da Consolação Gomes Cunha Fernandes Tavares

Unidade: Faculdade de Educação Física (FEF)

Financiamento: Fapesp