Edição nº 530

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 18 de junho de 2012 a 24 de junho de 2012 – ANO 2012 – Nº 530

Dissertação analisa o lugar do
Clube da Esquina
na linha evolutiva da MPB

Estudo mostra que está na berlinda debate acerca da
legitimação do grupo que reuniu sobretudo músicos mineiros

Dois meninos sentados à beira da estrada. Um branco e um negro. Uma capa de disco/emblema, que dá origem, em 1972, a um capítulo importante na história da Música Popular Brasileira. Passados 40 anos, é hora de refletir: qual terá sido afinal a expressão do Clube da Esquina? É possível dizer que se constituiu em um movimento? Por que alguns de seus integrantes reivindicam, em seus discursos atuais, o reconhecimento e a legitimação que têm, por exemplo, a Bossa Nova ou o Tropicalismo? Estas e outras questões são abordadas na dissertação de mestrado “Nuvem Cigana – a trajetória do Clube da Esquina no campo da MPB”, de autoria de Sheyla Castro Diniz, apresentada no âmbito do programa de Pós-Graduação em Sociologia, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. O trabalho foi orientado pelo professor Marcelo Siqueira Ridenti.

A dissertação se desenvolve a partir de entrevistas que a pesquisadora fez com os integrantes Tavinho Moura, Márcio Borges e Fernando Brant, além da análise bibliográfica e de documentos históricos, pareceres de censores da ditadura militar, discos e letras de canções.

No trabalho, Sheyla defende a tese de que o Clube da Esquina passa por uma reavaliação histórica. O debate acerca da legitimação teria se intensificado após iniciativas do letrista Márcio Borges, com a publicação do livro Os Sonhos não Envelhecem – Histórias do Clube da Esquina, de 1996, e o lançamento do site Museu Clube da Esquina, em 2004. “Minha intenção era pesquisar a mineiridade nas canções do grupo, mas com o avanço do trabalho comecei a me indagar sobre o debate que estava muito aceso em todas as fontes que eu buscava. Percebi que há uma tentativa de colocar o Clube da Esquina em foco, mostrar que ele é uma referência matricial para a MPB”, diz.

A comparação com outras manifestações musicais englobadas pela sigla MPB, especialmente o Tropicalismo, é frequente neste debate. De acordo com a autora, o Clube da Esquina não pode ser visto como um simples desdobramento deste movimento, e, tampouco, como uma “vanguarda artística”. “No Tropicalismo havia a intenção de provocar músicos e compositores vinculados a um ideário ‘nacional-popular’, com a introdução de elementos que a ‘canção de protesto’ rejeitava, como o rock e a guitarra elétrica, por exemplo. Em meio a esse contexto dos festivais da canção, no fim dos anos 1960, não era possível falar em Clube da Esquina”.

No Clube, a incorporação do rock aparece nas canções a partir das parcerias que Milton Nascimento estabeleceu com a banda Som Imaginário e com os “beatlemaníacos” Lô Borges e Beto Guedes, respectivamente em 1970 e 1972. Sobre o termo “vanguarda”, a autora do trabalho afirma: “embora o termo apresente problemas quando associado ao Tropicalismo, uma vez que está historicamente ligado à chamada ‘alta cultura’ e não à ‘cultura de massa’, pode-se encontrar um trânsito entre essas duas esferas na experiência encabeçada pelos ‘baianos’. Mas isso só se tornou relevante com base no momento específico no qual esses artistas estavam inseridos e, também, pelo apoio que eles receberam de figuras como o músico ‘erudito’ Julio Medaglia e o poeta concreto Augusto de Campos”.

Outra questão é que, embora tenha durado mais ou menos dois anos, entre 1967 e 1968 (porque depois Caetano Veloso e Gilberto Gil foram para o exílio), o Tropicalismo tem características mais próximas de um movimento de reflexão social e estética. “O Clube da Esquina foi bem mais informal. Não seria cabível, portanto, falar em vanguarda quando certos paradigmas a Tropicália já havia colocado” completa.

Informalidade, aliás, é marca peculiar do grupo “mineiro”, além da heterogeneidade. Sheyla chama atenção para este ponto já na introdução do trabalho quando tenta responder, com uma série de suposições, à pergunta “O que foi o Clube da Esquina?”.  A resposta que lhe parece mais simpática aparece na última indagação “... Ou uma turma informal de músicos, letristas e instrumentistas dotada de grande heterogeneidade estética e concepções políticas que surgiu e se dissipou espontaneamente no decorrer dessas décadas?”. Justamente. Aí está, inclusive, a razão de o nome da tese ser “Nuvem Cigana”, título de uma canção com música de Lô Borges e letra de Ronaldo Bastos. “Trata-se de uma metáfora para a trajetória do Clube da Esquina, que vai se formando, chega ao ápice e depois passa.”

Para Sheyla, outra maneira de se referir ao Clube da Esquina é como uma “turma de amigos”. “E elas [as turmas] se formam e têm um fim”, complementa. A pesquisadora ressalta que na época não havia, por parte dos artistas, a intenção de organizar um movimento. O nome do disco “Clube da Esquina”, de 1972, se refere a uma esquina do bairro Santa Tereza, em Belo Horizonte, que ficava próxima da casa de Márcio e Lô Borges. “Exceto Lô, que era mais novo, ninguém tocava na esquina. Em uma entrevista a que tive acesso, ele conta que a expressão surgiu para fazer referência aos clubes da alta sociedade que havia na capital mineira àquela época. Como ele e seus amigos do futebol que frequentavam a esquina eram mais pobres, ali ficou batizado de ‘clube da esquina’”.

Se as turmas de amigos se desfazem, para Sheyla a dissolução do Clube da Esquina se deu com o processo de abertura política e o fim da ditadura militar no Brasil. “Em 1972 havia o contexto de resistência, da contracultura, do ‘desbunde’ e também do existencialismo, da esquerda festiva. O Clube da Esquina tinha seus embates, não só expressos nas canções, mas também com a indústria fonográfica. A partir de 1978, os artistas se lançam em carreiras-solo e, quando a mídia começa a dar mais atenção ao Clube da Esquina, ele já não existe mais”.

 

 

Sob a mão pesada da censura

 

Anexos à dissertação estão alguns documentos do Serviço de Censura e Diversões Públicas (SCDP) que a autora pesquisou no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro e de Brasília. São letras de canções que passaram pelas mãos de censores e foram aprovadas ou vetadas.

A primeira destacada pela pesquisadora é Beco do Mota, que chegou a ser vetada e acabou sendo gravada no disco de vinil (LP) Milton Nascimento (1969). “Beco do Mota é um beco localizado na cidade de Diamantina. Milton e Fernando Brant se referem a  ele como uma metáfora para falar  do esvaziamento do Brasil depois do AI-5”. O censor faz três observações: “não sei o que quer dizer Beco do Mota”, “sem sentido, idéias mal concatenadas” e “protesto”.

O LP de Milton Nascimento Milagre dos peixes, de 1974, também apresenta curiosidades nesse sentido. A letra original da canção Os Escravos de Jó, de Milton e Fernando Brant, que, segundo Sheyla, nunca foi gravada, faz um jogo com parlendas: a vaca vitória lambeu, lambeu, mexeu, mexeu e remexeu. Foi classificada como “pornográfica” e vetada. Em 1977, ela recebeu outra versão de Fernando Brant, intitulada Caxangá. Elis Regina foi quem se encarregou de sua interpretação. Já a canção de Milton e Márcio Borges Hoje é dia de El Rey, cujo conteúdo diz respeito a um diálogo entre um pai e seu filho, também foi considerada “subversiva”. Para responder e criticar o veto, os músicos a gravaram de maneira instrumental, adicionando recursos experimentais próprios do jazz fusion e gritos camuflados pela sonoridade.

Outra canção com letra vetada, porém gravada de forma instrumental em Milagre dos Peixes, foi Cadê, de Milton e Ruy Guerra. Os censores não gostaram principalmente das frases: “Meu príncipe assustado/ Meu príncipe queimado/Corta a noite escura desta floresta/ Mata o fogo do dragão/ Traz da lenda os jogos de nossa festa/ Pra eu poder brincar, sorrir, cantar, pular...”

 

Obras reúnem mineiridade,

resistência e experimentalismo

 

Ainda que o Clube da Esquina reúna vários artistas, falar em sua trajetória é falar especialmente de Milton Nascimento, principal intérprete. “O grupo de amigos se constitui a partir de seu encontro com os parceiros” diz a autora da dissertação. A pesquisadora se concentrou na época áurea em que Milton, no período do Clube e um pouco antes, lança seus LPs entre 1969 e 1978, com participações dos letristas Ronaldo Bastos, Fernando Brant e Márcio Borges, e músicos como Wagner Tiso, Lô Borges, Beto Guedes, Toninho Horta, Nivaldo Ornelas, Novelli, a banda Som Imaginário, entre outros. Além da musicalidade, Sheyla analisou as capas e encartes dos LPs. O objetivo foi verificar as relações das imagens com o conteúdo dos discos. “As canções dialogam com as capas e encartes” acrescenta.

Em relação à mineiridade, cujo foco foi deslocado do trabalho, ainda assim Sheyla identifica o elemento ao longo do período analisado. No LP de 1969, a referência a Minas Gerais está na imagem da capa, uma pintura que reproduz Diamantina. Além disso, “o disco tem uma ligação com a religiosidade laica, como chamar o outro de ‘irmão’. Isso foi muito cultivado em um momento de modernização capitalista, de ditadura e de consolidação da indústria fonográfica. Essa ideia de voltar ao passado, de cultivar os valores e princípios da infância, também é uma forma de resistir a um presente opressor”.

O disco de 1970, Milton, foi impactante para quem estava acostumado com a face “cancioneira” do músico, pois trazia o rock e elementos psicodélicos.  No entanto, a mineiridade aparece nas canções, na tentativa de transpor o “local” para o “universal”. “A canção Para Lennon e McCartney de Márcio, Lô Borges e Fernando Brant diz ‘eu sou da América do Sul (...), sou o mundo, sou Minas Gerais’. É uma concepção sobre Minas que já se podia encontrar em Carlos Drummond de Andrade e Guimarães Rosa”, ressalta. 

A capa de 1972, do disco que nomeou o grupo Clube da Esquina, com a foto dos dois meninos, tem também sua história. “Foi uma briga muito grande entre os artistas e os produtores da Odeon para emplacar a capa, que não trazia nenhuma informação sobre os autores. Foi necessário criar uma contracapa com a imagem de Milton e Lô Borges e inserir o título do disco, além de outra foto dos dois músicos caminhando com crianças. É uma imagem que revela a informalidade, remete ao universo infantil e bucólico”.

Uma curiosidade: muita gente acreditou por muito tempo que a foto da capa retratava Milton e Lô. No entanto tratava-se de duas crianças desconhecidas, cujas identidades vieram à tona apenas neste ano.

As negociações com a gravadora EMI–Odeon foram extensas em Milagre dos Peixes ao Vivo, de 1974, por causa da canção Bodas, parceria de Ruy Guerra e Milton. “A música, que seria incluída no LP gravado em estúdio, o Milagre dos peixes, aparece apenas no disco ao vivo por causa de suas referências ao imperialismo britânico. Como a gravadora tinha acionistas ingleses, eles não gostaram”.

Após o lançamento dos discos Milagre dos peixes e Milagre dos peixes ao vivo, ambos de 1974, Milton Nascimento começa a obter maior status e reconhecimento como músico popular, no Brasil, o que se revela pelo elevado número de cópias vendidas de seus LPs Minas (1975) e Geraes (1976). Na análise de Sheyla, “no primeiro ainda se ouvem experimentações musicais embasadas na coletividade e nas criações mútuas dentro dos estúdios da Odeon. Já o segundo releva uma significativa mescla de sonoridades provenientes de países latino-americanos. Ainda que esse dado também possa ser vinculado ao Clube da Esquina, é interessante perceber que, no álbum Geraes, a informalidade e o despojamento perderam espaço para um comprometimento profissional de outro tipo”.

Já a capa de Clube da Esquina 2,  disco de Milton Nascimento lançado em  1978 pela EMI-Odeon, estampa um cartão postal inglês, com crianças debruçadas sobre um muro. “A imagem remete ao desbunde, à contracultura, aspectos que, no entanto, as músicas não comportam. Neste disco, Milton já tem muito prestígio, as canções trazem características diferentes das que estão registradas nos LPs anteriores, principalmente se comparadas à linguagem estético-musical do álbum duplo homônimo, de 1972. Além da participação de artistas renomados como Chico Buarque, Elis Regina e Simone, Clube da Esquina 2 explorava obras mais épicas conectadas com a expectativa de uma abertura política”.

Com formação em violão clássico, Sheyla destaca a musicalidade do Clube da Esquina. “Os arranjos mostram o processo de trabalho adotado por eles. É bastante experimental o modo como ‘embrulhavam’ as canções. Isso porque estavam todos juntos ali no estúdio intercambiando estilos, técnicas e ideias”.

Por volta de 1978, de acordo com a pesquisadora, isso se diluiu. Cada um rumou para sua carreira individual, mantendo, em alguns casos, parcerias esporádicas. “Pode-se dizer que o contexto ditatorial e suas implicações configuraram uma espécie de ‘conteúdo’ para a produção dos artistas vinculados ao Clube da Esquina. Quando, em 1985, Wagner Tiso (música) e Milton Nascimento (letra) conquistam as paradas de sucesso com Coração de estudante, o Clube da Esquina já havia se dissipado”. 

Sheyla afirma ainda que não é incomum encontrar entre a geração mais recente a imagem de Milton Nascimento vinculada à Nova República. Em consequência, muitos acabam transportando esse elo para situar, erroneamente, o Clube da Esquina. 

Em relação ao Museu Clube da Esquina e às disputas simbólicas envolvendo “mineiros” e “tropicalistas”, Sheyla ressalta que a reavaliação histórica que se dá no presente é positiva, mas há objeções. “O resgate dessa memória muitas vezes acaba dando voz apenas a uma versão, sendo que há muitas vertentes desse passado. O grande risco é passar a ideia de que o Clube da Esquina foi homogêneo, sendo que a grande contribuição desses artistas é justamente o contrário. Distintamente de uma institucionalização que se percebe nos dias de hoje, o Clube da Esquina se constituiu como uma formação cultural informal, heterogênea e dotada de propostas plurais que se somaram num determinado contexto de censura e ditadura militar”.

Publicação

Dissertação: “Nuvem Cigana: a trajetória do Clube da Esquina no campo da MPB” 
Autora: Sheyla Castro Diniz
Orientador: Marcelo Siqueira Ridenti
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)

 

Comentários

Comentário: 

Sem dúvida, é um trabalho que quero ler em sua totalidade.

bie.lima@gmail.com

Comentário: 

Magnifico o trabalho da pesquisadora da Unicamp.Precisa ser divulgado é uma obra inesquecivél..Parabéns abs

walmorysilveira@bol.com.br

Comentário: 

TRABALHO SEM IGUAL NUVEM NESTE CAMPO UM POUCO ESQUECIDO DA MPB PARABÉNS POR SEGUIR O INTUITO DA PESQUISA E APROFUNDAR NO CAMPO DESTA MARAVILHOSA HISTÓRIA DE MINAS DE DITADURA DE BRASIL E DESSES MARAVILHOSOS CANTORES QUE NINGUÉM PODE CALAR.

benececi@unicamp.br