Edição nº 525

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 07 de maio de 2012 a 13 de maio de 2012 – ANO 2012 – Nº 525

A curva de sobreviventes

Elza Berquó relembra a sua trajetória e fala sobre o nascimento do Nepo,
núcleo criado por ela e que completa 30 anos este mês

 

Elza Berquó, pioneira da demografia no país, criadora do Núcleo de Estudos de População (Nepo) e integrante do grupo fundador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), foi a ilustre convidada para ministrar aula magna aos ingressantes do curso de pós-graduação em Demografia da Unicamp, que está comemorando 20 anos e mais de 80 demógrafos formados em 15 turmas de doutorado e 10 de mestrado. A professora discorreu sobre os “Cenários da fecundidade no Brasil”, na manhã de 10 de abril, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH).

Antes de comentar a primeira tabela, mostrando a curva da queda de fecundidade entre as mulheres brasileiras nos últimos 70 anos – de 6,3 filhos em 1940, passando a 4,5 no final da década de 70 e descendo a 1,86 em 2010 –, Elza Berquó transmitiu sua primeira lição aos novos alunos. “Foi ouvindo Mozart, na Sala São Paulo, no último sábado, que me veio a inspiração: essa curva é vida! Refere-se a mulheres que sobreviveram à reprodução, é uma curva de sobreviventes. Ela nos conta histórias de esperanças, expectativas e desejos bem-sucedidos de ser mãe. Ela nos conta, também, histórias de gravidezes indesejadas, que por falta de informações e/ou acesso a meios para evitá-las ou para interrompê-las, levaram mulheres a gerar filhos. Ela não registra, mas pressupõe um contraponto marcado por milhares de mulheres que não sobreviveram à luta para se tornarem mães ou para evitar a maternidade. Não cabe dúvida de que foram as mulheres mais pobres e mais desassistidas, as que pagaram o maior preço nesse processo”.

Dentre tantas ocupações, Elza Berquó é membro do Conselho Técnico do IBGE e do Conselho Consultivo do Censo Demográfico 2010, da Ordem Nacional do Mérito Científico na Classe Grã-Cruz, da Academia Brasileira de Ciências na área de Ciências Humanas. A professora Tirza Aidar, pesquisadora do Nepo incumbida de fazer a apresentação da palestrante, ainda estava na metade do currículo quando Berquó sinalizou para que parasse – sem ser atendida, sob a justificativa: “Desculpe, professora, mas é importante os estudantes saberem”.
Se o currículo é tão extenso e expressivo, Elza Berquó é igualmente enaltecida como figura humana. “Ela está sempre jogando as pessoas para cima, dando uma injeção de vida e vitalidade, muito generosa e prestativa, atenta aos problemas de cada um. Ao Nepo, trouxe o trabalho colaborativo, um clima de trabalho onde não existe competitividade, abrindo caminho para os mais jovens, sempre com linhas de pesquisa pioneiras, à frente no tempo. E rigorosa em seu compromisso político e social”, depõe Estela Cunha, companheira desde os primeiros anos de Nepo.  

A generosidade da demógrafa ficou demonstrada depois da aula magna e da sessão de perguntas, quando ela ainda se dispôs a conceder uma demorada entrevista ao Jornal da Unicamp, relembrando a sua trajetória. Na sequência, Elza Berquó, em primeira pessoa.

 

O percurso

Meu percurso foi a matemática, a estatística, a bioestatística e a demografia. Por quê? Em primeiro lugar, porque a matemática é uma “hard science”, baseada em certezas: isso não me satisfazia plenamente. Na estatística, modelos determinísticos são substituídos por modelos probabilísticos, os quais são mais compatíveis com o mundo real: na estatística, eu me dei bem. Mas como estava desde muito jovem na Faculdade de Saúde Pública da USP, comecei a me interessar pela bioestatística, ou seja, a aplicação da estatística aos fenômenos da vida.

Eu percebia que, mesmo no ensino, me fazia falta a visão demográfica, trabalhar com estatísticas vitais e tudo o mais era pouco. Então, em 1965, solicitei à Organização Pan-Americana de Saúde uma consultoria para montar um programa de pesquisa e ensino em demografia na Faculdade de Saúde Pública. E a OPS enviou ao Brasil a ilustre demógrafa Irene Tauber, que passou um mês na Faculdade nos ajudando a pensar e preparar o programa de um centro de estudos de população. Dada a interdisciplinaridade da demografia, só oferecida em nível de pós-graduação, o novo centro deveria contar com uma equipe multidisciplinar formada por sociólogos, antropólogos, médicos, economistas, estatísticos, dentre outros.
Aprovada a proposta, a OPS ofereceu cinco bolsas para pós-graduação e especialização em demografia no exterior, além de recursos para pesquisa. No convênio com a Faculdade de Saúde Pública, a OPS cobriria os recursos necessários para os primeiros cinco anos de funcionamento do novo centro, os quais passariam a ser, daí por diante, da responsabilidade da própria faculdade. Nessas condições, é criado, em 1966, o Centro de Estudos em Dinâmica Populacional – Cedip.

Neide Patarra (socióloga) e Jair Lício Ferreira Santos (estatístico) se encaminham para a Universidade de Chicago. A Universidade de Michigan recebe João Yunes (médico) e Paul Singer (economista) dirige-se para a Universidade de Princeton. Cândido Procópio Ferreira de Camargo, de notório saber, viaja não para fazer cursos, mas para visitar centros de demografia em diferentes países do mundo mais desenvolvido. De volta ao Brasil, a equipe dá início à Pesquisa Nacional de Reprodução Humana, financiada pela OPS, marco importante na mudança dos paradigmas na área dos estudos de população.  

 
O AI-5 e o Cebrap

Estávamos começando a discutir as bases desta pesquisa, quando em 1969, pelo Ato Institucional número 5, fui aposentada compulsoriamente na faculdade. Comigo saiu Paul Singer, também aposentado. Os outros membros da equipe permaneceram. Paul Singer e eu fomos para o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), fundado sob a liderança do sociólogo Fernando Henrique Cardoso. O Cebrap reuniu intelectuais de peso como Candido Procópio Ferreira de Camargo, José Arthur Giannotti, Juarez Brandão Lopes, Lucio Kowarick e Francisco de Oliveira. E, mesmo no Cebrap, continuamos a conduzir  esta grande pesquisa com os colegas que ficaram no Cedip, com resultados que nortearam novas investigações no campo da demografia.

No momento da aposentadoria compulsória, vários centros do exterior enviaram telegramas dizendo que tinham um lugar para mim. Mas não me via fora do Brasil, queria acompanhar de perto tudo o que ia acontecendo no país. Aquele período no Cebrap foi altamente produtivo na área de população, viajei bastante para outros países e participei de inúmeros congressos, seminários e reuniões. Quando veio a anistia, recebi dois convites, um da Faculdade de Saúde Pública e outro do Instituto de Matemática e Estatística da USP. Fiquei numa grande dúvida: o coração queria me levar para a Saúde Pública (onde comecei minhas atividades de ensino e pesquisa) e a razão queria me levar para a Matemática e Estatística (onde o conhecimento tinha avançado muito). Ouvi muita gente, até que me fechei em casa por 72 horas para tomar a decisão – e o coração venceu.

Informei minha decisão ao diretor da Faculdade de Saúde Pública, Oswaldo Paulo Forattini, que disse faltar apenas uma formalidade: submeter meu nome à congregação. Quando foi apresentada a possibilidade da minha reintegração, 50% dos membros da congregação votaram a favor e a outra metade, contra – achavam que eu ainda era uma comunista muito perigosa. Forattini deu o voto de minerva a meu favor. Agradeci, mas respondi que diante do resultado, eu não poderia voltar: “Por que hoje em dia tenho uma vida muito intensa, com reuniões no exterior, cursos pra cá, pesquisas pra lá, e toda vez que precisar me ausentar do país vou depender da anuência dessa congregação”. Como já havia comunicado minha decisão ao diretor do Instituto de Matemática, resolvi continuar no Cebrap.

 

A criação do Nepo

Foi quando o reitor da Unicamp, José Aristodemo Pinotti, sabendo que eu não voltaria para a USP, me fez um convite: “Tenho um projeto de criar núcleos multidisciplinares, para fugir um pouco do esquema mais ortodoxo de departamentos e institutos. Quero criar núcleos que sejam multi e interdisciplinares e que dialoguem em vários campos. Quero saber se quer vir para me ajudar a criar um núcleo de população”. Isso em 1982.

Claro que aceitei. Seria uma oportunidade de reunir, numa instituição única, uma equipe multidisciplinar de alto nível com longas experiências individuais e trajetórias profissionais, tanto no que se refere à produção de conhecimentos quanto à formação de quadros na área de população. Trouxemos para o Nepo alguns colegas do antigo Cedip e pudemos contar com a colaboração de Daniel Hogan [1942-2010] e Aníbal Faundes, ambos da Unicamp.

Logo de início desenvolvemos um grande projeto guarda-chuva, financiado pela Finep, sobre Transformações Socioeconômicas e Dinâmica Demográfica no Brasil – como se vê pelo título, bastante amplo. E demos continuidade à Pesquisa Nacional sobre Reprodução Humana, pois ela cabia dentro desta nova perspectiva. O projeto contemplou ainda questões como a migratória, de mortalidade, fecundidade, família, enfim, todos os temas que eram de interesse da demografia. Deste projeto, que durou de 1983 a 88, saíram as primeiras teses de mestrado, não ainda na demografia – programa de pós-graduação que só começou dez anos mais tarde – mas na sociologia, antropologia, etc. O tempo foi passando, o Nepo sempre muito bem avaliado dentro e fora da Unicamp, e estamos comemorando nossos 30 anos. 

A cor do Brasil

A não inclusão da informação sobre autodeclaração da cor no Censo Demográfico de 1970, realizado durante o regime militar, sob a alegação de racismo, e a divulgação, pelo mesmo regime, dos resultados do Censo de 1960 (que continha informações sobre o quesito cor) somente em 1978, contribuíram para um longo silêncio sobre a situação da população negra no país.  O confronto das informações de 1960 e de 1980 foi revelador da situação de vulnerabilidade social e econômica desse segmento populacional.

O compromisso com estudos da demografia do negro no Brasil foi assumido pelo Nepo desde sua fundação. Neste sentido, deveria contar com uma equipe voltada para os estudos étnicos e raciais da população. Foi nesta época que convidamos a pesquisadora Estela Maria Garcia Pinto da Cunha, a Mayra, hoje coordenadora do Nepo. Recém-pós-graduada no Celade (Centro Latino-Americano e Caribenho de Demografia), do Chile, e muito recomendada por seus orientadores, ela veio colaborar especialmente com estudos sobre mortalidade e saúde da população negra.

Os primeiros resultados das análises pioneiras sobre fecundidade (a meu critério), nupcialidade (a cargo de Alicia Bercovich) e de mortalidade (por Estela Cunha) da população negra foram publicados nos Textos Nepo nº 9, de 1986. Até hoje, o Nepo mantém como uma de suas linhas de pesquisa “Demografia e Etnias”, que inclui também a demografia da população indígena.

 

Sexualidade e
saúde reprodutiva

Novamente inovando, o Nepo criou em 1992, com apoio da Fundação Ford, a área de Saúde Reprodutiva. Antes da doação, a Fundação enviou ao Brasil o antropólogo Richard Parker, como consultor, para visitar centros, núcleos e departamentos a fim de encontrar uma situação propícia ao desenvolvimento da pesquisa e para oferecer cursos visando à formação de quadros nesta nova área. Iniciava-se assim o Programa de Saúde Reprodutiva e Sexualidade, que durante doze anos buscou novos caminhos, na confluência das ciências da saúde com as ciências humanas, para demarcar a área da saúde reprodutiva e da sexualidade como direitos de cidadania.

Para tanto, o programa considerou parcerias, estabeleceu e estreitou contatos institucionais e buscou inspiração na militância da sociedade civil organizada. Além da preparação e reciclagem de recursos humanos nesse novo campo temático, o programa desenvolveu inúmeros projetos de investigação, estimulou a capacitação em pesquisa e motivou estudos multicêntricos com a colaboração de ex-participantes. Essa experiência pioneira só foi possível graças ao esforço coletivo de uma equipe na qual se destacou Maria Isabel Baltar da Rocha [1947-2008], que teve ao seu cargo a coordenação do programa. Ao final desse período com a saudosa Bel, publicamos “Construindo Novos Caminhos” para registrar os resultados alcançados.

Ainda com o apoio da Fundação Ford, teve início no Nepo o Programa Interinstitucional de Treinamento em Metodologia de Pesquisa em Gênero, Sexualidade e Saúde Reprodutiva, coordenado por Regina Maria Barbosa. Foi criado em 1996, em parceria também com o Instituto de Medicina Social da UERJ, o Instituto de Saúde Coletiva/UFBA, a Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz e o Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo.

 

Nas duas pontas

Nos últimos anos venho pesquisando a reprodução na juventude e a reprodução depois dos 30 anos, utilizando dados da PNDS 2006 [Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde, da Mulher e da Criança], do Ministério da Saúde, coordenada pelo Cebrap e que contou com colaboração do Nepo. Com referência às jovens de até 20 anos, o estudo abre possibilidades para a melhor compreensão do comportamento sexual e reprodutivo desse segmento populacional.

Já a postergação do início da vida reprodutiva é um fenômeno que vem sendo registrado, nas últimas décadas, nos países mais desenvolvidos. A literatura aponta como um importante determinante deste adiamento na reprodução, o investimento em educação que as mulheres precisam fazer para competir no mercado de trabalho. No Brasil, este fenômeno também já está presente e nossos resultados confirmam as motivações encontradas por outros autores. Em nosso meio, este adiamento está mais acentuado entre as mulheres com maior escolarização e das classes A e B. A pesquisa mostrou também a preocupação de algumas mulheres com a dificuldade de engravidar após os 30 anos. A infertilidade e o adiamento da reprodução podem justificar o aumento no país da demanda por reprodução assistida.

 

Ouvindo os jovens

Dados recentes de pesquisa na área da reprodução, bem como sobre comportamento sexual e percepções sobre HIV/Aids, vem mostrando que no país é ainda marcante a vulnerabilidade dos jovens, seja por falta de acesso a informações e atendimentos, seja por certa reserva dos jovens frente à forma como são conduzidas ações educativas de prevenção, dificultando a aderência das informações ao comportamento.

O cenário brasileiro na área da educação é regido nos últimos anos pela Nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LBD-1996), que introduziu inovações como os temas transversais no currículo escolar, tendo a Orientação Sexual como parte deste repertório. Por sua vez, os Ministérios da Saúde e da Educação assinaram, em 2000, portaria interministerial constituindo a Câmara Intersetorial de Educação em Saúde na Escola, com os objetivos de promover o protagonismo da escola como espaço de produção de saúde e de transformar metodologias e técnicas pedagógicas tradicionais.

Alinhada a estes princípios e compromissos, a iniciativa Escolas Promotoras da Saúde, com o aval da OPAS, considera as interfaces do espaço escolar com a sociedade “fomentando o desenvolvimento humano saudável, e relações humanas construtivas e hegemônicas e que promovam aptidões e atitudes  positivas para a saúde”.

Em nível global, a Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2010, considerou a educação sexual integral como direito humano e recomendou aos Estados e comunidade internacional a eliminação de barreiras legislativas e constitucionais para: assegurar uma educação sexual integral sem discriminação; assegurar formação docente de qualidade e especializada para esta questão; zelar pela inclusão da educação integral a partir do ensino fundamental; e promover políticas públicas que assegurem este direito humano.

No plano de estudos nacionais sobre Educação em Sexualidade nas Escolas, importantes iniciativas e contribuições ao campo revelam que a existência de legislação não significa a efetiva implementação nas escolas dos programas de educação em sexualidade, e que nas esferas públicas há sinais de desarticulação, fragmentação e/ou duplicação de ações. Assinalam também que os conteúdos curriculares nem sempre cumprem o princípio de oferecer uma educação em sexualidade: científica, democrática, pluralista e livre de estereótipos e preconceitos. Indicam ainda que são raras as abordagens usadas na Educação em Sexualidade adequadas e ajustadas às novas mídias na área da comunicação, tão apreciadas e protagonizadas pelos jovens. As linguagens usadas nem sempre conseguem penetrar o universo cheio de significados dos jovens. Em suma, nem sempre os jovens são vistos como sujeitos de sua sexualidade.

Essas considerações motivaram meu interesse em desenvolver o projeto “Dar voz aos jovens – Contribuição à Educação em Sexualidade”, do qual me ocupo no momento.

Ao fim da entrevista

Até certo ponto, aquela congregação ter votado contra a minha volta [à Faculdade de Saúde Pública] foi uma grande sorte, que me deu a oportunidade de fundar o Nepo. Tudo, na verdade, tem um contraponto, não acha?