Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

Um manifesto pela universidade pública

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Ilustração: Luppa SilvaUm marco recente no ambiente de crescente ataque à universidade pública poderia ser o relatório do Banco Mundial, “Um ajuste justo - propostas para aumentar eficiência e equidade do gasto público no Brasil”, que acusa o ensino superior público brasileiro como ineficiente, perdulário e elitista[I]. Nesses quase exatos dois anos, desde a divulgação deste documento, o ambiente piorou com ações diretas contra o ensino superior público brasileiro. E a dinâmica de ataques e defesas acaba sendo pautada mais pelos ataques, ou seja, a universidade apresenta respostas às perguntas externas, desinformadas e impertinentes. Corremos o risco, portanto, de esquecer as perguntas continuamente necessárias e pertinentes e tomar por consensuais princípios que, às vezes nem princípios são. A primeira das perguntas poderia ser: o que acontece por aqui é local ou se insere em um contexto global? A resposta é: o problema é global, com as particularidades de cada canto[II], mas suspeito que não estejamos suficientemente atentos a essa discussão intensa mais ampla, nem às percepções de pelo menos parte das comunidades acadêmicas alhures, apesar das dicas, que volta e meia aparecem. Entre as mais recentes temos, por exemplo, a de Tristan McCowan, que parte da ideia de educação superior como bem público[III]. O pesquisador inglês, partindo das idéias se Simon Marginson[IV], enumera três ameaças a essa ideia: a busca pelo status (como promovida pelos rankings de universidades), a comercialização do ensino superior e sua desagregação (o mito, entre outros, da salvação pelo ensino à distância). Uma segunda dica é ainda mais recente, na entrevista de Christopher Newfield[V] sobre o esfacelamento das universidades públicas nos Estados Unidos. Tanto Newfield, quanto McCowan, inserem-se direta ou indiretamente em uma nova área do conhecimento chamada Estudos Críticos da Universidade”[VI].  O campo ainda em consolidação, mas com iniciativas em diferentes partes do mundo, pode ser apreciado em pelo menos duas séries de livros: da Johns Hopkins University Press (Critical University Studies[VII]) e da Palgrave (Palgrave Critical University Studies[VIII]).A perspectiva de que a universidade pública deve estar atenta e ser guardiã do conhecimento e educação como bens públicos surge também no livro do qual empresto o título dessa coluna: “A manifesto for thepublicuniversity”, editado por John Holmwood[IX], de quem faço a citação direta:

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“Uma universidade a serviço do público é uma universidade que deve ser devidamente considerada como uma universidade pública. Essa não seria sua única função, mas é uma função necessária e é a que coloca a justiça social no seu âmago. Qualquer coisa menos do que isso é apenas uma corporação privada qualquer, na qual a economia corporativase transformou em uma sociedade corporativa. E a universidade terá abandonado a qualquer missão social que não seja a de estar a serviço a qualquer um que a pague.”

Entre os textos que citam este livro, encontra-se outro manifesto: “The Academic Manifesto: From an Occupied to a Public University”, de Willem Halffman e Hans Radder, acadêmicos holandeses falando sobre uma visão das universidades na Holanda[X]. O manifesto teve repercussão em vários lugares e os autores organizaram uma sequência, divulgando relatórios enviados por acadêmicos de 14 países[XI], publicado em 2017, na perspectiva do artigo original de 2015. Afinal, essa perspectiva referia-se à Holanda e o estado das coisas é diferente em cada lugar. No entanto, se o estado das coisas se diferencia, o estado de espírito parece guardar alguma universalidade. E a leitura surpreende. Halffman[XII] e Radder[XIII], acadêmicos ativos e produtivos (desconfio que é prudente mencionar isso) apresentam um panorama geral e sugerem alternativas. Vale a pena ler, mas eu destaco alguns pontos, a começar pelo início do primeiro parágrafo:

“A universidade foi ocupada — e não por estudantes que exigiam ter voz (como nos anos 1960) -, mas desta vez pelos que se guiavam pelo Lobo de múltiplas cabeças da gestão. O Lobo colonizou a academia com um exército mercenário de administradores profissionais, armados com planilhas, indicadores de produção e procedimentos de auditoria, acompanhados pela ruidosa Marcha da Excelência e da Eficiência”.

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Na sequência:

“O Lobo estoura um champanhe a cada nova pontuação no ranking de Shangai, enquanto a ovelha da universidade trabalha desesperadamente até cair e a qualidade da “fábrica” de conhecimento está começando a tropeçar, conforme demonstrado por um grande número de análises abrangentes e completas”

É importante ressaltar que, embora os autores nomeiem o artigo como manifesto, as afirmaçõessão acompanhadas de referências, como se espera de trabalhos acadêmicos sérios. As seções seguintes destrincham os sintomas e apresento aqui apenas os títulos, convidando novamente o leitor a ir para a tradução em português do texto integral. Segundo os autores, as características da universidade ocupada seriam: “mensurar para prestar contas”, “competição permanente sob pretexto de qualidade”, “a promessa de maior ’eficiência’”, “a adoração da excelência: todo mundo no topo”, “gestão de processos sem conteúdo” e a “promessa da salvação econômica” (no caso seria a “universidade empresarial”).

Os termos usados são caros a muita gente e não necessariamente desprovidos de sentido, mas compartilho o mal-estar dos colegas de Holanda, pois a percepção é de que os slogans aparecem sem a necessária discussão de seus significados e apresentados como consensuais.Os autores sugerem alternativas e os diferentes estados de coisas tornam algumas delas pertinentes, outras não, dependendo do lugar, mas reafirmam por lá uma que é determinante e sob constante ataque no Brasil: a educação deve ser gratuita!

Não posso, no entanto, me furtar de acrescentar mais algumas, que soarão a muitos como meras provocações.

“O fim da “produtividade” como critério de análise de pesquisa: 

“Um pesquisador publica quando tem algo novo a dizer e não porque espera conseguir uma promoção ou financiamento para pesquisa. O que conta é a qualidade do conteúdo e sua contribuição para debates científicos e sociais”.

Destaca-se trecho fora de ordem, que preocupa a muitos em vários lugares, sobre a mensuração do que fazemos e seus indicadores.

“O problema não reside na inadequação técnica de um indicador em particular, mas em seu regime de fetichismo. O regime não se importa com a elevada qualidade dos resultados, os quais não pode julgar, mas preocupa-se com o desempenho: a ilusão da excelência taticamente bem pensada e lustrada de modo sagaz. Esses indicadores mudaram fundamentalmente a própria ciência. Eles ignoram e destroem a variedade de formas de conhecimento e práticas em diversos campos de estudo. O que não é mensurável e comparável não conta, é uma perda de energia e deve, portanto, ser destruído. No jogo do indicador, um livro de quatrocentas páginas publicado pela Cambridge University Press dificilmente conta, ou até mesmo não conta; um artigo de três páginas conta. O sistema específico de publicações das ciências naturais e da vida (ou de uma parte delas) tem sido imposto ao restante das ciências, mesmo onde ele não se encaixa”.

“Participação social em vez de controle comercial”:

“Entidades sociais e cidadãos, em conjunto com o corpo docente, são convidados (e recebem uma recompensa modesta) a ajudar a articular os deveres públicos da universidade.”

                Entre o panorama e as sugestões, a pergunta: Como isso pôde acontecer?  E a resposta não é doce para nossos colegas de lá: “Vários processos conduziram a essa situação da qual a maioria de nós, professores universitários, fizemos parte. A colonização da universidade é um sucesso porque cooperamos maciçamente — e ainda cooperamos, até hoje”. Percepção de holandeses para a Holanda, qual seria a nossa aqui?

É de suma importância chamar a atenção para o que acontece e se discute também em outros lugares. A produção acadêmica, refletindo o estado das universidades e seu papel, é extensa e densa pelo mundo afora e não considerar isso é renunciar ao que melhor se faz na universidade:promover a reflexão, inclusive sobre ela mesma. Caso contrário, sob intenso e constante ataque, corremos o risco de acabar perdendo os dedos para não conseguir conservar alguns anéis.

Nota adicionada na revisão:

Talvez manifestos funcionem. Hoje, 3/12/2019, saiu matéria no Times Higher Education sobre mudanças a partir de 2021, tanto no sistema universitário, quanto de financiamento de pesquisa holandeses. O sistema de recompensas incluirá ênfase ao ensino, o uso de fatores de impacto, índice h e outros indicadores será proibido em avaliações de projetos e espera-se eliminar a “cultura de ticar campos em listas e da pressão injustificada de publicação para estudantes de doutorado”. Esperam ser exemplo para outros lugares do mundo. [XIV]. A conferir.

 

 

 

 


[I]https://www.unicamp.br/unicamp/ju/noticias/2017/11/27/o-banco-mundial-contra-ataca

[II]https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/universidades-publicas-ameacadas-em-outros-lugares

[III]https://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2019/09/19/sem-investimento-publico-nao-ha-educacao-como-um-bem-publico

[IV] Higher Education and Public Good, Simon Marginson, Higher Education Quarterly (2011):https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/j.1468-2273.2011.00496.x

[V]https://diplomatique.org.br/como-os-estados-unidos-arruinaram-suas-universidades-publicas/

[VI] Nas palavras de Flávio Ferreira: “Estudos Críticos da Universidade é um território acadêmico que tem como propósito contribuir para a compreensão da universidade na sociedade contemporânea, sua relação com a cultura, a política e a economia, e de forma crítica provocar o debate sobre a sua importância para a superação de problemas da sociedade e para o desenvolvimento da humanidade, além de promover a sua defesa como bem público. A expressão crítica é utilizada para demarcar que o trabalho acadêmico não está restrito a conhecer a universidade que existe, mas a intervir pela consolidação de uma universidade relevante para a sociedade”.

[VII]https://jhupbooks.press.jhu.edu/series/critical-university-studies

[VIII]https://www.palgrave.com/gp/series/14707

[IX] Acesso ao primeiro capítulo do editor do livro, a citação está no final:file:///C:/Users/peter/Downloads/9781849666459.ch-001.pdf

[X]O artigo original foi traduzido para diversas línguas, em português apareceu na Revista da Adusp:https://www.adusp.org.br/files/revistas/60/mat01.pdf

[XI]https://socialepistemologydotcom.files.wordpress.com/2017/07/manifesto_reports_from_14_countries1.pdf

[XII]Artigo recente de Halffman:
Horbach, S.P.J.M., &Halffman, W. (2019).The extent and causes of academic text recycling or ‘self-plagiarism’. Research Policy, 48(2), 492-502. (online 22 Sep 2017)
doi: 10.1016/j.respol.2017.09.004.  Special issue on research misconduct, misrepresentation and gaming.

[XIII]De Radder em “The Commodification of Academic Research: Science and the Modern University”
Hans Radder (ed.), University of Pittsburgh Press (2010): “Selling science has become a common practice in contemporary universities. This commodification of academia pervades many aspects of higher education, including research, teaching, and administration. As such, it raises significant philosophical, political, and moral challenges”.

[XIV] https://www.timeshighereducation.com/news/dutch-end-one-sided-research-focus-and-hope-world-follows

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