Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

A imortalidade e a ciência marginal

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Ilustração: Luppa Silva

Numa busca pelos primeiros artigos científicos registrados, ou seja, nas primeiras edições da Philosophycal Transactions of the Royal Society of London[i], deparei-me com um de 1670, cujo anúncio e início do primeiro parágrafo estão na primeira ilustração dessa coluna. Quem seria o autor Martel de Montauban? Um personagem que não sobreviveu na história, mas é mencionado uma vez por David Boyd Haycock, autor de um artigo sobre a ideia de prolongamento da vida humana na Inglaterra no século XVII. O texto de Haycock cita Montauban e Francis Bacon, o importante filósofo da ciência inglês: “Sir Francis Bacon explorou como um problema médico a questão de que a duração da vida humana poderia voltar a ser de aproximadamente 1000 anos como desfrutada por Adão e os patriarcas”[ii]. O ensaio de Haycock faz parte de uma série chamada “Como os fatos viajam?” O objetivo desse projeto da London School of Economics and Political Science foi de “explorar a natureza das evidências pela análise de como os fatos circulam no interior de uma disciplina, entre disciplinas e ao longo do tempo”.[iii]

Philosophical

Enfim, de acordo com a declaração no anúncio do artigo de Montauban, trata-se de como prolongar a vida humana e o cavalheiro francês tempera suas observações citando Bacon também. Lembrei-me dessa, até então, mera curiosidade, quando li a matéria publicada ainda em setembro de 2019 no portal UOL: "A primeira pessoa que vai chegar aos 1.000 anos de idade já nasceu."[iv] O autor da profecia é o cientista Aubrey de Grey. Quem é ele? Se sobre Martel de Montauban pouco sabemos, o polêmico cientista inglês do século XXI encontra-se na Wikipédia[v].

Aubrey de Grey, nascido em 1963, é um cientista da computação. Aparentemente recebeu um título de doutor em Biologia pela Universidade de Cambridge em 2000, mas não foi estudante regularmente matriculado por lá. Teria recebido o título em função de seu livro “The mitochondrial free radical theory of aging”. A transição de computação para biologia foi autodidata, enquanto desenvolvia softwares para uma base de dados genéticos. Desde o livro, que lhe deu o doutorado, dedica-se a desenvolver técnicas de rejuvenescimento que ele chama de “estratégias de engenharia de senescência insignificante (SENS na sigla em inglês). É pesquisador chefe da SENS Research Foundation, da qual foi cofundador. Parte do financiamento vem de uma herança que de Grey recebeu da mãe. Além disso, há doações privadas (quem não quer rejuvenescer, não é mesmo?). Segundo este cientista (vamos chamá-lo assim), podemos derrotar o envelhecimento desde que vençamos a barreira do “transe pró-envelhecimento”. Essa barreira é a que seria responsável pela resistência à sua pesquisa. A corrente científica dominante (mainstream), no entanto, já debateu e rebateu suas ideias. Um painel da revista EMBO Reports em 2005 concluiu que nenhuma das hipóteses de Grey levou ao aumento da longevidade[vi]. A fundação de de Grey respondeu que, de fato, hoje seria impossível prolongar a vida humana, mas devido a lacunas de conhecimento entre diferentes áreas e a abordagem SENS é sim plausível.  Já um segundo relatório da época, chama o projeto SENS diretamente de pseudociência[vii] E hoje, segundo o guru da vida quase eterna, já teria nascido o primeiro ser humano que alcançará a idade milenar.

Da maneira que eu resumi (com alguns comentários adicionais) o verbete da Wikipédia, parece que o assunto estaria resolvido, estaríamos falando simplesmente de uma farsa (pseudociência) ou, no máximo, uma manifestação marginal da ciência. Porém, não é tão simples. Já se passaram quase 15 anos do painel e do relatório e Aubrey de Grey continua popular, além de ser também o editor chefe da revista científica “Rejuvenation Research”, que “apresenta pesquisas de ponta e avanços que podem finalmente contribuir para retardar ou reverter o processo de envelhecimento”. A editora é independente[viii] e tem outros títulos como “Alternative and Complementary Therapies”, que é para artigos ‘baseados em evidências’ que buscam integrar terapias alternativas nas práticas médicas, privadas e em hospitais. Tem outra revista dedicada à Astrobiologia, que é também sobre vida extraterrestre. Essas revistas estão misturadas a outros títulos mais convencionais. Ou seja, a editora junta revistas dedicadas a temas marginais (‘fringe science’) a outras voltadas a áreas estabelecidas (‘mainstream’). Mas seriam marginais (ou pseudocientíficas) as pesquisas sobre rejuvenescimento e terapias complementares e alternativas? A pergunta cabe, independentemente da opinião do leitor, pois as duas revistas estão indexadas nas principais bases de revistas científicas, que em princípio validam o que é ciência: Web of Science e/ou Scopus.  E as revistas não são exatamente “marginais” no sentido editorial, pois pelo menos essa sobre rejuvenescimento tem um fator de impacto (que mede algo como a influência de uma revista na comunidade científica) relativamente alto. Ou seja, a de despeito do que painéis de avaliações científicas possam dizer, a fronteira entre pseudociência, ciência marginal e a ciência estabelecida é, muitas vezes, ou cada vez mais, borrada[ix].

Rejuvenation Research

Nesse ponto é necessário, finalmente, descrever o que seriam pseudociência, ciência marginal e a ciência propriamente dita (‘mainstream’: institucionalizada e sistematizada). No leque de definições para ciência ‘mainstream’ empresto uma generalização do conceito de paradigma do filósofo da ciência Thomas Kuhn, na descrição de Eduardo Barra[x]: “Um conjunto de crenças, regras compromissos e valores que são compartilhados pelos cientistas por um determinado período de tempo e que confere à atividade investigativa a unidade mínima que lhes permite constituir uma comunidade científica”. Para simplificar a discussão de como essa “unidade mínima” é atacada, o esquema abaixo (que confesso ter emprestado da Wikipédia) pode ser útil, apresentando uma sequência de categorias com rigor e sistematização nem sempre crescentes.

tabela

Deixando de lado a superstição, é importante definir rapidamente o que poderíamos chamar de pseudociência: consiste em afirmações, crenças ou práticas que alegam ser científicas e baseadas em evidências, mas são simplesmente incompatíveis com o método científico. Já a protociência seria uma ciência nascente, ainda não institucionalizada e sistematizada. Na época em que Martel de Montauban publicou seu artigo, apareciam outros autores na mesma revista, como Robert Boyle, Robert Hooke e Isaac Newton, cujos trabalhos viriam a dar origem a uma disciplina científica, que mais de um século depois viria a se chamar Física. O tema abordado por Montauban viajou por esse tempo todo também, mas continua em um limbo: alguns classificam a busca da vida eterna (ou quase) como pseudociência, outros como ciência marginal, a saber: pesquisa(?) em uma área de conhecimento, mas que se desvia muito de visões dominantes, sendo, portanto, questionada, ora por ser altamente especulativa, ora por estar baseada em premissas ainda sem fundamentos sólidos ou mesmo já refutadas. No entanto, há poucos dias uma matéria declara que “Pesquisa de rejuvenescimento é agora um tópico do ‘mainstream’”[xi], citando um novo artigo no MIT Technology Review: “E se envelhecimento não for inevitável, mas uma doença curável?”[xii] Observo que as metas expostas são bem mais modestas e Aubrey de Grey não é sequer mencionado nesse novo relatório. Pairam assim ainda as mesmas dúvidas sobre o SENS e, é bom dizer, a revista que de Grey edita talvez misture artigos do “novo mainstream” e “fringe”.

Aubrey de Grey
Aubrey de Grey

Esse exemplo ilustra que separar o joio do trigo não é fácil, além de termos o problema do que é que acaba nos alimentado nas decisões públicas e políticas, sejam essas políticas científicas ou mais amplas.  Nesse sentido, vale a pena dar uma vasculhada no artigo dos sociólogos da ciência da Escola de Ciências Sociais da Universidade de Cardiff, intitulado “A ecologia da ciência marginal e sua influência sobre a política”[xiii] Harry Collins e seus colegas abordam as tensões entre “mainstream” normal e ciência marginal dentro da mais ortodoxa e antiga das ciências, a Física. Uma das conclusões é sobre o modelo de ciência para os marginais: “é o modelo no qual indivíduos isolados geralmente estão melhor posicionados para escavar os segredos da natureza, enquanto que o consenso da ciência é perigosamente autoritário”. Nesse modelo, que é antissocial, os marginais seriam os únicos defensores da verdade. Voltando à biografia de Aubrey de Grey, ele é o protótipo desse modelo: figura de aparência exótica, em parte autodidata, incompreendido pela corrente dominante e tem seu próprio instituto de pesquisa. Anuncia com um bom marketing voltado a um nicho do público um futuro promissor e possivelmente eterno. Tirando o marketing, corresponde ao estereótipo bastante comum de cientista criado sem querer por Mary Shelley com o seu Dr. Frankenstein.

Enquanto a tensão continua e eventualmente aumenta, a ciência normal precisa informar melhor o público sobre o que ela é no processo em que obtém seus resultados, sempre provisórios e, em geral, menos impactantes do que a vida eterna, que, a propósito, não virá[xiv]. Nem aqui e nem na margem.  Esse não é, porém, um exemplo isolado e, já que falei de Frankenstein, na próxima a analogia será com outro personagem interpretado por Vincent Price.

 


[i]https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/matou-cascavel-e-publicou-o-pau

[ii]http://eprints.lse.ac.uk/22538/1/1006Haycock.pdf

[iii]http://www.lse.ac.uk/Economic-History/Research/How-Well-do-Facts-Travel/About-the-project

[iv]https://tab.uol.com.br/edicao/futuro-da-morte#imagem-1

[v]https://en.wikipedia.org/wiki/Aubrey_de_Grey

[vi]https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1371037/

[vii]https://www2.technologyreview.com/sens/docs/estepetal.pdf

[viii]https://en.wikipedia.org/wiki/Mary_Ann_Liebert

[ix]É interessante observar que o próprio Aubrey de Grey, junto a outros autores, defende a revista Journal of Anti-Aging Medicine, nome anterior da Rejuvenation Research, como sendo científica, enquanto outras sobre o mesmo tema ele declara como pseudocientíficas em nota na revista Science em 2002: https://science.sciencemag.org/content/296/5568/656.1

[x]http://www.filosofia.seed.pr.gov.br/arquivos/File/traduzindo/kuhn_funcao_dogma_na_investigacao_cientifica.pdf

[xi]https://www.leafscience.org/rejuvenation-research-is-now-a-mainstream-topic/

[xii]https://www.technologyreview.com/s/614080/what-if-aging-werent-inevitable-but-a-curable-disease/

[xiii] https://arxiv.org/ftp/arxiv/papers/1606/1606.05786.pdf

[xiv] E nem seria desejável, basta ver a angústia da maioria dos vampiros nos diferentes filmes e romances.

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