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Conversações sobre o efêmero
Como as obras de João Gilberto Noll e de Luiz Ruffato dialogam com
as ciências sociais e jogam luz sobre os nossos dias

MANUEL ALVES FILHO

Cristina Maria da Silva: “A sociedade também se configura por meio de conflitos” (Foto: Antoninho Perri)Promover o diálogo entre as ciências sociais e a literatura e, a partir dessa aproximação, obter elementos para compreender e interpretar aspectos não tão perceptíveis da sociedade contemporânea foram os objetivos que nortearam a tese de doutorado da cientista social Cristina Maria da Silva, defendida recentemente no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Intitulado Rastros das socialidades – Conversações com João Gilberto Noll e Luiz Rufatto, o trabalho procurou pensar a realidade atual, permeada por conflitos e embates, a partir das narrativas contidas nas obras dos dois autores brasileiros. A orientadora do estudo foi a professora Suely Kofes, do Departamento de Ciências Sociais do IFCH.

De acordo com Cristina, a tese apresenta uma crítica ao conceito de sociedade, tão caro a alguns estudiosos, segundo o qual seria possível estabelecer definições totalitárias para entender o que ocorre na vida social. Na opinião da pesquisadora, porém, a sociedade não deve ser vista como um domínio constituído apenas por regras e funções, no qual as experiências individuais possam ser unificadas. “As ciências sociais tendem a eleger categorias e conceitos para tentar se aproximar da vida social, como o de sociedade ou cultura. Ocorre que a sociedade também se configura por meio de conflitos, embates e encontros de alteridades. Se a sociabilidade deu conta de trabalhar a questão dos indivíduos inseridos na vida social, a partir de regras e funções, a socialidade, conceito que emprego no trabalho, surge como contraponto a ela, para dar conta das altercações, que a meu ver singularizam a nossa realidade atual”, explica.

Parte dos estudos que deram sustentação à tese foram desenvolvidos na França, mais especificamente no Centro de Estudos sobre o Atual e o Cotidiano, Paris V, unidade da Sorbonne, sob orientação do professor Michel Maffesoli. “Essa experiência me ajudou a compreender melhor as ciências sociais contemporâneas e me deu subsídios para analisar as narrativas literárias”, afirma Cristina. Ela conta que inicialmente pensou em trabalhar com outros autores, mas elegeu entre eles somente Noll e Rufatto. Depois de analisar mais detidamente as obras de ambos, concluiu que os escritos deles traziam os rastros das socialidades que pretendia decifrar. “Procurei estabelecer um diálogo entre as ciências sociais e esses dois escritores, que chamei de conversações. A ideia não foi tomar conceitos das ciências sociais e colar na literatura, o que poderia ser chamado de uma sociologia da literatura. O que eu fiz foi pensar se era possível construir uma possível etnografia ficcional, de modo a enxergar a literatura não como um reflexo da sociedade, mas como o avesso dela”, explicita.

O ponto que aproxima as obras de Noll e Rufatto, conforme Cristina, é justamente o fato de ambos não registrarem em seus livros somente o que está nos signos da vida social, da forma como normalmente são dados, mas de maneira deslocada. “Eles se valem daquilo que está na sociedade, mas contam de outra forma, mostrando que os signos são contingentes e que não existe uma verdade imutável. A meu juízo, a literatura não está aí para dizer como as coisas devem ser ou acontecer. Antes, ela serve para falar daquilo que não está posto, do que ficou de fora da construção da sociedade e da cultura”, analisa a autora da tese. Ela acrescenta que outra característica marcante nas obras de Noll e Rufatto é a provisoriedade.

Ou seja, eles falam com freqüência de situações que são provisórias, efêmeras. “Essa é também uma das características da sociedade contemporânea. Frequentemente, as pessoas se pegam achando que algo está se esvaindo, que está escorrendo por entre os seus dedos”. No caso de Rufatto, prossegue a cientista social, o escritor trata com frequência do resgate da memória, principalmente dos imigrantes italianos que vivem em Minas Gerais e de seus descendentes que migram, sobretudo para São Paulo. Ele narra o cotidiano desses e de outros personagens nas mais diversas situações. “Rufatto se vale de fragmentos da cidade para construir a sua narrativa. Nela, aparece desde um diálogo dentro de um táxi até detalhes em torno de uma oração de Santo Expedito, inscrita nesses panfletos que encontramos na calçada ou nos bancos das igrejas. Para mim, esses elementos que aparecem fragmentados na literatura são manifestações das socialidades presentes no cotidiano de centros urbanos como São Paulo”, compara Cristina.

Os personagens de Noll, destaca a pesquisadora, não são propriamente migrantes, mas nômades ou desmemoriados. São pessoas que vivem nas ruas, ex-atores atormentados, ex-escritores em conflito. “São personagens que sempre estão em trânsito, vagando pelas vias, rodoviárias e becos de cidades como Rio de Janeiro, Florianópolis, Porto Alegre ou Londres. Na minha interpretação, os percursos cumpridos por essas pessoas constituem formas de rasurar a vida social. Elas estão o tempo todo se batendo com aquilo que é colocado na vida social. Ou seja, o escritor trabalha com figurações que nos permitem pensar aspectos da realidade atual”, analisa a autora da tese.

Para a elaboração do trabalho acadêmico, Cristina entrevistou os dois escritores. De acordo com ela, foram contatos extremamente interessantes e enriquecedores. “Na verdade, foram bate-papos. Eu não defini um roteiro ou gravei os diálogos, porque considerei que isso não faria muito sentido dentro da proposta da tese. Eu não estava com eles para saber se o que escrevem é tal qual como vivem. Meu interesse era saber quem eram aquelas duas pessoas”, diz. Nesses contatos, a cientista social obteve depoimentos valiosos. Rufatto, por exemplo, falou sobre aspectos relacionados ao seu processo de criação. “Ele me contou que, quando escreve, tenta contar uma história do mesmo modo como a gente tenta se lembrar de algo que aconteceu. Ou seja, a gente não consegue se recordar de todos os detalhes, mas mesmo assim consegue descrever o que ocorreu”.

Segundo Cristina, a sua tese está inserida numa linha de pesquisa que vem sendo desenvolvida no IFHC sob a coordenação da professora Suely Kofes. Os estudos, informa, trabalham com questões das trajetórias, narrativas e biografias dentro das ciências sociais. “Por meio dessa abordagem, o grupo tem proposto um questionamento aos métodos tradicionais empregados pelas ciências sociais para analisar a vida social. Nós procuramos compreender a sociedade contemporânea por meio dos diálogos e relações entre os indivíduos, que são normalmente pontuados por conflitos”.

Ilustração: ReproduçãoA pesquisadora entende que a principal contribuição do seu trabalho acadêmico está justamente no uso do diálogo entre as ciências sociais e a literatura para suavizar as teorizações áridas tão presentes nas abordagens das ciências sociais. “Ou seja, busquei pensar o ‘objeto de estudo’ de uma maneira mais poética”, finaliza Cristina, que contou, no Brasil, com bolsa concedida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e bolsa no exterior fornecida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), órgãos vinculados, respectivamente, aos ministérios da Ciência e Tecnologia e Educação.

Os autores
João Gilberto Noll e Luiz Rufatto estão entre os mais importantes escritores da atualidade no Brasil. O primeiro nasceu em 1946, em Porto Alegre. Tem 13 livros publicados, entre romances e contos. Ganhou diversos prêmios literários, entre eles o Jabuti, em cinco ocasiões: 1981, 1994, 1997, 2004 e 2005. Sua obra mais recente, Acenos e Afagos, é de 2008. O segundo nasceu em 1961, em Cataguases, Minas Gerais. Seu primeiro livro, Histórias de Remorsos e Rancores, uma coletânea de contos, foi publicado em 1998. Em 2005, iniciou a série Inferno Provisório, projetada para cinco volumes, com os livros Mamma, son tanto felice e O Mundo inimigo. Na sequência, escreveu Vista parcial da noite e O livro das impossibilidades.


 

 


 
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