ESPECIAL 195 - ANO XVII - 21 a 27 de outubro de 2002
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"Um discurso dissociado da realidade"

Renato Dagnino

Renato DagninoRealizar uma crítica interna a um Programa de Governo, mais do que examinar detalhes das propostas formuladas para cada área de política, supõe verificar em que medida elas são coerentes. Em particular, se as metas de caráter global, como as de crescimento econômico, ampliação do emprego, distribuição de renda, melhoria da balança comercial, que integram suas políticas-fim, contam para sua consecução com medidas apropriadas no nível das políticas-meio. No caso, a política de C&T.

Essa verificação se justifica mesmo sabendo que o conteúdo de cada política tende a expressar mais um compromisso político do partido com o atendimento das demandas dos atores diretamente envolvidos do que uma derivação racional das metas nacionais globais. Ela permite avaliar em que grau a área de política sob análise se encontra "privatizada" devido ao poder das elites que a dirigem, ou "emperrada" devido a percepções de senso comum que legitimam comportamentos, culturas institucionais, práticas de tomada de decisão etc, que dificultam sua orientação no interesse da sociedade. Permite também entender o que faz com que as políticas para certas áreas formuladas por partidos com ideologia tão distinta sejam tão semelhantes...

De uma forma geral, pode-se dizer que quanto mais difícil for explicitar uma derivação racional, num dado momento, quanto menor a aderência e funcionalidade do conteúdo de cada política em relação às metas globais, menor é a relevância política da área e menor o grau de compromisso do partido com o que está escrito no seu Programa. Nesse caso, mais parecidas serão as propostas dos diferentes partidos. Quanto mais se mantiverem parecidas as reivindicações dos atores ali travestidas de "medidas de política", menor também será sua incidência nos rumos futuros do País.

A crítica que aqui se faz ao Programa do PSDB está dirigida à sua coerência interna, isto é, à aderência entre as metas globais e o que propõe (ou deixa de propor) para a área de Ciência e Tecnologia. Por isso, não vou analisar frases vazias vertidas em "inovatês" que parecem apenas querer impressionar os incautos ("Serão mobilizadas as competências empresariais e acadêmicas para criar condições estruturais de competitividade") ou declarações que, eivadas de senso-comum, estão na verdade na contramão da história ("Fortalecer as atividades de ensino superior e de pesquisa científica e tecnológica, garantindo a formação dos especialistas altamente qualificados necessários para o Brasil dar conta dos desafios de uma economia baseada cada vez mais no conhecimento").

Também não vou repetir os argumentos que mostram o equívoco que significa pensar que uma "...grande aliança Universidade-Empresa (...é o que se necessita...) para o desenvolvimento tecnológico do país."Ou que este poderia ser obtido através do "...apoio às incubadoras de base tecnológica e a um conjunto de parques e pólos tecnológicos ... ".

Esses argumentos estão baseados na generalização indevida para nossa realidade de um modelo da relação universidade-empresa materializado em arranjos como esses, idealizados nos países avançados. A análise já realizada por muitos, acerca da viabilidade e conveniência dessa "aliança", não autoriza argumentos dessa natureza. A realidade dos próprios países avançados se encarrega de desmenti-los. O fato de que nos EUA apenas 2% do que a empresa privada gasta em P&D são contratados com a universidade mostra que a pesquisa universitária não interessa à empresa porque seus resultados possam ser diretamente aplicáveis. Mas sim porque lá se capacitam os pesquisadores que passarão a conceber tecnologias que a tornam capaz de competir melhor no mercado.

Se adicionarmos a isso a declaração de mais de 70% dos empresários brasileiros, de que sua principal estratégia de desenvolvimento tecnológico é a aquisição de máquinas e equipamentos mais atualizados, enquanto que só 3% apontaram a absorção de pesquisadores na empresa (8o e penúltimo lugar), vê-se o quanto esse discurso da "grande aliança" é dissociado da realidade.

Tampouco me parece relevante analisar os números que o texto aponta, por exemplo, sobre o gasto em P&D. Discutir se em 2006 os R$ 5 bilhões que ele diz ser hoje o gasto privado em P&D se transformarão em R$ 9,7 bilhões me parece muito pouco relevante. Que os técnicos do PSDB usem a "precisão" da casa depois da vírgula , conhecendo como conhecem a maneira como é inferido tal gasto chega a ser um desrespeito à capacidade do leitor. Principalmente tendo em vista o modo como o atual governo do PSDB parece ter manipulado os indicadores de C&T brasileiros.

Nesse sentido vale a pena relembrar a informação que foi "produzida" a respeito. Provavelmente para fazer crer que a abertura econômica havia estimulado as empresas localizadas no País a pesquisar, o governo divulgou algo fantástico. De 1993 para 1994 elas teriam aumentado seu gasto em P&D de 800 milhões para 1,6 bilhões de dólares, um crescimento de 100% (!) de um ano para outro. E, em conseqüência o gasto das empresas privadas, que no final da década de 1980 era estimado em 8% do total (sendo o das empresas estatais 12% e o montante aplicado pelo governo 80%) teria passado no final da década de 1990 para 45%!

Mas para além dessas considerações, caberia destacar que a correlação positiva que se observa em países avançados plotando gasto em C&T/PIB e PIB per capita e a comparação sincrônica (atual) desta situação com a dos países periféricos não parece ajudar no entendimento de nossa realidade. Essa comparação tem levado a que, em função do marco explicativo do "modelo linear ofertista" e do mito do determinismo tecnológico, a relação Ciência-Tecnologia-Sociedade seja interpretada como causalidade diacrônica (histórico-temporal). Por que não pensar, ao contrário, que é a dinâmica capitalista "normal", com revoluções democrático-burguesas que propiciaram certo nível de distribuição de riqueza e renda, e a concorrência intra e internacional entre capitais baseada no aumento da mais-valia relativa, o que leva ao crescimento do gasto em P&D privado e, indutivamente, público? E que, em sociedades periféricas marcadas pela regressividade da renda e a exclusão, e pelo imperialismo e a globalização, não há por que nem como instaurar o círculo dito virtuoso entre P&D e crescimento econômico?

Feita essa rápida menção acerca do que está contido no texto, passamos a comentar o que deveria estar e não está. O que permitiria substituir o wishful thinking pela formulação de uma política de ciência e tecnologia "de verdade". Vamos iniciar tomando como exemplo uma das metas globais do Programa do PSDB, a de geração de 8 milhões de postos de trabalho de 2003 a 2006, particularizando-a para um setor, a agropecuária, onde se pretende gerar 3 desses 8 milhões. Na última década, a produção nacional de grãos quase dobrou. E isto ocorreu quase sem expansão da área plantada e, provavelmente, sem aumento (ou até redução) no emprego, dada a utilização do "pacote agrícola" (implementos, defensivos, sementes) convencional em grandes propriedades. Sabe-se que essa maneira de combinar mão-de-obra, terra, conhecimento e capital, embora tendencialmente dominante, não abarca todo o setor. Mas será que esse estilo tecnológico permitiria a um novo governo do PSDB implementar suas metas de absorver mão-de-obra, acelerar a reforma agrária, evitar danos ambientais, aumentar a produtividade?

Não é necessário ser um especialista no tema para responder que não. Somente medidas de ciência e tecnologia que, explorando a fronteira do conhecimento científico e tecnológico de modo alternativo, sejam capazes de gerar um estilo tecnológico distinto, poderão equacionar a consecução dessas metas até agora incompatíveis. Não será emulando a atual dinâmica de exploração dessa fronteira, mantendo a agenda de pesquisa, que se conseguirá mobilizar a complexa teia de atores, instituições, interesses numa direção tão distinta como exigida pelas metas globais propostas.

A viabilidade da meta de emprego agrícola está portanto condicionada a uma mudança significativa na política de ciência e tecnologia no sentido da geração de um pacote tecnológico apropriado ao pequeno produtor rural que o torne competitivo, ainda que complementar, ao grande capital. Se tomarmos o emprego urbano, talvez a situação seja ainda mais evidente dada a ainda menor flexibilidade tecnológica aí existente. Os técnicos do PSDB sabem que existe uma independência cada vez maior entre crescimento econômico e geração de emprego. E que a menos que se conte com um estilo tecnológico apropriado ao pequeno empresário e às cooperativas, a tendência ao jobless growth não pode ser sequer amenizada pela promoção da "qualificação" do trabalhador.

Também nesse caso, embora a amplitude e profundidade do desafio da geração de emprego sejam reconhecidas, e exista a consciência de que a história do desenvolvimento tecnológico foi até agora uma sucessão de tecnologias com escalas ótimas de produção crescentes, não há nenhuma referência no sentido da geração de uma dinâmica alternativa. Não parece haver a percepção de que a Adequação Sócio-técnica é uma necessidade cada vez mais iniludível para os países da periferia.

Um outro exemplo elucidativo é a meta de aumento das exportações. Ninguém duvida da conveniência em aumentá-las. A crítica assimilada pelo atual governo do PSDB, de que modelo protecionista de substituição de importações apenas internalizou capacidade produtiva sofisticada, mas não promoveu capacitação tecnológica, manteve obscuro um ponto importante: o modelo tampouco promoveu a capacitação tecnológica sistemática necessária para adicionar valor aos produtos em que apresentamos vantagens comparativas estáticas. Como conseqüência, seguimos carentes de tecnologias que nos permitam superar, através de ganhos de eficiência sempre maiores, as barreiras a que nos sujeitam.

O aumento das exportações não pode prescindir de uma política de ciência e tecnologia capaz de reverter a tendência de nosso complexo público de ensino superior e de pesquisa de emular a dinâmica cognitiva convencional e os critérios de prêmio e castigo típicos da "ciência periférica". O que, como nos casos anteriores, destaca a necessidade de que um futuro governo do País construa uma relação com a comunidade de pesquisa muito mais respeitosa e transparente do que aquela que caracterizou o atual governo do PSDB, marcada pelo marketing tergiversador, pelo autoritarismo, e pela incapacidade de dialogar de forma franca e produtiva.

O aumento da demanda por bens e serviços associado à distribuição de renda que adviria das metas de governo de um pouco provável novo mandato do PSDB encontraria obstáculos à sua satisfação similares. As demandas por conhecimento que elas contêm são distintas daquelas que movimentam a dinâmica científica e tecnológica mundial, orientada a atender às populações dos países avançados e cada vez mais monopolizada pelas suas grandes corporações. Muitos sabemos que o conhecimento e tecnologias capazes de solucionar com eficiência os problemas específicos que enfrentamos não estão disponíveis e que a originalidade daquelas demandas irá pressionar por tecnologias hoje inexistentes. E que cabe só a nós a responsabilidade de desenvolvê-las.

Novamente, não há nenhuma referência acerca de como seria construído o arranjo entre as instâncias de governo e os demais atores, que sinalizaria ao setor privado os segmentos produtivos que teriam que responder com eficiência a essas demandas e garantiria o apoio ao seu esforço inovativo.

As proposições pontuais que foram apresentadas, ainda que temperadas com a magia quantitativa que fascina a alguns, não substituem uma política de ciência e tecnologia com as características de racionalidade e viabilidade que ela deve possuir. Por isso, considero que o que foi apresentado não resiste a uma crítica interna.

Renato Dagnino é professor do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp