193 - ANO XVII - 7 a 13 de outubro de 2002
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Maria de Fátima Sonati e Daniela Maria Ribeiro: originalidade está no marcador genéticoMuito além dos olhos puxados

Os Parakanã, conhecidos como "índios brancos", tiram seu sustento da floresta Pesquisa identifica semelhança genética entre duas populações indígenas do Pará e povos asiáticos

MANUEL ALVES FILHO

A polêmica em torno da origem dos povos nativos americanos ainda está longe de ser superada, mas uma pesquisa realizada para a tese de mestrado da bióloga Daniela Maria Ribeiro, apresentada à Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, traz subsídios adicionais para as discussões em torno do assunto. A tese de Daniela foi aceita para publicação no American Journal of Physical Anthropology, uma das revistas mais conceituadas do mundo no segmento da antropogenética. Ao promover o estudo de um marcador genético em duas populações indígenas brasileiras, os Parakanã e os Xikrin, ambas do Sul do Pará, ela identificou uma semelhança genética entre estas e os habitantes do Sudeste da Ásia e das Ilhas do Pacífico. O resultado corrobora com as hipóteses de uma predominante origem asiática dos ameríndios e sugere que os índios brasileiros e as populações oceânicas podem não ser geneticamente independentes. Há, todavia, uma outra corrente de cientistas que defende que os primeiros humanos a povoarem a América descendem de povos africanos.

Índios na Lagoa de Ipawuu, no Alto Xingu, em foto do professor Etienne Samain: povoamento da  América é alvo de polêmicaA originalidade do trabalho de Daniela está justamente no marcador genético tomado para análise. Estudos realizados anteriormente no Brasil já haviam chegado ao mesmo resultado, mas partindo de outros marcadores. Pela primeira vez, a bióloga investigou o elemento alfa-MRE (alpha-Major Regulatory Element), um segmento de DNA de 300 pares de base que controla a expressão dos genes da globina alfa humana (cadeia polipeptídica que constitui, juntamente com a globina beta, a molécula de hemoglobina, pigmento respiratório de todos os organismos vertebrados, contida nos glóbulos vermelhos do sangue).

Este elemento, ainda pouco estudado em âmbito mundial, nunca havia sido investigado em populações nativas da América do Sul, em geral, ou em populações nativas brasileiras, em particular. O objetivo da pesquisa foi determinar os polimorfismos (variações genômicas responsáveis pela diversidade genética entre os indivíduos) presentes nessa pequena seqüência de DNA e compará-los aos encontrados nas populações já investigadas por cientistas estrangeiros, particularmente as asiáticas.

Para isso, Daniela analisou 70 amostras de DNA de integrantes da tribo Parakanã e 95 amostras de membros da tribo Xikrin. As duas populações foram escolhidas em razão da disponibilidade do material genético, obtido junto ao Hemocentro da Unicamp e à Escola Paulista de Medicina, respectivamente. Ao final do trabalho, que envolveu o seqüenciamento manual de todas as amostras, a autora da tese identificou apenas os haplótipos (combinações de polimorfismos que são transmitidos em bloco de geração para geração) dos tipos A e B. Daniela observou que, em 330 cromossomos dos indígenas estudados, havia o predomínio do haplótipo A (80% contra 20%), sendo este o mais freqüente nas populações da Ásia.

De acordo com a bióloga, investigações promovidas por pesquisadores estrangeiros identificaram que entre os habitantes da Indonésia, da China e da Índia também há predominância do haplótipo A (variação de 67% a 78%). Ao comparar os resultados do seu trabalho com o realizado junto às populações asiáticas, Daniela concluiu que os Parakanã não diferem de nenhum dos povos do Sudeste Asiático e nem da Indonésia já estudados. A tribo Xikrin, que apresentou a freqüência do haplótipo A extremamente elevada (87%), diferiu significativamente das populações chinesa e indiana, mas não da indonesiana, que apresenta maior prevalência do haplótipo A (78%) entre todas as populações já estudadas.

"Meu trabalho é uma pequena contribuição às discussões sobre a ancestralidade dos ameríndios. Ele não trata sobre tempo de chegada dos primeiros habitantes da América e nem se eles foram africanos ou asiáticos, mas corrobora com as teorias de que eles de fato descendem de povos asiáticos", afirma a pesquisadora, que teve bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e auxílio do Fundo de Apoio ao Ensino e à Pesquisa (Faep-Unicamp). De acordo com a orientadora da pesquisa, professora Maria de Fátima Sonati, resultados semelhantes já haviam sido observados em relação a tribos indígenas brasileiras, mas a partir de outros marcadores genéticos.

"A originalidade do trabalho da Daniela está na análise dessa pequena seqüência de DNA, que controla todo um agrupamento de genes. Isso é muito pouco estudado em nível mundial, e não há registro de iniciativa anterior no Brasil. Nós não sabíamos sequer como seria o comportamento desse marcador", revela Maria de Fátima.

Viajantes incógnitos

O povoamento da América sempre foi alvo de intensa polêmica. Estudos antropológicos, lingüísticos e genéticos têm tentado responder à pergunta que não quer calar: qual a origem dos habitantes do Novo Mundo? A teoria mais aceita dá conta de que os nativos americanos descendem de povos asiáticos que chegaram ao continente através do Estreito de Bering, extensão de terra de 64 quilômetros de largura que separa a Rússia dos EUA. Essa migração teria ocorrido entre 10 mil e 12 mil anos atrás, segundo estudos antropológicos.

Há, entretanto, quem conteste essa possibilidade. É o caso do bioarqueólogo Walter Neves, professor da USP. Para ele, a ocupação da América teria ocorrido antes desse período (há cerca de 14 mil ou15 mil anos), protagonizada inicialmente por populações africanas, que teriam deixado seus locais de origem e cumprido o mesmo roteiro. Os asiáticos, de acordo com ele, só teriam vindo depois. Reforçam a tese de Neves as medições feitas em crânios americanos com mais de 8 mil anos, entre eles o de Luzia (de 11,5 mil anos), encontrado num sítio arqueológico de Lagoa Santa, em Minas Gerais.

"Gente de verdade"

Os Parakanã, que vivem numa área isolada do Sul do Pará, são conhecidos como "índios brancos", devido à cor clara de sua pele quando comparados aos demais povos indígenas. Eles se autodenominam awaete, que significa "gente de verdade”. Falam a língua akwawa, do tronco lingüístico Tupi. Atualmente, vivem em uma área de 351.697,41 hectares.

Como a maioria das nações indígenas brasileiras, os Parakanã mantêm relação com os não-índios. Datam de 1910 os relatos dos primeiros contatos, que tiveram lugar no rio Pacajá. Dentro da Terra Indígena Parakanã existem hoje cinco aldeias: Maroxewara, Inaxyganga, Paranatinga, Paranowaona e Itaygo. Ao todo, são 476 indivíduos, conforme levantamento realizado em 1999. Eles retiram da floresta a maior parte de seu sustento.

Entre os Parakanã não existe um único chefe. A liderança política se dá por meio dos líderes de grupos domésticos, denominados Moroiroa. O casamento poligâmico é aceito na sociedade Parakanã. Um homem pode ter mais do que uma mulher, desde que tenha o respeito da comunidade e seja um bom caçador. São incentivadas as uniões entre tios e sobrinhas.

Caçadores e guerreiros

Os Xikrin constituem uma tribo guerreira, que também habita a faixa sul do Pará. Eles se relacionam bem com os Kayapo, pois pertencem ao mesmo tronco lingüístico. Os Xikrin exibem seus corpos bem decorados, são excelentes caçadores e extrativistas. Atualmente, a reserva indígena tem 1.655.000 hectares, onde vivem cerca de 1.050 indivíduos, conforme levantamento feito em 2000. Existem registros da presença dos Xikrin desde o ano de 1896 nas cabeceiras dos rios Vermelho e Branco, afluentes do Rio Itacaiúnas.

Esses índios têm uma cultura muito rica, marcada pela forte liderança dos homens, que dirigem seus clãs familiares. Exibem pinturas complexas e rebuscadas, com um forte impacto visual, tanto nos corpos dos homens quanto nos das mulheres. Estas, ainda exibem a característica de rasparem a cabeça, na parte superior frontal. Os numerosos colares e pulseiras de contas coloridas imprimem um aspecto único e diferenciado para este povo, que impressiona os não-índios com os seus envolventes cantos, danças e rituais.

Os Xikrin são excelentes agricultores. Cultivam grandes roças de mandioca, milho, banana, mamão, algodão e outras culturas. Têm a tradição de manter uma roça comunal, onde as crianças são formadas nos conhecimentos ancestrais, repassados pelos líderes antigos. Os pequenos aprendem desde logo tudo sobre agricultura, importância de cada planta, local de plantio, tamanho e distância entre as covas e controle de pragas e ervas daninhas.