 Jornal 
                      da Unicamp – Na introdução de Emily Dickinson: Não sou 
                      ninguém, o senhor observa que “tudo em Emily é paradoxo” 
                      e que “a integridade poética que a caracteriza assume radicalismos 
                      extremos”. Nesse contexto, quais foram os maiores desafios 
                      encontrados na tradução dos poemas deste livro?
Jornal 
                      da Unicamp – Na introdução de Emily Dickinson: Não sou 
                      ninguém, o senhor observa que “tudo em Emily é paradoxo” 
                      e que “a integridade poética que a caracteriza assume radicalismos 
                      extremos”. Nesse contexto, quais foram os maiores desafios 
                      encontrados na tradução dos poemas deste livro?
                    Augusto de Campos – O maior desafio, sem dúvida, 
                      foi encontrar uma fórmula para tentar capturar, com “duende” 
                      (Garcia Lorca, “Teoria e Jogo do Duende”) a linguagem extremamente 
                      sintética da grande poeta, sabendo-se que o português leva 
                      muita desvantagem em confronto com o monossilabismo do idioma 
                      inglês, e considerada a meta de produzir poemas palatáveis 
                      em nossa língua. Não me cabe julgar o que consegui. 
                    Desacostumada com traduções artísticas, muita gente me 
                      acusou, durante a minha carreira literária, de só dar valor 
                      aos problemas estéticos. Realmente, mas transponho para 
                      as traduções a consideração mais genérica de Pound: “a técnica 
                      é o teste da sinceridade”. Se uma tradução não merece uma 
                      boa técnica, é porque ela é de valor inferior. Mas sempre 
                      acreditei, sem ser acreditado, que tradução é uma questão 
                      de forma & alma. Arte & duende. Niña de los Peines, 
                      Billie, Janis, “canta’oras”. No mais cf. no CD “Badu Live”, 
                      a frase da cantora Erykah Badu que precede a faixa 12 (“Tyrone”): 
                      “Now keep in mind that I’m a [sic] artist and I’m sensitive 
                      about my shit…”, infelizmente suprimida do vídeo que pode 
                      ser visto no YouTube. “Mme Bovary c’est moi”, disse o perfeccionista 
                      Flaubert. Tento “ser” Emily. E, acreditem-me ou não, “I’m 
                      a soul man.”
                    JU –  O senhor traduziu obras que integram um leque que 
                      vai de poetas provençais a Pound, passando por Donne, Mallarmé, 
                      Cummings, Joyce e Khliébnikov, entre tantos outros. Muitos 
                      desses autores eram praticamente desconhecidos no Brasil. 
                      Em que medida a tradução cumpre no país uma missão, digamos, 
                      didática?
                    Augusto de Campos –  Creio que a função didática é muito 
                      importante, não apenas no sentido de apresentar ao leitor, 
                      em transposições artísticas, autores desconhecidos, alguns 
                      considerados impossíveis de traduzir. É relevante, também, 
                      em termos de ensinamento estético. Por exemplo, até professores 
                      universitários não passam no teste da métrica. Foi uma tradição 
                      poética que se perdeu nas gerações mais novas e que, paradoxalmente, 
                      “os concretistas” Décio, Haroldo e eu, desde o início, dominamos. 
                      
                      De uns tempos para cá, o pé-quebrado é a regra até em traduções 
                      eruditas, ainda que meritórias no que concerne a informações, 
                      notas e dados biográficos. Não foi por outra razão que Décio 
                      Pignatari, para surpresa de muitos, recomendou aos poetas 
                      jovens que lessem Bilac… Olavo Braz Martins dos Guimarães 
                      Bilac já era um alexandrino perfeito até no seu nome. Esse 
                      não errava a mão nos sonetos que escrevia: “Última flor 
                      do Lácio, inculta e bela…”. 
                    No início, as nossas traduções foram amorosamente programáticas. 
                      Era preciso reabilitar e fazer conhecer de verdade Mallarmé, 
                      os Cantos de Pound, o Finnegans Wake de Joyce, os poemas 
                      mais radicais de Cummings. Devotamo-nos a isso conscientemente, 
                      com a idéia poundiana da crítica-via-tradução, além de enfatizar 
                      esses grandes criadores em nossos artigos e manifestos. 
                      Isso foi imprescindível até para o entendimento da virada-de-mesa 
                      que estávamos tentando dar na poesia brasileira. Fazia-se 
                      imprescindível encontrar um “paideuma” – um elenco de autores 
                      básicos para que se pudesse regenerar a linguagem poética. 
                    
                    Pensar que a própria crítica francesa (sem contar, “entre 
                      nous”, os francófilos, como o simpático Sérgio Milliet, 
                      mentor da revista Clima), consideravam “Un Coup de Dés” 
                      um fracasso. Foi um crítico americano, Robert Green Cohn 
                      (L’Oeuvre de Mallarmé — Un Coup de Dês, 1951) que fez o 
                      primeiro estudo conseqüente do poema. E os poetas franceses 
                      da badalada revista Change só vieram a se dar conta da importância 
                      do “Lance de Dados” em fins dos anos sessenta, mais de dez 
                      anos depois de nós. Mesmo assim, quem se debruçar sobre 
                      as nossas primeiras traduções lá encontrará, entre outras, 
                      as de Villon (na estupenda e irreverente tradução que Décio 
                      fez da “Balada da Gorda Margô”), Donne, Marvel, Marino, 
                      Ungaretti, Wallace Stevens e muitos outros. 
                    O grande Mário Faustino (este entendia do riscado) revirou, 
                      um dia, a minha pasta de traduções e foi marcando, com uma 
                      cruz a lápis, as de que mais gostava. Publicou algumas delas 
                      na sua admirável página “Poesia Experiência”, no Suplemento 
                      Literário do Jornal do Brasil, entre 1956 e 1958, na fase 
                      da poesia concreta que denominamos “ortodoxa”. Depois dessa 
                      primeira fase do movimento, restabelecido o “equilíbrio 
                      ecológico” da recepção dos “inventors” da poesia do nosso 
                      tempo, fomos abrindo ainda mais o leque. Com o generoso 
                      apoio lingüístico de Boris Schnaiderman, nosso querido professor 
                      de russo, Haroldo e eu publicamos em 1967, pela Editora 
                      Tempo Brasileiro, nossas traduções de Maikóvski. E no ano 
                      seguinte, pela Civilização Brasileira, de Ênio Silveira, 
                      abominado pela ditadura, a antologia da poesia russa moderna. 
                      Inclusive alguns dos poemas mais engajados, como os que 
                      escolhi, de propósito, como “Tzares, tzares tremiam”, de 
                      Khliébnikov; e, de Maikóvski, “Black and White” (sobre os 
                      maus-tratos infligidos aos negros de Cuba pelos alvos “reis” 
                      do açúcar e dos charutos), que assim termina: “Como saberia 
                      / que com tal questão / deveria dirigir-se / ao Komintern 
                      em Moscou?”); “Hino ao Juiz”, onde usei com intenção o verbo 
                      “cassar”: “Os juízes cassam os pássaros, a dança / A mim, 
                      a vocês e ao Peru”. E ainda por cima, o epigrama “Come ananás 
                      / mastiga perdiz / Teu dia esta prestes, burguês.”, no qual 
                      embuti, sibilinamente, o nome de Prestes. 
                    ‘As nossas traduções 
                      foram 
                      mais longe do que se pensa’
                     Nunca 
                      pertenci ao “Partidão”, e desde sempre detestei Stálin e 
                      Jdânov, mas a ditadura militar me indignava, e eu provocava. 
                      Em 1962, eu tinha publicado o suspeito “Greve” e o explícito 
                      “Cubagramma”. Em dezembro de 64, havia exposto na Galeria 
                      Atrium, Avenida São Luiz, no centro de São Paulo, os meus 
                      “popcretos”, entre os quais “Olho por Olho” e “SS”, que 
                      denunciavam e satirizavam o golpe militar. Mais ainda: em 
                      setembro do mesmo ano, no famoso Times Literary Supplement 
                      de Londres, saíra o não menos satírico “Brazilian Football” 
                      (jogando com as palavras GOAL e GAOL (variante de “Jail”). 
                      Eu não tinha defesa, caso os milicos lessem poesia ou os 
                      mais famosos jornais literários do mundo. Não liam, apesar 
                      de estarem de olho no Ênio Silveira. Com o apoio pardo-eminente 
                      do suposto “gênio” letrado Golbery (como é que não entrou 
                      na Academia Brasileira de Letras?) estavam preocupados só 
                      com o grande público da televisão e dos festivais de música 
                      popular. Mesmo assim, ficávamos à mercê de algum dedo-duro. 
                      Por sorte não aconteceu, salvo incidentes menores.
Nunca 
                      pertenci ao “Partidão”, e desde sempre detestei Stálin e 
                      Jdânov, mas a ditadura militar me indignava, e eu provocava. 
                      Em 1962, eu tinha publicado o suspeito “Greve” e o explícito 
                      “Cubagramma”. Em dezembro de 64, havia exposto na Galeria 
                      Atrium, Avenida São Luiz, no centro de São Paulo, os meus 
                      “popcretos”, entre os quais “Olho por Olho” e “SS”, que 
                      denunciavam e satirizavam o golpe militar. Mais ainda: em 
                      setembro do mesmo ano, no famoso Times Literary Supplement 
                      de Londres, saíra o não menos satírico “Brazilian Football” 
                      (jogando com as palavras GOAL e GAOL (variante de “Jail”). 
                      Eu não tinha defesa, caso os milicos lessem poesia ou os 
                      mais famosos jornais literários do mundo. Não liam, apesar 
                      de estarem de olho no Ênio Silveira. Com o apoio pardo-eminente 
                      do suposto “gênio” letrado Golbery (como é que não entrou 
                      na Academia Brasileira de Letras?) estavam preocupados só 
                      com o grande público da televisão e dos festivais de música 
                      popular. Mesmo assim, ficávamos à mercê de algum dedo-duro. 
                      Por sorte não aconteceu, salvo incidentes menores. 
                    Por exemplo, a Revista dos Tribunais negou-se a publicar 
                      o segundo número – o vermelho – da revista Invenção (1962), 
                      por causa do meu “Cubagramma” e da “Estela Cubana”, do Décio. 
                      Tendo vencido por maioria no conselho da Invenção, mantivemos 
                      os poemas e nos preparamos para o pior. Fomos convocados 
                      pela direção da Revista dos Tribunais para uma reunião arranjada 
                      por Cassiano Ricardo, que havia conseguido a editora para 
                      nós e era amigo deles. Ao chegarmos, houve uma discussão 
                      acalorada. A certa altura falou-nos um dos diretores, em 
                      tom exaltado: “Nós não publicamos poesias de comunistas!” 
                      Já sabendo contar até dez, tínhamos conversado na véspera 
                      com Masao Ohno, que se prontificou a comprar o miolo, todo 
                      impresso àquela altura. A resposta pronta foi: “Então você 
                      não é mais o nosso editor.” A revista saiu, afinal, com 
                      a rubrica da Masao Ohno Editora. Desculpem a digressão e 
                      o desabafo. “O concretismo é frio e desumano”. A partir 
                      do “Beba Coca Cola” (1957) de Décio Pignatari. 
                    A verdade é que, desde a primeira hora, as nossas traduções 
                      foram muito mais longe do que se pensa, e com o tempo, mais 
                      longe ainda, embora sempre mantendo a marca de antitradição 
                      das “transcriações”. Um crítico afirmou que nós só traduzíamos 
                      poetas que interessavam à defesa do concretismo. Sentimo-nos 
                      honrados. Como se Dante, Shakespeare e Goethe houvessem 
                      sido traduzidos com esse objetivo. Não é que a afirmação 
                      de Haroldo, de que toda a poesia é “concreta”, fazia sentido? 
                      Bem-vindos ao Concretismo, queridos e incomparáveis mestres 
                      da poesia, ”nos semblables, nos frères”…
                    JU –  Um dos traços do Concretismo brasileiro era, ou é, 
                      sua interação com o fluxo das vanguardas internacionais. 
                      O Concretismo foi, segundo suas próprias palavras, um movimento 
                      translingüístico. Em paralelo, o senhor levou a atividade 
                      do tradutor ao paroxismo ao pregar a idéia da tradução como 
                      recriação. Para além da teoria e do campo conceitual, suas 
                      intervenções sempre buscaram a experimentação, como é o 
                      caso da transcriação de The Sick Rose (A rosa doente), de 
                      William Blake, para ficar em um exemplo. Que papel desempenhou 
                      a tradução nas interlocuções culturais do movimento ou mesmo 
                      em seu direcionamento estético?
                     Augusto 
                      de Campos – Essa pergunta envolve mais de uma questão. 
                      A primeira, a da interação com o fluxo das vanguardas ao 
                      nível internacional. Esta se deu por duas razões principais. 
                      O minimalismo da fase “ortodoxa” e a sua ênfase nos elementos 
                      visuais, que nos permitiam transpor as barreiras do nosso 
                      idioma, escassamente conhecido no exterior. Outra, a inesperada 
                      coincidência estético-ideológica com alguns poetas europeus, 
                      especialmente o suíço-boliviano Gomringer, que aceitou a 
                      nossa proposta de denominar “concreta” a nossa poesia e 
                      a das suas “Constelações”. E à explosão internacional do 
                      movimento que se deu, a seguir, e foi parar até no Japão, 
                      graças aos contactos de Haroldo com o poeta Kitasono Katsue 
                      e à exposição de Poesia Concreta Brasileira, em 1960, no 
                      Museu de Arte Moderna de Tóquio, organizada pelo músico 
                      e poeta Luis Carlos Vinholes. Claro, que poemas mais complexos 
                      como “Estela Cubana” não podiam ser facilmente entendidos.
Augusto 
                      de Campos – Essa pergunta envolve mais de uma questão. 
                      A primeira, a da interação com o fluxo das vanguardas ao 
                      nível internacional. Esta se deu por duas razões principais. 
                      O minimalismo da fase “ortodoxa” e a sua ênfase nos elementos 
                      visuais, que nos permitiam transpor as barreiras do nosso 
                      idioma, escassamente conhecido no exterior. Outra, a inesperada 
                      coincidência estético-ideológica com alguns poetas europeus, 
                      especialmente o suíço-boliviano Gomringer, que aceitou a 
                      nossa proposta de denominar “concreta” a nossa poesia e 
                      a das suas “Constelações”. E à explosão internacional do 
                      movimento que se deu, a seguir, e foi parar até no Japão, 
                      graças aos contactos de Haroldo com o poeta Kitasono Katsue 
                      e à exposição de Poesia Concreta Brasileira, em 1960, no 
                      Museu de Arte Moderna de Tóquio, organizada pelo músico 
                      e poeta Luis Carlos Vinholes. Claro, que poemas mais complexos 
                      como “Estela Cubana” não podiam ser facilmente entendidos. 
                    
                    Quanto às minhas traduções, de cujos critérios já falei 
                      ao responder à primeira pergunta, embora respeite e tenha 
                      até chegado a utilizar uma que outra vez, por mais técnico, 
                      o termo “transcriação”, cunhado por Haroldo, preferi sempre 
                      chamá-las de “tradução-arte”, em homenagem ao nosso “futebol-arte”, 
                      que tanto admiro. Eu me considero um “vocalista” dos poemas 
                      que traduzo. Aliás, isso me lembra que um dos líderes da 
                      “geração de 45” dizia com sarcasmo, que nós, os irmãos Campos 
                      e o Décio, éramos os “trigênios vocalistas” da poesia, comparando-nos, 
                      depreciativamente, aos Trigêmeos Vocalistas, sucesso popular 
                      da época, hoje esquecidos. O que chamo de “intraduções” 
                      (insinuando um ‘in-” e um “intra”), como “A Rosa Doente”, 
                      de Blake, são traduções intersemióticas, nas quais seleciono 
                      um poema ou fragmento que me impactaram e neles intervenho 
                      com elementos icônicos, gráfico-visuais, ausentes no original. 
                      No que diz respeito aos poemas que traduzi, sempre aprendi 
                      muito com todos eles, embora, na minha própria poesia, tenha 
                      procurado seguir o conselho de Hopkins: ”admirar e fazer 
                      outra coisa”.
                    ‘Movimentos surgem 
                      por 
                      necessidade histórica e estética’
                    JU –  “Houve um câmbio de horizonte cultural, uma crise 
                      ideológico-cultural, a partir de meados dos anos 60, que, 
                      a meu ver, não mais tornou praticável “programar o futuro”, 
                      demandando uma poesia do presente, da “agoridade”: o que 
                      eu chamo “poesia pós-utópica”. São palavras de Haroldo de 
                      Campos, ditas em 1996, quando o Plano-Piloto da Poesia Concreta 
                      completou meio século. Nessa mesma ocasião o sr. disse numa 
                      entrevista a O Globo: “A etiqueta “concreto” já não interessa. 
                      Interessa é a nova visão de poesia que resultou da sua interferência 
                      no processo criativo”. O que exatamente significam essas 
                      afirmações: que o Concretismo cumpriu seu papel e virou 
                      história literária?
                     Augusto 
                      de Campos – Melhor do que a minha é a afirmação de Décio 
                      Pignatari, no seu notável e imprevisível poema “Interessere” 
                      (década de 1970): “no concretismo interessa o que não é 
                      concretismo”. Não perceberam que desde o princípio dos anos 
                      60 o concretismo já não era o mesmo. Como eu disse certa 
                      vez (com todo o respeito a Gomringer), é diferente fazer 
                      concretismo na Suíça e no Brasil. Depois que Décio anunciou 
                      o “salto participante”, descobri, em um número da revista 
                      italiana “L’Europeo”, de 1959, a frase de Maiakóvski: “Sem 
                      forma revolucionária não há arte revolucionária”, que passou 
                      a integrar o nosso Plano-Piloto, desde 1961.
Augusto 
                      de Campos – Melhor do que a minha é a afirmação de Décio 
                      Pignatari, no seu notável e imprevisível poema “Interessere” 
                      (década de 1970): “no concretismo interessa o que não é 
                      concretismo”. Não perceberam que desde o princípio dos anos 
                      60 o concretismo já não era o mesmo. Como eu disse certa 
                      vez (com todo o respeito a Gomringer), é diferente fazer 
                      concretismo na Suíça e no Brasil. Depois que Décio anunciou 
                      o “salto participante”, descobri, em um número da revista 
                      italiana “L’Europeo”, de 1959, a frase de Maiakóvski: “Sem 
                      forma revolucionária não há arte revolucionária”, que passou 
                      a integrar o nosso Plano-Piloto, desde 1961. 
                    Pouco adiante, em 1963/64, eu estudava russo com Boris 
                      Schnaiderman, na Rua Maria Antonia, principalmente com o 
                      objetivo de traduzir o verdadeiro Maiakóvski, não o locutor 
                      de palanque, em versões ruins, copiadas, até nos seus erros, 
                      da tradução espanhola de Lila Guerrero, mas o poeta oculto, 
                      culto e revolucionário também na sua arte. Não se fazem 
                      movimentos porque se quer, nem é preciso que se participe 
                      de movimentos para ser um poeta digno desse nome. Surgem 
                      por necessidade histórica e estética. Depois de um momento 
                      de coalescência, cada um toma o seu caminho. Foi o que aconteceu 
                      conosco. Décio e Haroldo, com mais lóbo esquerdo do que 
                      eu, investiram na logopéia, em que já eram extraordinários 
                      antes do Concretismo. Eu, menos escritor, incapaz de criar 
                      uma prosa de altíssimo nível como a de Décio (“O Rosto da 
                      Memória”. “Panteros”. “Errâncias”) ou uma “proesia” da altura 
                      das Galáxias barroconcretas do Haroldo, segui o meu próprio 
                      caminho, mais “fanomelopaico”, de acordo com o meu temperamento. 
                    
                    Já contei algumas vezes que, quando éramos crianças, Haroldo, 
                      talento precoce, escrevia contos. Eu, um ano-e-meio mais 
                      moço, fazia desenhos a partir de histórias-em-quadrinhos. 
                      Meu pai, achando graça, mandou fazer um carimbo, “Escritório 
                      Irmãos Campos”, com o qual registrávamos as nossas “criações”, 
                      que vendíamos às nossas vítimas – os parentes próximos, 
                      de preferência os tios. Mais tarde, Oswáld (e não Ôswald 
                      como dizem agora horrorosamente) nos deu, em 1949, a Haroldo 
                      e a mim, que tinha 18 anos, um dos últimos exemplares da 
                      1ª edição do “Serafim Ponte-Grande”, com a dedicatória: 
                      “Aos irmãos Haroldo e Augusto de Campos, firma de poesia”… 
                    
                    Também gostava de música. Uma das lembranças menos obscuras 
                      que eu tenho da infância é a de um garoto de 4 ou 5 anos, 
                      num canto do jardim, cantando “o orvalho vem caindo / vai 
                      molhar o meu chapéu…” Todo mundo achava engraçadinho. Se 
                      em vez de harmônica-de-boca (ah! quem me dera ser um Sonny 
                      Boy Williamson ou um Toots Thielemans…), tocasse saxofone 
                      como Coleman Hawkins e Charlie Parker, ou piano como Art 
                      Tatum e Thelonious Monk, provavelmente nunca teria escrito 
                      uma linha de poesia. Toquei, amadoristicamente a minha velha 
                      gaita, por insistência do meu filho, Cid Campos, na faixa 
                      6 [Flor da Boca] do seu CD independente, No Lago do Olho, 
                      que vem de ser muito elogiado por Midani. 
                    Cerca de 90% das capas de meus livros, sem contar as capas, 
                      folhetos e bolachas dos CD e CDR, meus ou do Cid, foram 
                      feitos por mim, e os considero melhores do que muitos dos 
                      meus poemas. Não sendo um teórico, no estrito sentido da 
                      palavra, como Haroldo, confesso que não sei direito o que 
                      é “agoridade”. Quando Haroldo publicou o seu artigo sobre 
                      o tema da “pós-modernidade”, coincidiu de sair na mesma 
                      época (bons tempos aqueles, do saudoso Folhetim!) o meu 
                      “Pós-tudo”, que suscitou polêmica, talvez porque pensassem 
                      que era uma ilustração do texto do meu “irmão siamesmo”. 
                      Diziam, pelas costas, que “os concretistas” tinham tomado 
                      conta dos cadernos culturais da Folha. Alguém tinha que 
                      pagar essa “conta” e eu parecia ser o mais vulnerável dos 
                      três. Nem eu conhecia previamente o que Haroldo tinha escrito, 
                      nem ele sabia do meu poema… E, como é evidente para quem 
                      saiba ler, não tinham o mesmo sentido. Meu irmão era exuberante 
                      e otimista. Já se irritava muito quando se referiam a ele 
                      como o “poeta concretista” Haroldo de Campos… “Há pelo menos 
                      vinte anos não faço mais poesia concreta” — exclamava, sem 
                      ser ouvido. 
                    O meu poema, apesar dos “misunderstandings” que despertou, 
                      era autocrítico e pessimista, além de pretender ser uma 
                      gozação do ecletismo diluente chamado de “pós-moderno”, 
                      expressão que tanto encantou os críticos mais atualizados 
                      quanto os mais retardados, como Jameson, que não sabiam 
                      explicar de forma convincente o que significava. Em arquitetura 
                      – claro –fazia sentido. Em literatura, foi uma justificativa 
                      muito bem recebida pelos mais conservadores ou mais complacentes, 
                      inimigos das “vanguardas”, para darem o seu salto para trás. 
                      Recentemente, apareceu no YouTube um “rap” amador de alunos 
                      da periferia (quem quiser ver, que acesse http://uk.youtube.com), 
                      na “interpretação livre de james martins e ilu(diamante)MiNA! 
                      em ensaio aberto p/ estudantes de letras e amigos”. Sem 
                      querer abafar ninguém, foi a melhor crítica que recebeu 
                      “that goddamn poem”…
                    JU –  Desde a década de 80 o sr. vem usando recursos tecnológicos 
                      e mais recentemente os meios digitais e a Web como plataformas 
                      para a sua poesia, inclusive com o aproveitamento de recursos 
                      sonoros. Acredita que há uma revolução da linguagem poética 
                      em marcha na Internet?”
                    Augusto de Campos –  Para mim, “computers are beautiful”, 
                      embora estejam sempre à beira de um ataque de nervos e nem 
                      sempre correspondam à minha afeição. “Las computaddoras” 
                      também são muito ingratas, e quanto aos ”upgrades”, que 
                      anacronizam nossos hardwares e softwares a cada seis meses, 
                      elas sabem ser cruéis. “They’re bad, man. Very bad.” Os 
                      macmaníacos, como eu, sofrem mais ainda pelo seu amor mal-correspondido… 
                      “Meu preço é alto”, sussurram elas, girando as bolsinhas 
                      dos seus “I-s”, apesar de toda a admiração que tenho por 
                      Steve Jobs, o maior “designer” da era digital. Acho – é 
                      evidente – a linguagem da informática muito propícia e inspiradora 
                      para o desenvolvimento de novas formas de fazer poesia. 
                      Mas como tenho dito e repetido, o domínio das novas tecnologias, 
                      por si só, não assegura poesia de alta qualidade. 
                    O próprio Décio, precursor conceitual da arte digital no 
                      Brasil, sempre disse: “Pra fazer poesia basta um lápis”…” 
                      De acordo. Questão de “duende”. No entanto, se as ferramentas 
                      virtuais e os inumeráveis recursos da tecnologia digital 
                      nada garantem, não é mais fácil encontrar os lápis capazes 
                      de deixar duradouramente impressos na página branca os seus 
                      estiletes de grafita. Muitas vezes os procurei e não achei. 
                      Estava em falta na praça… Em termos de informação, e apesar 
                      das resistências acadêmicas, a Internet já é uma revolução. 
                      Você pode ouvir, e até baixar em MP3 para o seu computador, 
                      todas as leituras encontradas de Pound – as gravadas em 
                      LP e as jamais divulgadas, disponibilizadas pelos herdeiros 
                      do poeta. Nunca vi-ouvi nada igual. No popular YouTube, 
                      você assiste a muita porcaria (“Salve-se quem souber!”, 
                      dizia o nosso microtonalista, o suíço-baiano Walter Smetak). 
                      Mas pode “ouver” até a uma versão robótica do Ballet “Mécanique”, 
                      de George Antheil… 
                    JU –  Com freqüência as vanguardas do século 20 vieram na 
                      esteira das mudanças dos modos de produção. Apesar da forte 
                      mudança de matriz tecnológica nas últimas décadas, não há 
                      sinais visíveis de novas vanguardas. Faz sentido a afirmação 
                      de que as vanguardas chegaram a seu ponto de esgotamento? 
                      Isto é irremissível? Ou as vanguardas seguem existindo e 
                      apenas não são percebidas como antes? Naquela mesma entrevista, 
                      há doze anos, Haroldo dizia que “os netos da geração de 
                      45 parecem estar de volta, mais retrógrados e reacionários 
                      do que nunca”. É possível qualificar a poesia que se pratica 
                      hoje no Brasil, isto é, a poesia que tem mais livre curso 
                      entre nós? A volta à discursividade é necessariamente um 
                      retrocesso?
                    Augusto de Campos –  Para mim, o sentido da palavra ”vanguarda” 
                      não está necessariamente ligado a grupos e movimentos, embora, 
                      sim, as mudanças tecnológicas afetem a poesia. Mas as questões 
                      sociais, também. E muitas outras coisas. Prefiro o conceito 
                      atemporal de ”invenção”, que tem como emblema o trovador 
                      provençal Arnaut Daniel, do qual só restaram 18 canções. 
                      No entanto, embora desgastada, a palavra “vanguarda” pelo 
                      menos não engana ninguém. Quem teria a coragem de dizer 
                      que Jorge Amado ou Paulo Coelho (“no offense”) são escritores 
                      de ”vanguarda” como se pode ainda dizer de Joyce ou Apollinaire? 
                      Essa história de que “as vanguardas” já cumpriram o seu 
                      papel histórico é argumentação defensiva dos que não souberam 
                      ou não puderam conversar com a sua época. 
                    Discordo do eminente crítico Antonio Candido, quando quer 
                      atribuir caráter de efemeridade às vanguardas. Se assim 
                      fosse, o que seria da obra de um Joyce, um “Oswáld”, um 
                      Duchamp, um Khliébnikov ou um Schoenberg? Ninguém precisa 
                      ser “inventor” para ser um bom ou um grande poeta. Consciente 
                      do seu valor, dizia Mário Faustino com generosa auto-ironia: 
                      “Eu não sou um inventor. Gostaria de ser um mestre. Mas 
                      se acaso for apenas um diluidor, tudo bem, espero ser dos 
                      úteis“. Os nascidos com a ingrata função de “make it new” 
                      são uma espécie, entre outras, de artistas. Certamente a 
                      menos aplaudida, se o sucesso popular é o que se almeja. 
                      O compositor mais insultado de todos os tempos, já com escandalosa 
                      má-reputação como artista, convocado para o serviço militar 
                      na guerra de 1914, respondeu à pergunta do oficial atônito 
                      que registrava o seu nome: “O sr. é o compositor Arnold 
                      Schoenberg?” Resposta: “Sim, alguém tinha que sê-lo, e como 
                      ninguém o quisesse ser, eu resolvi assumir esse encargo.”
                    JU –  De uma entrevista sua: “Quem o quiser praticar hoje 
                      o soneto tem que se medir com Dante, Camões, Shakespeare, 
                      Mallarmé, Rimbaud, Hopkins, Fernando Pessoa, Augusto dos 
                      Anjos etc. etc. etc.” – isto dito num contexto de exaustão 
                      das formas. Poetas de linhagem concreta hoje não estariam 
                      diante de desafio parecido, que é o de se medir com Augusto, 
                      Décio e Haroldo?
                    Augusto de Campos –  Eu aludia aos versos de pé-quebrado 
                      que rolam, impunes, por aí, e também à tentativa de reabilitação 
                      do soneto por poetas de novas gerações. No mínimo pé-quebradíssimo 
                      e no máximo competentíssimo, mas reincidindo em todos os 
                      clichês “sonotológicos” (sic), embora de temática atual. 
                      De Camões a Cummings, o soneto foi explorado de todas as 
                      maneiras e está mais exaurido que a poesia concreta. Não 
                      dou conselhos aos poetas mais jovens porque, como disse 
                      Pound, os velhos tendem a gostar dos que se parecem com 
                      eles… Instado, nos últimos anos, já quase-mudo, a dar um 
                      conselho aos poetas novos, EP, aposentado da sua “Ezuversity” 
                      disse apenas: ”Curiosity, curiosity”. Quanto aos “trigênios” 
                      – “bright Brazilians blasting at bastards”, como os saudou 
                      ele em uma de suas cartas – é verdade que tornaram mais 
                      difícil fazer poesia, mas isso é saudável para os poetas 
                      e os realmente bons, que eventualmente os apreciarem, saberão 
                      “admirar” e ”fazer outra coisa”.
                    JU –  Que projetos o sr. tem para o futuro no campo da poesia, 
                      da tradução ou da crítica? 
                      Augusto de Campos –  A curto prazo, um livro de traduções 
                      intitulado Byron e Keats — Entreversos, já acolhido pela 
                      Editora da Unicamp. A médio prazo, outro, também de traduções, 
                      August Stramm — Poemas-Estalactites, já anunciado pela Perspectiva. 
                      Gostaria muito de reeditar as traduções de Cummings e a 
                      antologia da poesia de Pound, que organizei, ambas fora 
                      de circulação, mas problemas com direitos autorais e outros 
                      entraves burocráticos impediram a republicação desses livros, 
                      há muito esgotados. Teriam até alguns acréscimos. Mas os 
                      editores originais não se interessaram em reimprimi-los. 
                      Há ainda uma proposta para republicar o esgotadíssimo A 
                      Serpente e Pensar, contendo a tradução do poema “Esboço 
                      de uma Serpente” e extratos dos “Cadernos” de Valéry. A 
                      longo prazo, 50 novos poemas de Rilke, à espera de que se 
                      esgote a 2a edição de Coisas e Anjos de Rilke, para incluí-los 
                      na 3a, já que pertencem, quase todos, ao mesmo período do 
                      “Livro de Imagens” e dos “Novos Poemas”. 
                    Enquanto isso, vou publicando na Internet, já que os cadernos 
                      culturais de grande circulação expulsaram os poetas da república 
                      das letras. Mas as edições de poesia levam anos para se 
                      esgotar… Como vêem, continuo cada vez mais “vocalista”. 
                      Novos poemas? Muito poucos… e duvidosos. Considerando a 
                      distância que medeia entre Viva Vaia (1979) e os dois últimos 
                      livros, Despoesia (1994) e Não (2003) e a minha idade avançada, 
                      a perspectiva mais plausível é a de reabilitar o soneto 
                      camoniano (“começou a servir outros sete anos…”). Pode bem 
                      ser que eu já tenha ido para o espaço quando tiver poemas 
                      suficientes para um novo “folhetim de versos” (grande Cesário!). 
                      “Poemas esparsos” me parece um nome pós-razoável. Mas confesso 
                      que acho mais bonito terminar com um Não e um Sem Saída, 
                      partindo do livro para os cibercéus do futuro.
                    Emily & Augusto
                    A sepal, petal, and a thorn 
                      Upon a common summers’s morn —
                      A flask of Dew — A Bee or two —
                      A Breeze — a caper in the trees—
                      And I’m a Rose!
                      (c. 1858)
                    Sépala, pétala e um espinho —
                      Nesta manhã radiosa —
                      Gota de Orvalho — Abelhas — Brisa —
                      Folhas em remoinho —
                      Sou uma Rosa!
                     • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 
                      • • • • • • 
                    We lose — because we win —
                      Gamblers — recollecting which
                      Toss their dice again!
                      (c. 1858)
                    Um perde — o outro ganha —
                      Jogadores jogados —
                      Lançam de novo os dados!
                     • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 
                      • • • • • • 
                    I’m Nobody! Who are you? 
                      Are you — Nobody — Too?
                      Then there’s a pair of us?
                      Don’t tell! they’d advertise — you know!
                    How dreary — to be — Somebody!
                      How public — like a Frog —
                      To tell one’s name — the livelong June —
                      To an admiring Bog!
                      (c. 1861)
                    Não sou Ninguém! Quem é você?
                      Ninguém — Também?
                      Então somos um par?
                      Não conte! Podem espalhar!
                    Que triste — ser — Alguém!
                      Que pública — a Fama!
                      Dizer seu nome — como a Rã —
                      Para as palmas da Lama!
                     • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 
                      • • • • • • 
                      Some such Butterfly be seen
                      On Brazilian Pampas —
                      Just at noon — no later — Sweet —
                      Then — the License closes —
                    Some such Spice — express and pass —
                      Subject to Your Plucking —
                      As the Stars — You knew last Night —
                      Foreigners — This Morning — 
                      (c. 1862)
                    Algumas Borboletas há
                      Nos Campos do Brasil —
                      Voam ao meio-dia só —
                      Depois — cessa o Alvará —
                    Alguns Aromas — vêm e vão —
                      À tua Escolha, uma só vez —
                      Estrelas — que à Noite entrevês —
                      Estranhas — de Manhã —
                     • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 
                      • • • • • • 
                    Drab Habitation of Whom?
                      Tabernacle or Tomb —
                      Or Dome of Worm — 
                      Or Porch of Gnome —
                      Or some Elf’s Catacomb?
                      (c. 1864)
                    Mansão malsã de Quem?
                      Tabernáculo ou Tumba —
                      Domo de um Verme —
                      Grota de um Gnomo —
                      Ou Elfo em Catacumba?