Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 272 - de 25 a 31 de outubro de 2004
Leia nessa edição
Capa
Vlado e o fim da ditadura
Parto de cócoras
Prêmio Jovem Cientista
Ciência & Cotidiano
Comunicação para todos
Oswald de Andrade
Diário da Cátedra
Um arranhão de gato
Painel da semana
Teses da semana
Unicamp na mídia
Morte com naturalidade
Ciência + Paraolimpíadas
 

11

Para a morte ser
vista com naturalidade

CLAYTON LEVY



O psicanalista Roosevelt Cassorla, professor da FCM: "A negação da morte faz parte de nossa cultura" (Fotos: Antoninho Perri)Otto Lara Resende disse, certa vez, que a morte é, de tudo na vida, a única coisa absolutamente insubornável. De fato, ninguém consegue ludibriá-la. Morrer é inegociável. Trata-se de um evento tão natural quanto nascer, crescer ou ter filhos. Entretanto, a maneira como esse fato inevitável é encarado varia de pessoa para pessoa, de cultura para cultura. Em geral, a idéia da finitude aterroriza o ser humano. Não é por acaso, portanto, que nos últimos anos inúmeros trabalhos científicos vêm sendo publicados na tentativa de desmitificar a morte. Entre os autores que atuam no Brasil, um dos destaques é o psicanalista Roosevelt Cassorla, professor titular colaborador do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp e membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Considerado um dos maiores especialistas em tanatologia do país, ele diz que na Unicamp têm sido efetuadas pesquisas sobre o tema e também sobre suicídio. Parte delas está reunida nos livro “Da morte: estudos brasileiros” e “Do suicídio: estudos brasileiros”, ambos assinados por Cassorla e publicados pela Editora Papirus. Segundo ele, falar sobre a morte talvez seja um bom começo para que o tema seja tratado com mais naturalidade. É isso que o Jornal da Unicamp pretendeu ao ouvir Cassorla, na entrevista que segue.

Jornal da Unicamp — Por que a morte ainda é um tabu para a maior parte das pessoas?

Roosevelt Cassorla – A morte se constitui no fato mais assustador da vida, certamente o maior deles frente ao qual não temos controle, previsão e qualquer compreensão. Mesmo as compreensões religiosas não são necessariamente suficientes para nossa mente inconsciente. Frente ao pavor da morte, seja lá o que ela for, nossa mente usa mecanismos inconscientes, sendo o que se chama cisão e projeção desse pavor o mais importante. Graças a ele, a morte, ou melhor, o pavor da morte, é projetado (colocado fora da mente) e identificado com perseguidores externos. Dessa forma, podemos “proteger-nos” dela evitando ou atacando esses supostos perseguidores. Em termos sociais e culturais, a morte pode ser produto dos deuses ou demônios, fruto de transgressões que efetuamos (como o pecado original), resultado da inveja de outros, de feitiços, quebras de tabus, de inimigos, etc. Enfim, temos que encontrar alguma explicação. Não suportamos o “não saber”. À medida que a ciência destrona as crenças e a religião, o indivíduo tem que se defrontar com esse pavor, com esse não saber, e poderemos identificar dois mecanismos. Primeiro, a negação: trata-se de um mecanismo psicológico em que não percebemos a realidade. É como se ficássemos cegos a ela. A negação da morte faz parte de nossa cultura atual. Por isso nos afastamos dela, ou quando nos defrontamos com ela, nossa mente faz o possível para que nada sintamos e nos esqueçamos logo do assunto. Curiosamente, o fato de sermos bombardeados constantemente por notícias de morte, numa sociedade violenta, faz com que também nos anestesiemos para evitar contato com a realidade, e a projetamos nos outros. Isto é, os outros morrem, eu não. O segundo mecanismo é a medicalização: a explicação da morte passa a ser a doença. Todos morremos hoje, por doenças. Espera-se que o sistema médico e de saúde dê conta disso. A impossibilidade ou dificuldade de aceitar a morte faz com que o sistema de saúde seja constantemente acusado por mortes, mesmo que inevitáveis. Procuram-se tratamentos para rejuvenescer. Por outro lado, quando ocorre a morte, evita-se ao máximo o contato com o morto e os sentimentos envolvidos. Os rituais, necessários para a elaboração de um luto, são abandonados ou feitos em forma mecânica. Aos poucos, cria-se uma “industrialização” da morte, em que empresas maquiam o morto, preparam cerimônias artificiais e todos retomam sua vida rapidamente, como se nada tivesse ocorrido. Diz-se que, atualmente, a morte substituiu a sexualidade, como algo sujo, que deve ser evitado. Enfim, foge-se da morte, na medida em que ela nos assusta e não temos meios psicossociais para lidar com ela do ponto de vista emocional. Certamente a atual cultura da não-reflexão e do prazer imediato, do não suportar a frustração, contribui para tudo isso.

JU — A sociedade moderna ainda prefere ignorar a morte do que falar abertamente sobre o tema. Esse comportamento traz alguma conseqüência do ponto de vista social e psicológico?

Roosevelt Cassorla – O não-poder lidar com a morte dificulta o trabalho de luto. Chamamos trabalho de luto ao esforço que nossa mente deve fazer, inconscientemente, para aprender a viver com a realidade, com as perdas, todas elas, inclusive a morte. Esse processo é bastante conhecido pelos psicanalistas e implica num isolamento, ruminações sobre o morto, lembranças, culpas, remorsos, tristeza, depressão e após algumas semanas é como se a imagem do morto tivesse sido “encaixada” no mundo interno. Dizemos que o luto foi “elaborado”, isto é, que o indivíduo pôde colocar todas as lembranças, fantasias, culpas, expectativas, em relação à perda, na sua rede simbólica, enriquecendo sua possibilidade de pensar, e podendo retomar a vida. Sem esquecer-se do morto, e enriquecido pelas lembranças boas, e sem que o morto o incomode dentro de sua mente. Para que o trabalho de luto se processe adequadamente, o indivíduo deve ter a oportunidade de falar sobre sua perda, de receber acolhimento familiar e social, de poder entristecer-se, desesperar-se, culpar-se, etc., a sociedade aceitando isso como algo natural. Rituais religiosos e culturais facilitam isso. Se a sociedade não fornece esse espaço, exigindo que o indivíduo não sinta, ou que vê esses sentimentos como vergonhosos, o processo de luto é dificultado. Os resultados serão processos melancólicos, somatizações, dificuldades em retomar a vida, risco suicida, desistência da vida, sentimentos de culpa etc. Isso pode perseguir o indivíduo por toda a vida, e pode espalhar-se por gerações, através de identificações patológicas. Possivelmente grande parte do sofrimento mental atual decorre de bloqueios no trabalho de luto, por fatores sociais, e aqui temos não somente o luto por morte, mas por outras perdas, como oportunidades, trabalho, afeto, respeito, etc.

JU — A diversidade cultural resultou numa variedade enorme de significados para a morte. Para alguns é algo terrível, enquanto para outros é algo natural. De que maneira essa mistura de significados contribui para a aversão que o homem contemporâneo tem em relação à morte?

Roosevelt Cassorla – A morte antes fazia parte do dia-a-dia. Ela atingia jovens e crianças, e muitas pessoas doentes tinham menos chances de sobreviver. As pessoas morriam em casa, cercadas por seus familiares e conhecidos. Crianças vivenciavam o processo de morte dos adultos e velhos e a convivência com essa realidade se tornava mais fácil. Rituais culturais e religiosos eram efetuados pela comunidade, antes e após a morte. Enfim, a morte fazia parte da vida. Com os avanços do saneamento, da medicina, etc, pessoas passam a viver mais tempo. Mudanças culturais, como as assinaladas nas respostas acima, fazem com que se negue a morte. Isso é facilitado pela medicalização: a pessoa morre no hospital, sozinha, comumente no meio de aparelhos, sedada. Não pode despedir-se dos seus, resolver suas pendências emocionais e práticas, não pode escolher sequer como quer morrer. Não pode fazer o luto por sua própria vida, o que permitiria uma morte mais tranqüila. Os estudos atuais pregam o direito a uma morte digna, a escolha – se a pessoa tiver condições para tal – do tipo e local de morte, o envolvimento afetivo com familiares, etc. Enfim, a desmedicalização da morte, que passa a ser um direito reconquistado. A humanização da Medicina caminha nessa direção.

Livros reúnem pesquisas sobre o tema


JU — Falar sobre a morte com um paciente terminal ajuda ou atrapalha? Por quê?

Roosevelt Cassorla – O paciente terminal deve ser compreendido e, para isso, o profissional de saúde tem que saber identificar seus sentimentos e emoções, principalmente aquelas não visíveis. O profissional deve identificar quais são as ansiedades e medos que subjazem ao sofrimento ou ao eventual silêncio. O paciente precisa saber que pode contar com uma presença humana, próxima. Isso é básico nos momentos de crise e de passagem. O falar ou não sobre a morte dependerá da necessidade e desejo do paciente. O profissional de saúde sensível, assim como o familiar, o amigo, ou o religioso, devem dar espaço para que o paciente comunique sobre o que quer falar, como se deve falar e o quanto se deve falar. Para tudo isso é necessário um vínculo emocional forte, de confiança. Os profissionais têm que ser treinados a aprender a escutar, não somente palavras, mas mensagens emocionais.

JU -– Em sua opinião, os profissionais da saúde estão preparados para enfrentar a morte de um paciente da mesma maneira que estão treinados para salvar sua vida?

Roosevelt Cassorla – Em geral são despreparados para lidar com aspectos emocionais de forma geral. Mais despreparados ainda frente à morte. Alguns profissionais particularmente intuitivos se saem bem. Há necessidade de preparo e é isso que fazemos nos cursos do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria e em outros cursos e grupos de reflexão sobre Aspectos Emocionais na Prática Médica. De minha experiência, o maior problema do profissional é sua dificuldade em entrar em contato com suas próprias emoções.

Aprendendo a lidar com o luto

A psicóloga Vera Lúcia Rezende: limites precisam ser respeitadosOrganizadora do livro “Reflexões sobre a Vida e a Morte – Abordagem interdisciplinar sobre o paciente terminal”, publicado pela Editora da Unicamp, a psicóloga Vera Lúcia Rezende também se tornou um nome respeitado quando o assunto é tanatologia. Supervisora da Seção de Psicologia do Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (CAISM) ela diz que a morte deve ser encarada como uma das etapas da vida, provavelmente a mais crucial. “Poderá ser vivida como uma das experiências mais ricas e importantes, como uma das mais solitárias e negativas, tanto para o paciente como para a família”, explica.

Em geral, segundo Vera, as famílias ficam perdidas, confusas e inseguras. Muitas vezes, temendo a morte em casa, insistem na hospitalização por um tempo maior do que o necessário. “No entanto, voltar para casa, rever um filho ou visitar um local fazem parte do processo de despedida e separação que o paciente necessita fazer”, observa. “E quanto mais ele puder viver cada momento e cada etapa, melhor”, completa. Segundo ela, para a família, estar próximo, acompanhar e cuidar é desgastante, mas é um dos fatores que mais favorece os sentimentos de serenidade e de aceitação.

“Aqueles membros que não conseguem estar mais próximos, em geral, apresentam uma tendência a apresentarem mais conflitos e culpa”, afirma. Em muitos casos, segundo Vera, é necessária apenas uma orientação adequada para se observar mudanças no comportamento familiar. Outras vezes é preciso respeitar os limites psíquicos de cada um, sem cobrar, mas com compreensão. “Não é fácil perceber todas essas necessidades e sentimentos”, diz. Por isso, explica a psicóloga, é importante que pacientes e familiares recebam ajuda adequada no sentido de permitir que façam suas despedidas, a sua maneira, e favorecer o processo de elaboração de um luto normal.


Topo

SALA DE IMPRENSA - © 1994-2004 Universidade Estadual de Campinas / Assessoria de Imprensa
E-mail: imprensa@unicamp.br - Cidade Universitária "Zeferino Vaz" Barão Geraldo - Campinas - SP