Unicamp recebe
 
                    36 universidades para  discutir a utopia
                     
                    ÁLVARO KASSAB
                    
Depois 
                      de Florença, Campinas. O II Congresso Internacional de 
                      Estudos Utópicos vai reunir na Unicamp, de 7 a 10 de junho, 
                      docentes, pesquisadores e estudantes de 11 países e de 
                      36 universidades. Segundo o professor Carlos Eduardo Berriel, 
                      coordenador do evento e do Centro de Estudos Utópicos do 
                      Instituto de Estudos da Linguagem (U-TOPOS/IEL), o congresso 
                      busca delimitar a natureza literária da utopia e demarcar 
                      as modalidades de sua definição enquanto gênero. “Trata-se 
                      de definir o gênero como ponto de chegada crítico, localizando-o 
                      dentro da História concreta, deduzindo-o de forma sintética”. 
                      Nesta entrevista, Berriel faz um apanhado histórico da 
                      utopia e fala sobre seu papel nos dias de hoje.
                      
                      Jornal da Unicamp – Qual o objetivo do II Congresso Internacional de  Estudos Utópicos?
                        Carlos Eduardo Berriel – Este Congresso ocorrerá por determinação dos participantes  do “Convegno Internazionale – Scienza e Tecnica nell’utopia e nella distopia”,  ocorrido na Itália em maio de 2007, numa iniciativa conjunta da Revista Morus – Utopia e Renascimento e do  Departamento de Estudos sobre o Estado da Universidade de Florença, e visa  precisamente delimitar a natureza literária da utopia e definir as modalidades  de sua definição enquanto gênero – verificando se este projeto é possível.  Temos o apoio da Unicamp, do Instituto de Estudos da Linguagem, de vários  centros estrangeiros de estudos utópicos. Buscaremos neste evento avaliar a  historicidade da utopia, sua relação com a experiência da viagem, com a crítica  social, isto é, com a política e também com os outros fenômenos literários; a  utopia exige a mobilização do raciocínio filosófico, linguístico,  antropológico, religioso, econômico, ético: o fundamental é conseguir  transformá-lo de assunto em objeto. Trata-se de definir o gênero como ponto de  chegada crítico, localizando-o dentro da História concreta, deduzindo-o de  forma sintética. Definir um gênero é estabelecer o encontro entre História e  uma obra específica. Há um elemento constante dentro da diversidade, e este é o  terreno do gênero. 
                    
JU 
                      – Quem está apoiando o evento?
                      Berriel – O tema da utopia possui grande 
                      relevância e tem sido objeto de reflexão privilegiado 
                      de muitos pesquisadores das principais universidades no 
                      mundo nos últimos anos. São várias as instituições 
                      diretamente envolvidas no II Congresso: a Revista Morus 
                      – Utopia e Renascimento; o U-TOPOS – Centro de 
                      Estudos Utópicos do IEL/Unicamp –, a própria Unicamp, 
                      que ajudou de todas as formas; o IEL/Unicamp, na pessoa 
                      de seu diretor; o Programa de Pós-Graduação em Teoria 
                      e História Literária; o Dipartimento di Studi Sullo Stato 
                      da Università di Firenze, Itália, com quem temos um convênio; 
                      o Centro Interuniversitario di Studi Utopici da Università 
                      del Salento, de Lecce, Itália, com quem também temos convênio; 
                      o Centro Interdipartimentale di Ricerca sull’Utopia da 
                      Università de Bologna, Itália; o Departamento de História 
                      da PUC-Campinas e outras instituições. Este Congresso 
                      será uma oportunidade preciosa de envolver os estudiosos 
                      brasileiros com a expressão de ponta da discussão sobre 
                      utopia realizada nesses centros.
                    JU – O primeiro congresso foi  realizado em Florença e a segunda edição será em Campinas. Por que esta  escolha?
                      Berriel – Em Florença tivemos o apoio da  Universidade, através da pessoa do professor Claudio de Boni, e a várias mãos  empreendemos aquele encontro, que conheceu uma surpreendente adesão –  compareceram mais de 30 expositores, de 11 países. Agora teremos o dobro de  expositores, e a representação de 36 universidades. Acredito que o fato da  utopia ter nascido enquanto gênero no Renascimento, que por sua vez  formalizou-se dentro do Humanismo florentino, pode ter a ver com a tomada de  Florença como local ideal de sua realização. O Humanismo florentino criou a  noção de que o homem, que é o indivíduo burguês, era livre para construir sua  vida com liberdade. A existência humana terrena deixou de ser vista como  destino, um livro escrito por forças metafísicas e alheias ao indivíduo, a quem  cabia apenas desempenhar o papel de viver. Com o Humanismo, tudo muda. E da  capacidade humana de traçar sua existência individual para idêntica liberdade  no plano coletivo, foi um passo. E por livre organização do viver associado  entendo a utopia. A Revista Morus, a  organizadora, trouxe naturalmente para a Unicamp sua segunda edição.
                    JU – Como você definiria a utopia?
                      Berriel – Bem, a minha definição certamente 
                      coincide e também discorda da opinião de muitos pesquisadores, 
                      sendo esta divergência, aliás, a razão deste congresso. 
                      Eu penso que a utopia é uma forma de pensamento basicamente 
                      moderno, para onde convergiram várias outras formas de 
                      pensamento social. Mas a utopia é também herdeira de algumas 
                      formas de pensamento antigo, principalmente da literatura 
                      grega – da República de Platão e das viagens imaginárias 
                      de Luciano em primeiro lugar –, ambas citadas diretamente 
                      por Morus. Também foi importante o messianismo judaico-cristão, 
                      que fazia esperar a regeneração do homem e a volta ao 
                      Paraíso Terrestre.
                      
                      
A 
                      utopia nasce trazendo uma contraditoriedade congênita: 
                      sendo filha do desenvolvimento das forças produtivas próprias 
                      do Renascimento, funda virtualmente uma sociedade tão perfeita 
                      em seus fundamentos que termina por impedir toda forma de 
                      desenvolvimento. Existe assim como uma construção imaginária 
                      refém de sua própria perfeição. A utopia, em função 
                      do contexto no qual surge, corresponde aos desejos e às 
                      esperanças coletivas de seu tempo. Em outras palavras: 
                      as utopias, partindo de elementos reais, constroem virtualmente 
                      todas as Histórias possíveis, todos os cenários que a 
                      História não realizou. A raiz desta idéia vem da Poética 
                      de Aristóteles, onde está dito ser a poesia mais ampla 
                      que a História, pois realiza até o fim aquilo que a História 
                      apenas esboçou. 
                    Hegel elaborou um conceito de  realidade notavelmente rico, em que o existente conta com várias dimensões –  todas reais. Aquilo que aparece como uma tendência concreta, mesmo que não  venha a se efetivar, também ganha estatuto de realidade. Para ele, a verdade do  Ser está em seu processo, isto é, no fato da mais alta realidade ser  constituída pelas tendências de desenvolvimento da História, bem mais do que  pelos fatos, que revelam um aspecto da possibilidade dominante em um  determinado momento. A utopia está aí: é uma tendência da realidade, operante e  efetiva, mas que não se efetiva enquanto Estado. Ela depende da dimensão ética  e política. 
                    JU – Podemos afirmar então que a  utopia está ligada a todos os campos do saber humano?
                      Berriel – Não há dúvida. A utopia não poderia  ter surgido, enquanto gênero, sem os procedimentos intelectuais que a  precederam. No campo teórico da política, juntamente com O Príncipe, ela constitui um ponto de chegada do Humanismo do  Renascimento, e expõe privilegiadamente algumas de suas tópicas: a  racionalização da vida individual e coletiva, e a ideia de que ambas podem  alcançar a perfeição através de uma idealidade ético-social platônica. A  explicação mais geral do nascimento deste gênero literário, tão próximo da  história, da filosofia e da política, segue basicamente a ideia de que a utopia  foi gerada pelo processo burguês de racionalização da vida, tão própria do  Quattrocento e do Cinquecento. A perfeição do viver associado, da cidade, do  Estado, do príncipe e do povo: esta ambição caracterizou a utopia. A construção  de uma utopia, que é um esforço intelectual sempre datado, parte de um ponto de  vista subjetivo que se alarga sobre o social. A utopia não parte de um ponto  fora do sujeito histórico (de Deus, por exemplo), mas do próprio sujeito. Isto  quer dizer que toda utopia, mesmo falando de um futuro fictício, está na  verdade falando dos problemas da época em que foi escrita. A utopia possui a  sua própria história, que de certa maneira é a história do inconformismo intelectual  diante das formas do mundo estabelecido.
                    
JU 
                      – E quanto às ciências da natureza?
                      Berriel – Lembremos que as ciências 
                      naturais, como as conhecemos, foram construídas no âmbito 
                      do Humanismo renascentista. A essência do método de Galileu, 
                      humanista toscano, estava em considerar o corpo humano como 
                      a fonte suprema do conhecimento do universo. Todos os instrumentos 
                      científicos inventados ou aperfeiçoados neste período 
                      visavam aumentar os sentidos corporais humanos, para torná-los 
                      mais eficientes. O telescópio, por exemplo, torna a visão 
                      mais eficiente. A questão central que Galileu enfrentou 
                      com a Inquisição é justamente essa, se os sentidos corporais, 
                      uma vez tendo percebido aspectos desconhecidos da natureza, 
                      seriam suficientes para obrigar a Igreja a rever seu cânone. 
                      Galileu achava que sim, a Inquisição achava que não. 
                      Não poderia haver esta concepção revolucionária sem 
                      a prévia autoconfiança humanista.
                    JU – Com o tempo, houve uma banalização da 
                      palavra utopia. A que você atribui essa distorção?
                      Berriel – Acredito que este fato se deva ao fato 
                      de que o conceito de utopia ficou “sem dono”, isto é, 
                      nenhuma força decisiva da sociedade se identificou com 
                      ele. Com isto quero dizer que nem a esquerda nem a direita 
                      se sentiram formalizadas pelo pensamento utópico – embora 
                      em momentos esparsos pudessem se utilizar da palavra. Apenas 
                      movimentos residuais da prática política, na sua maioria 
                      de expressão pequeno-burguesa, mantiveram a idéia em uso 
                      – e isto fez mal à utopia. Há muito tempo que a utopia 
                      é alvo de críticas, o que significa que foi, neste processo, 
                      objeto de avaliação e julgamento. Como resultado destas 
                      análises, as utopias foram muitas vezes criticadas como 
                      promotoras de uma atitude cega para com as “realidades 
                      humanas”, tais como as ambições, o desejo de poder, 
                      etc., pois não é difícil imaginar uma sociedade ideal 
                      quando as realidades concretas não são levadas em consideração. 
                    
                    Também já foi dito que o espírito  revolucionário utópico se dissolve por si mesmo, já que numa sociedade perfeita  não cabem revoluções nem, portanto, mudanças e progresso. Segundo a pensadora  Maria Moneti, o que aconteceu com a palavra utopia é similar ao que aconteceu  com a palavra filosofia: chegamos a um uso semântico distendido destas  palavras, de forma que não sabemos mais o que exprimimos quando dizemos utopia  ou filosofia. Estas palavras têm no vulgar uso semelhante ao de grife de  roupas.
                    JU – A utopia é criticada pela  direita e pela esquerda. Por quê?
                      Berriel – A utopia tornou-se um termo  pejorativo no século XIX, na polêmica entre a burguesia e a escola política  liberal, por um lado, e por outro na disputa entre as diferentes correntes do  socialismo anterior a 1848. Até esta data o termo é aplicado às diversas  correntes do socialismo de forma claramente pejorativa. Depois das revoluções  deste ano, o termo “utopia” se torna uma injúria explícita aplicada ao  socialismo e ao comunismo. O termo é vitima das críticas do pensamento burguês,  mas seu descrédito deve ser atribuído igualmente a Engels, que denunciou em  Saint-Simon, Fourier e Owen um “socialismo utópico” e sentimentalmente  pequeno-burguês. Marx e Engels se consideravam, corretamente, tanto herdeiros  quanto liquidadores da utopia. Engels pensava que o socialismo científico  mandara definitivamente para a lata de lixo da História a utopia. 
                    
Hoje 
                      podemos dizer que a História mandou para a lata de lixo 
                      o socialismo real, que tanto se inspirou quanto traiu o 
                      pensamento de Marx e Engels. Desde então o marxismo tentou 
                      recuperar a utopia como testemunho da permanência da luta 
                      de classes: em 1898, Karl Kautsky refere-se a Thomas Morus 
                      como o “primeiro socialista moderno”. O socialismo real 
                      compartilhou com a direita uma adesão ao Pragmatismo, que 
                      em resumo é uma visão estreita da História, pela qual 
                      apenas os fenômenos hegemônicos são reais. Isto desqualifica 
                      a utopia, que é o real não manifesto – e todas as alternativas 
                      sociais foram canceladas. Não por acaso o Futurismo, corrente 
                      pragmática de vanguarda, teve suas conseqüências mais 
                      efetivas tanto na Itália de Mussolini quanto na União 
                      Soviética do mesmo período. 
                    No século XX, com o socialismo real, a utopia foi removida 
                      para o plano da irrelevância. Não casualmente volta a 
                      ser estudada com intensidade depois dos acontecimentos chamados 
                      de “queda do muro de Berlim”, e por intelectuais interessados 
                      tanto em não repetir os erros do leninismo quanto em não 
                      considerar o capitalismo financeiro e sua cultura, a pós-modernidade, 
                      como o fim da História.
                      
                      JU – Que é sua avaliação dos estudos sobre 
                      a utopia no Brasil? E nos chamados países centrais?
                      Berriel – No Brasil, ainda de um modo 
                      geral, a utilização do conceito ainda não superou a indefinição 
                      entre utopia e utopismo, isto é, entre o uso conceitualmente 
                      rigoroso da palavra e a tomada genérica do conceito. Enquanto 
                      a utopia é o conceito em seu rigor, o utopismo é a tomada 
                      de qualquer lugar ou sociedade imaginária como utópica. 
                      Se for assim, como distinguir o Sítio do Picapau Amarelo 
                      da Cidade do Sol de Campanella, ou o Planeta Mongo de Flash 
                      Gordon da República de Platão? Afinal, são todos esses 
                      lugares imaginários. Patinamos na ausência de rigor nesta 
                      área, e o II Congresso foi pensado, em parte, para sanar 
                      este problema. Isto em parte se deve à indigência da biblioteca 
                      brasileira, no que toca à utopia. Na França, Itália, 
                      Portugal, Irlanda e Inglaterra existem centros muito avançados 
                      de estudos utópicos, com uma vasta biblioteca já publicada 
                      nos últimos 20 anos, principalmente. Acaba de ser inaugurado, 
                      em Portugal, o primeiro curso de pós-graduação em utopia.
                    JU – Como funciona o grupo coordenado  por você no IEL-Unicamp? Quais são suas atividades e linhas de pesquisa?
                      Berriel – Está funcionando no IEL-Unicamp o  U-TOPOS – Centro de Estudos sobre Utopia, que reúne pesquisadores de algumas  faculdades da Unicamp, e de fora dela. Lutamos todos contra a banalização acima  referida. Muitas pesquisas de ponta estão saindo deste Centro, incluindo uma  nutrida safra de traduções de utopias para o português. Aliada a este Centro  está a Revista Morus – Utopia e  Renascimento, com 5 números publicados, um livro no prelo e outros a  caminho, e 2 congressos internacionais em seu haver. O objetivo é atrair  pesquisadores de dentro e de fora da Unicamp para a construção de um patrimônio  crítico e histórico da utopia, no plano mais amplo. Todas as linhas de pesquisa  são válidas, condicionadas ao critério do rigor conceitual. De minha parte  busco conjugar o pensamento de Marx com o objeto utópico.
                    
JU 
                      – A utopia serve para quem, ou para o quê?
                      Berriel –  Toda vez que você se perguntar 
                      se a forma atual da sociedade é eterna, ou se haveria um 
                      outro modo possível, você está operando no terreno da 
                      utopia – você está imaginando uma estrutura social virtual. 
                      Aí está a qualidade humana essencial: a teleologia, ver 
                      antes o que ainda vai acontecer. A utopia serve claramente 
                      para humanizar o homem, dotá-lo da noção de que o mundo 
                      social se constrói e se destrói pela exclusiva ação 
                      humana, sem interferências sobrenaturais. A utopia é filha 
                      da descoberta de que a sociedade é obra exclusivamente 
                      da ação humana, sendo portanto passível de mudança de 
                      acordo com uma projeção anterior. 
                    A utopia serve para destruir o status quo, e serve àqueles interessados  neste trabalho. Aos reacionários a utopia causa horror. Lembremos que a  distopia, isto é, a ficção que cria os mundos mergulhados no pesadelo social (Admirável Mundo Novo, 1984, Fazenda de Animais, Blade  Runner) são utopias de sinal trocado, chamadas de distopias – e sem essas  obras estaríamos desarmados para compreender o mundo atual. Podemos dizer que a  dimensão libertadora da utopia está no fato de que ela buscava adaptar não o  indivíduo ao meio, mas o meio ao indivíduo. 
                    JU – Especificamente para os dias de  hoje, qual a função da utopia?
                      Berriel – Precisaríamos antes definir o que  significa “hoje”, o que não é fácil. Um esquema possível seria: 1) falência das  alternativas concretas da esquerda; 2) até algumas semanas atrás, o capitalismo  financeiro arrogava-se a forma derradeira e insuperável da História; e 3) do  fim de 2008 para cá, a forma arrasadora deste capital revelou-se falida.  Estamos, portanto, numa encruzilhada que, imagino, será mais confortável  estudar no futuro do que viver agora. Mas e a utopia com isso? Bem, a utopia é,  antes de qualquer coisa, um modo de enxergar a realidade social. 
                    Para a disciplina do utopista, o  mundo nunca é apenas aquilo que se nos apresenta, mas é também aquilo que está  oculto. Para o bem e para o mal. Então, diante de qualquer forma social, a  utopia capta as possibilidades dissimuladas, que poderão no futuro crescer e  assumir o poder. Portanto, em relação àquilo que chamamos fase 2 – apoteose do  capitalismo financeiro – a disciplina utópica podia observar que longe dos  holofotes respiravam dois seres, um “do bem”, outro “do mal”: a primeira, uma  forma de vida associada generosa, um outro mundo que seria construído sobre as  ruínas do capital e do socialismo real; este, infelizmente, não se deu a  conhecer – não temos utopias de fato eficientes. A outra forma, esta “do mal”,  é um mundo de pesadelo – a distopia. Notemos que a disciplina utópica fez a sua  parte neste segundo caso: só para dar um exemplo, os filmes Minority Report e Inteligência Artificial, ambos de Spielberg e extraídos de obras  literárias dos anos 60. Neles vemos no que o mundo poderia se transformar se  transbordassem as águas da informática e de suas associadas, a robótica e a  vigilância eletrônica. Aliás, estes temas já haviam sido tocados por Orwell,  Kubrick, Huxley, Phillip K. Dick e todos os grandes distopistas. E ninguém que  participa da cultura pode dizer que não sabia de nada. 
                    E a vertigem informática, prestemos  atenção, é uma das manifestações estruturais do capital financeiro. Será  preciso lembrar que a robótica e a informática desempregaram centenas de  milhões de trabalhadores e destruíram o movimento operário? Quem advertiu isso  muito antes? Foram os utopistas em Blade  Runner, 1984, Admirável Mundo Novo, 2001 – Uma Odisséia no Espaço (em que um  robô-computador assassino enlouquece de inveja dos homens). 
                    Certamente os líderes trabalhistas,  mergulhados nos assuntos cotidianos, que tanto elucidam quando escondem os  verdadeiros problemas, não entenderam que os avanços tecnológicos vieram, nesta  quadra em particular, para quebrar a espinha das reivindicações dos  trabalhadores. A marginalização de grossos contingentes de técnicos e  operários, assim como o isolamento das elites em estruturas residenciais  policiadas já estavam desenhadas nos vários galhos da árvore utópica, como a  ficção científica. Basta pôr-se a lembrar. 
                    JU – Mas devemos ser contra os  avanços técnico-científicos?
                      Berriel – De modo algum! Voltaríamos à  pré-história, ou pior. O que seria de nós sem a penicilina, e no que me toca em  particular, o cinematógrafo? A questão é que somos contemporâneos de uma  ciência desprovida de ética. Creio ser a primeira vez na História em que isso  acontece. O desenvolvimento técnico-científico anda, ou melhor, voa, sem  qualquer governo quanto às suas finalidades humanas. Mary Shelley, fundando o  romance de terror em 1818 com Frankenstein,  já nos avisara sobre isso. A criatura grotesca, produto da ciência, em  determinado momento indaga ao seu criador: “Por que você me criou?”, e o  cientista moderno não tem a resposta. É uma premonição da bomba de Hiroshima.  Há um divórcio entre padrão científico e padrão ético. 
                    Aí está o problema que interessa à  utopia: o que acontece com a sociedade, ou acontecerá, se as invenções  científicas não passarem pelo vestíbulo do consenso moral? A resposta me parece  óbvia: a destruição do planeta, da vida, da cultura, de tudo que vale a pena  levar em consideração. E é o que estamos vendo – com a advertência da  biblioteca utópica. E de certa forma, com o desgoverno da técnica, podemos  estar voltando à pré-história, ou pior.
                    JU – Vimos alguns aspectos positivos  da utopia. E os aspectos negativos?
                      Berriel – Os aspectos negativos estão em  querer construir uma sociedade utópica, ou seja, sair do terreno  filosófico-literário, essencial para a autonomia humana, para a construção de  uma sociedade real utópica. Isso é um grave perigo. Cito a antropóloga Margareth  Mead: “O sonho de um é o pesadelo de outro”. Cito ainda outra frase, esta de  Marx: “Quem compõe um projeto para o futuro é um reacionário”. Concordo com as  duas. Se a utopia é uma sociedade perfeita, isto significa que ela não pode se  aperfeiçoar e nem se degradar, porque ambas as coisas pressupõem a imperfeição.  Na prática, esta utopia significaria uma estática social, um mundo parado e  eternizado em si mesmo. Isto é a u-cronia, ou ausência de tempo – uma  impossibilidade. Mas podemos ir além: uma sociedade utópica real, para garantir  sua existência estática, precisaria recorrer à eterna vigilância e a todas as  formas de violência. 
                    Quem projeta uma sociedade crê que os  seres humanos estão inteiramente à sua disposição, num consenso incondicionado,  aceitando implicitamente que serão controlados e dispostos conforme o desenho  lógico do engenheiro social – aquele que crê que sua lógica pessoal deve ser  universal. Estamos falando daqueles senhores tão famosos na História, o Grande  Inquisidor, o Grande Irmão, o Grande Timoneiro, o Guia Genial. Karl Popper  considerava que a utopia prática é indissociável da violência. "A  utopia", disse Aldous Huxley, "parece hoje muito mais realizável do  que jamais o foi. O problema agora é como nos defendermos de sua realização".
                    Nomes  confirmados 
                    Adriano  Prosperi - Scuola Normale Superiore di Pisa  (Itália)
                      Alcir Pécora - Unicamp
                      Alfredo Cordiviola - UFPE
                      Ana Cláudia Romano Ribeiro - Unicamp
                      Antônio Edmilson M. Rodrigues - UFRJ/PUC-RJ/UF
                      Arrigo Colombo - Universidade di Lecce (Itália)
                      Benjamin Abdalla Jr. - USP
                      Biagio d’Angelo – PUC-SP
                      Bruno Dallari – PUC-SP
                      Carlos Antônio Leite Brandão - UFMG
                      Carlos Eduardo Ornelas Berriel - Unicamp
                      Carmelina Imbroscio - Università di Bologna (Itália)
                      Carolina Araújo - UFRJ
                      Claudio De Boni - Università di Firenze (Itália)
                      Cosimo Quarta - Università di Lecce (Itália)
                      Christian Rivoletti - Universidade de Saarland (Alemanha)
                      Claude-Gilbert Dubois - Université Michel de Montaigne – Bordeaux -III  (França)
                      Costica Bradatan - Texas Tech University (EUA)
                      Cristina Meneghello - Unicamp
                      Daniel Ogden - Uppsala University (Suécia)
                      Edwiges Morato - Unicamp
                      Edgar De Decca - Unicamp
                      Edson Luiz André de Souza - UFRGS
                      Elias Thomé Saliba -  USP
                      Emerson  Tin - FACAMP
                      Enzo Baldini - Università di Torino (Italia)
                      Fátima Vieira - Universidade do Porto (Portugal)
                      Francisco Foot Hardmann - Unicamp
                      Gianluca Bonaiuti - Università di Firenze (Itália)
                      Jean-Michel Racault - Université de la Réunion (França)
                      Jorge Bastos da  Silva - Universidade do Porto (Portugal)
                      Helvio Gomes  Moraes Junior – Unemat/Unicamp
                      Hernán Martignone - Universidad  de Buenos Aires (Argentina)
                      Hilário Franco  Jr. - USP
                      Iara Lis Schiavinatto - Unicamp
                      Ildney Cavalcanti - UFAL
                      Ivone Gallo – PUC-Campinas/ Unicamp
                      Jacyntho Lins Brandão -UFMG
                      Jens Baumgarten - UFSP
                      José Alexandrino de Souza Filho - UFPb
                      Krishan Kumar - University of Virginia (EUA)
                      Laetitia Bontemps - CESR, Université François-Rabelais, Tours (França)
                      Laura Tundo Ferente - Università del Salento (Itália)
                      Leandro Karnal - Unicamp
                      Luciano Migliaccio – FAU-USP
                      Luiz Marques - Unicamp
                      Marcio Seligmann-Silva - Unicamp
                      Margarida Salomão - UFJF
                      Maria José García Soler - Universidad del País Vasco (Espanha)
                      Maurizio Cambi - Università di Salerno (Itália)
                      Marianna Forleo - Isfol (Itália)
                      Marie-Luce Demonet - Centre d’Etudes Supérieures de la   Renaissance de Tours (França)
                      Nadia Minerva - Università di  Bologna (Itália)
                      Nathaniel Coleman - Newcastle University (Inglaterra)
                      Paola Spinozzi - Università di Bologna (Itália)
                      Peter Kuon - Université de Salzburg (Áustria)
                      Silvia Solimeo - Università di Lecce (Itália)
                      Susani Silveira Lemos França - UNESP
                      Suzana Albornoz - Universidade de Santa Cruz do Sul  (Brasil)
                      Wilhelm Vosskamp - University of Cologne (Alemanha) 
                      Yvone Soares dos Santos Greis - UNICAMP / Université  François Rabelais (França)
                      Vita Fortunati - Università di Bologna (Itália)