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A interface entre C&T e sociedade

POR: MARKO MONTEIRO

Polêmicas públicas recentes a respeito de temas ambientais (novo Código Florestal), científicos (uso de células tronco para pesquisa) e econômicos (modelo de exploração do petróleo do pré-sal) possuem um traço em comum: estão fortemente relacionados a desenvolvimentos científicos e tecnológicos, ou representam desafios à capacidade brasileira de articular sua ciência e tecnologia (C&T) às necessidades estratégicas do país. Pensar tais temas demanda abordagens inovadoras, que não separem aspectos técnicos de variáveis sociais, culturais, econômicas ou históricas. Esse desafio vem sendo enfrentado por pensadores associados ao campo CTS (Ciência, Tecnologia e Sociedade). Apesar de cada vez mais relevante no mundo todo, tal abordagem ainda é relativamente pouco utilizada no país. O contexto brasileiro atual, no entanto, demanda cada vez mais esse tipo de reflexão, e deixar de fazê-la é uma opção arriscada.

A recente discussão altamente polarizada em torno do novo Código Florestal brasileiro é exemplar da falta de articulação estratégica entre nossas capacidades científicas e o debate público a respeito de nossos recursos naturais. Enquanto o texto tramita pelo Congresso, a Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciência (ABC) alertaram, por meio de nota divulgada no último 25 de maio, que nunca foram chamadas a participar do debate em torno do código. Clamam, nesse mesmo comunicado, por um período mais longo de discussões antes da aprovação final da medida, para que seja elaborado e aprovado um código florestal “com base científica e tecnológica considerando aspectos jurídicos não punitivos e com equidade econômica, social e ambiental”.

Esse pedido não é banal, pois envolve a construção de um diálogo ampliado em torno das formas pelas quais deveríamos explorar nossos vastos recursos naturais; tanto para a agricultura, área na qual o Brasil já é uma grande potência mundial, quanto para fins mais ligados à exploração sustentável e às preocupações ecológicas. Nossa imensa biodiversidade, por exemplo, poderia ser fonte de novos conhecimentos em áreas tão distintas quanto biocombustíveis, cosméticos e medicamentos. Essa lista poderia ser expandida em muito, caso houvesse investimento estratégico em pesquisas direcionadas a buscar formas sustentáveis de exploração das nossas terras e florestas.

A ausência, no debate legislativo, de importantes instituições ligadas à C&T, que além de tudo são financiadas em boa parte pelo próprio Estado, sugere um dilema a ser explorado: em um contexto de crescimento econômico, quando o Brasil busca firmar-se como país mais justo e mais desenvolvido, podemos abrir mão de debater amplamente o uso presente e futuro de nossos recursos naturais? Essas polêmicas, além disso, podem ser reduzidas às suas dimensões estritamente “ambientais”, “científicas” ou “econômicas”? Essa redução não estaria impedindo uma compreensão mais complexa da multiplicidade de fatores que estão em jogo nessas polêmicas, cujo desenrolar é decisivo para nosso futuro?

Discute-se muito no Brasil, e não sem razão, a importância de se investir mais em educação, além de se buscar o crescimento econômico sustentado através de um crescimento da nossa capacidade inovadora. O que é ainda pouco debatido, no entanto, é a interface entre a dinâmica da C&T e os problemas sócio-culturais e econômicos a ela relacionados. Esse vácuo é especialmente nocivo quando temos, como agora, temas de extrema relevância na pauta nacional sendo discutidos em chaves simplistas, excluindo vozes de extrema relevância em favor de acordos políticos de curto prazo.

O campo de estudos CTS vem se configurando em uma arena interdisciplinar na qual tais questões são explicitadas de forma sofisticada, podendo contribuir em muito para o debate em torno de problemas na interface entre C&T e sociedade. O campo congrega desde sociólogos, antropólogos, historiadores, até economistas, filósofos, e cientistas políticos, articulando, em suas pesquisas, a C&T a problemas sociais, culturais e econômicos. Desde a compreensão de como o conhecimento científico é produzido e demarcado da não-ciência, até a forma como é mobilizado nas mais distintas dinâmicas sociais e políticas, estudiosos da área de CTS vêm contribuindo sistematicamente com reflexões sobre como a sociedade e a C&T constroem-se mutuamente; bem como esse processo, fortemente disputado, precisa ser melhor compreendido.

Ou seja, nossas opções em termos de como organizamos a C&T são, ao mesmo tempo, opções sobre que tipo de sociedade queremos. Buscamos gerar riquezas na Amazônia a partir de atividades que são intensivas em tecnologia, criando uma dinâmica econômica mais sustentável? Ou optamos por usos de baixa tecnologia, que além de tudo dependem de desmate em grande escala, gerando danos ambientais e perda de recursos genéticos que ainda nem conhecemos? Devemos investir em laboratórios para conhecer e gerar riquezas a partir da nossa biodiversidade, ou optamos por não interferir nas lógicas coloniais de ocupação destrutivas que herdamos? Buscamos conhecer como nossas populações nativas se relacionam com o meio natural, ou ignoramos esses saberes tradicionais? Ou seja, nenhuma dessas questões é simplesmente científica, tecnológica ou social: essas esferas são sempre interrelacionadas.

Desde pelo menos os anos 1970, a problemática ambiental vem se destacando como uma preocupação de governos, movimentos sociais e meios acadêmicos. O problema da poluição, a perda de biodiversidade, o aquecimento global e mais recentemente o desenvolvimento sustentável como forma de superar a pobreza, têm sido tópicos de destaque no movimento ambientalista e além dele. Muitos desses temas já foram inclusive incorporados às preocupações correntes de políticos, consumidores, e até mesmo da cultura popular.

Não coincidentemente, os estudos CTS tiveram seu início associado em parte às preocupações ambientais. Novas tecnologias, como a nuclear, cuja promessa era a de ampliar a disponibilidade de energia limpa, rapidamente se mostraram também fontes de novos e graves problemas, cuja solução está longe de ser encontrada. Grandes desastres nucleares, como Chernobyl (na antiga União Soviética) e, mais recentemente, em Fukushima (no Japão), explicitam de forma dramática a inextricabilidade entre questões ambientais, sociais e de C&T.

Os desastres ocorridos na região serrana do Rio de Janeiro, por exemplo, foram causados tanto por uma ausência de planejamento urbano e de ocupação do solo, áreas em que o Brasil possui capacidade científica, quanto por uma ausência de sistemas de alerta que poderiam ter evitado um grande número de mortes. Diversas situações semelhantes acontecem, em menor escala, praticamente todos os anos. Por que, ainda assim, o conhecimento científico e o planejamento urbano não dialogam de forma mais próxima, de forma a evitar tais desastres? A compreensão de tais dilemas requer uma atenção tanto para o “social” quanto para o “científico e tecnológico”.

Os recentes investimentos feitos pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) na compra de um supercomputador (Tupã), a fim de melhorar as previsões do tempo, sinalizam na direção de uma preocupação maior com o uso da C&T para usos socialmente relevantes, como a prevenção de desastres naturais. O Inpe vem sendo também importante na política de combate aos desmatamentos ilegais, fornecendo informações a respeito de focos de desmatamento cada vez mais detalhados e em tempo real, possibilitando a articulação entre instituições como o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), a Polícia Federal e o sistema judiciário no combate à destruição de florestas.

O exemplo do desmatamento é relevante por dois aspectos: primeiro, demonstra a importância de investimentos em sistemas de C&T cada vez mais complexos. O Brasil deve ter um programa espacial e a capacidade de construir e lançar satélites, pois eles possuem aplicações importantes nas áreas militar, ambiental e de telecomunicações. Segundo, demonstra a urgência em debater os rumos sociais, éticos e políticos dos novos investimentos em C&T. Uma tecnologia como a do sensoriamento remoto, por exemplo, pode ser usada para vigilância de fronteiras, mapeamento ou na detecção de queimadas ilegais. Os usos dessas tecnologias dependem das prioridades estabelecidas socialmente, e a difusão dos benefícios que tais usos geram dependem da forma como são desenvolvidos, organizados e utilizados.

O debate sobre o novo Código Florestal mostra, infelizmente, a ausência dos nossos cientistas em discussões fundamentais para o futuro do país. Mostra também a pouca relevância atribuída ao pensamento sobre a C&T e sua articulação com a sociedade. A ausência de reflexão em uma área tão relevante como a do meio ambiente, por exemplo, tem consequências imprevisíveis e irreversíveis: a biodiversidade, uma vez extinta, não tem como ser recuperada. O investimento sistemático em inovação tecnológica deve ser acompanhado, portanto, do investimento em áreas como a de CTS, como forma de construir pontes entre desenvolvimentos na C&T e os mais diversos problemas sociais que o país enfrenta.

A exploração de petróleo no pré-sal, a proteção e uso sustentável de nossas florestas, o nosso programa espacial, o desenvolvimento de novos biocombustíveis, entre tantos outros desafios do presente (mas que ajudarão a orientar nossas opções de desenvolvimento futuro), precisam de uma reflexão que consiga agregar, de forma interdisciplinar, conhecimentos de uma diversidade de áreas de especialização. Além disso, essas questões carecem de um pensamento estratégico, para que possam gerar não apenas ganhos econômicos momentâneos e localizados, mas que auxiliem na construção de uma sociedade mais justa e democrática, envolvendo a exploração sustentável do meio ambiente e a redução de desigualdades sociais centenárias. O tipo de sociedade que desejamos depende, em grande medida, da C&T desenvolvida, agora e no futuro.

 




 
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