| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 399 - 16 a 22 de junho de 2008
Leia nesta edição
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Corte, costura e memória
Xenofobia pintada de amarelo
Arte oriente
Dekasseguis
Ideogramas
Parceria bem-sucedida
Haicai
Japão ilustrado
 


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A imigrante Michie Akama, fundadora da São Paulo Saiho Jogakuin, e suas alunas na frente e no interior da escola: 5 mil mulheres passaram pelo internato ( Fotos: Antoninho Perri/ Divulgação)

O olhar atento do ocidente
ao olhar diferente do oriente

LUIZ SUGIMOTO

A bailarina e pesquisadora Angela Nagai em ação: Nô, umbanda, xamanisno e a busca da raiz "que ia dar no outro lado do mundo"( Fotos: Antoninho Perri/ Divulgação)Nô, em uma sílaba, significa a arte de exibir talento. Como denota o nome, é um gênero teatral secular que busca o máximo de significação com um mínimo de expressão. Não é de hoje que diretores e atores ocidentais vêm dirigindo um olhar mais atento para o teatro tradicional japonês, interessados não apenas no exótico, mas nas técnicas para criar a atmosfera envolvente que instiga o público a abrir outros canais de percepção. “Compreender o Nô pode resultar em métodos e exercícios interessantes para diretores, atores e dançarinos brasileiros”, afirma a atriz e diretora Alice Kiyomi Yagyu, que se apresenta como Alice K.

Pesquisadora e professora do Instituto de Artes da Unicamp, Alice K. foi membro do Grupo de Arte Ponkã, criado nos anos 1980 pelo diretor Paulo Yutaka, que voltava do Japão interessado em montar no Brasil um grupo teatral com descendentes. “Creio que a morte prematura do pai – a mãe era brasileira – também o instigava a explorar seu lado japonês. O movimento foi influenciando outros atores descendentes (e não-descendentes) dentro do contexto teatral brasileiro. No entanto, havia algo que era mal trabalhado: como lidar com as suas origens, com o tempo e o olhar diferentes?”

Alice K. vê no centenário da imigração japonesa um momento propício para que as universidades ofereçam mais espaço para o estudo das artes cênicas orientais, em sua opinião ainda muito incipiente. “Acho surpreendente que ainda não exista uma disciplina prática ou uma área ligada ao tema, mesmo na USP, onde faço meu doutorado. Na Unicamp, dentro das disciplinas que ministro, tento incorporar alguns princípios presentes em Nô e Kyogen, respectivamente o drama e a comédia clássica japonesa do século XIV”.

No Departamento de Artes Cênicas do IA, a professora encontra esta abertura em disciplinas como “Improvisação: o silêncio nas montagens”. “Desde o primeiro ano, é possível trabalhar com os alunos princípios e conceitos importantes sobre o tempo e espaço, dentro da visão oriental. Não são princípios antagônicos e sim complementares. Capacitam o aluno a compreender e construir sua ação em cena. Hoje já temos vários pesquisadores e diretores que tiveram contato com mestres no Japão e os intercâmbios tendem a aumentar”.

Durante seu mestrado na USP, Alice K. recebeu uma bolsa para aprender sobre a essência do Nô e do Kyogen com mestres atores em Tóquio. Passou a metade dos anos 90 fora do Brasil, pesquisando, atuando como solista e participando de produções no Japão e na Alemanha. “Tive contato com a tradição cênica japonesa por mais de duas décadas. Mas chega o momento em que você precisa de outros elementos, inclusive para aprofundar a própria tradição. É no elemento comparado que conseguimos enxergar a tradição, e não dentro dela mesma”.

A pesquisadora conta sobre um período em que se afastou das referências corporais japonesas, por conta da necessidade de se aprofundar em seu lado brasileiro. “Por exemplo, sempre gostei de praticar alguma luta. Ao invés do judô ou caratê, fui buscar a capoeira, por causa da ginga, da dança. Mas, quando a gente se perde dentro de outro tipo de investigação, recorre novamente à tradição. Sinto que essas formas tradicionais japonesas acabam se transformando em eixo, como a casa dos nossos pais, para a qual sempre podemos voltar um dia. Ela estará sempre lá”.

A professora e diretora Alice K. durante ensaio no Instituto de Artes: enxergando a tradição na comparação dos elementos cênicosRaiz escavada – A bailarina e pesquisadora Angela Nagai, filha de pai japonês e de mãe brasileira, define-se como uma nipo-paraibana. Aluna da primeira turma de dança da Unicamp, ela conseguiu bolsa da Fundação Japão em 1997 e a Bolsa Vitae em 2002 para estudar com o mestre Udaka Mishige, no Instituto de Nô de Kyoto.

Angela dança desde pequena, mas despertou para o Nô apenas na universidade, durante uma aula da professora Graziela Rodrigues através do método BPI (Bailarino, Pesquisador, Intérprete) num exercício onde a ação era ‘escavar a terra’. “Quando vi uma raiz diante dos meus olhos e a senti sob meus pés, fui tomada por uma emoção muito forte. Meu corpo me lembrou das origens japonesas e decidi ir atrás daquela raiz, que ia dar no outro lado do mundo”.

Nesta mesma época, dentro do método BPI, Angela pesquisava terreiros de umbanda e candomblé – lugares onde, segundo ela, o corpo está em constante transformação. “Ao ver um filme sobre o Nô, ouvi do narrador que os atores com as máscaras representavam fantasmas e deuses que interagiam com as pessoas. Pensei se não estaria ali uma linguagem nascida no ‘terreiro’ japonês, uma representação artística que elaborou processos oriundos do xamanismo”.

No mestrado-recém concluído, Ângela realizou sua síntese corporal através do método BPI que, além de ter decodificado tecnicamente o chamado “transe” vivido pelo corpo nos terreiros brasileiros, trabalha aspectos ainda pouco explorados na dança, como o estudo da imagem corporal. “O método fornece uma preparação psicofísica especial, pois é o corpo em contato com o inconsciente que nos rege e não o intelecto. Num círculo traçado no chão, o dojô, eclodiram sínteses corporais da minha trajetória de vida”.

Preparando-se para o doutorado, agora mais desperta para a dança brasileira, Angela Nagai assegura que o Nô vai acompanhá-la para sempre, enquanto uma linguagem cujo refinamento estético captura o intérprete dançarino por seu grande poder de síntese, além de refletir uma profundidade espiritual. “Eu pude investigar minha história corporal e aprender a lidar com minhas inquietações a respeito de minhas origens. Sinto-me mais apaziguada”.

A estudante e bailarina Cíntia Toma Kawahara: projeto de iniciação científica no Instituto de Artes culminou com apresentação públicaAtrás do sonho – Cíntia Toma Kawahara, nissei (de segunda geração) por parte de mãe e ionsei (de quarta geração) por parte de pai, ainda sonha em conhecer Okinawa, a Ilha das Artes, de onde vieram seus pais e avós. “Apesar da veia artística nata da família, foi na faculdade, quando a professora da disciplina de danças brasileiras pediu que fizéssemos um apanhado da nossa árvore genealógica, que cheguei à dança de Okinawa”.

Okinawa foi por muitos séculos um reino independente denominado Riukyu e que, como porto comercial, sofreu grande influência do sudeste asiático, apresentando suas particularidades na língua, cultura e arte. “A dança possui vários gêneros. No clássico temos a dança masculina (nisai odori), com movimentos fortes e precisos, alguns baseados no caratê, que também surgiu na região”.

Segundo Cíntia Toma, a dança clássica feminina (onna odori) difere da japonesa primeiramente pelo vestuário, usando-se o bingata, roupa típica de cores marcantes. “Outra característica são os gestos e movimentos mínimos, porém complexos e elegantes, desenhados numa atmosfera sóbria. Há ainda a dança dos mais velhos (rojin odori), que traz longevidade, e a dança dos meninos (wakashu odori)”.

Cíntia Toma escolheu o bailado Amaká – apresentado à realeza como forma de refinamento e hospitalidade – para seu projeto de iniciação científica no Instituto de Artes e que culminou com uma bela apresentação pública. “Mas a dança de Okinawa tem seu gênero popular, que surgiu depois da anexação pelo Japão, com temas sobre a pesca e a colheita. É dançado descalço e os bailarinos sorriem mais, enquanto que na dança clássica os rostos parecem máscaras, quase sem expressão. E há também o gênero soosaku buyou, ou bailado “inventado”, que são os bailados modernos”.

Centenário – Cíntia Toma sentiu que deveria ganhar mais experiência de vida, realizando pesquisas por fora e dançando muito. É o que vem fazendo neste ano do centenário da imigração, com apresentações na Capital e no interior. Vai dançar na semana de comemorações no Anhembi, neste mês de junho, e depois iniciar seu projeto de workshop, no propósito de promover a dança de Okinawa fora da comunidade.

Angela Nagai, igualmente, vem participando de eventos do centenário na Fundação Japão e estará no Anhembi com espetáculos didático-artísticos de bailados de Nô, em português. “Também sou benshi [narrador de filmes mudos, figura que foi célebre no Japão] e participarei do novo ciclo de Cinema Silencioso Japonês do MIS de São Paulo, em agosto, acompanhada por músicos brasileiros. Faço isto há onze anos”.

A professora Alice K., por sua vez, idealizou o Projeto 100, que traz um repertório de seis montagens sob sua direção, duas delas a serem criadas ainda para este ano do centenário. Três delas nasceram do trabalho com alunos da Unicamp: as premiadas Qioguem?! e Morte e Vida Severina (inspirada no poema homônimo de João Cabral de Melo Neto e com elementos do Nô), e a recente A Pérola, baseada no conto de Yukio Mishima.

Ainda dentro do projeto, Alice K. está terminando a montagem do espetáculo Oversized, inspirado na obra da coreógrafa-bailarina de Butô Anzu Furukawa, que estréia em 4 de julho no Teatro Coletivo Fábrica. Até o final do ano, ela dirige Death Note, inspirada na série homônima do mangá que virou febre no Japão, e As alegres comadres de Windsor, peça de Shakespeare, apenas com atrizes e em versão Kyogen. “Considero o Projeto 100 como minha homenagem pessoal ao Centenário da Imigração Japonesa”.

Lembrando as origens

Investigando sua árvore genealógica, Cíntia Toma descobriu que seus antepassados praticavam várias modalidades da arte okinawa. A bisavó materna, por exemplo, dava aulas de sanshin – o shamisen (banjo de três cordas) de Okinawa. A avó, Kyoko Toma, cantava a música típica, praticava dança e tocava o kotô, uma harpa de seis cordas. E o avô, Giro Toma, já falecido, tocava sanshin e ajudou a organizar a Associação de Okinawa do Brasil.

“É mais fácil contar a trajetória da família da minha mãe porque a do meu pai, que já é da terceira geração, está mais distante. Mas nela a veia artística também é forte, enquanto que meu bisavô paterno era mestre de kendô”, justifica a jovem dançarina.

Os avós maternos de Cíntia vieram na esperança de uma boa vida, mesmo que não passassem necessidades na Ilha das Artes. Deram-se mal na Bolívia, onde tiveram que desmatar terras virgens e iniciar a vida do nada, plantando para o próprio sustento. Foi em São Paulo que os avós, recorrendo à arte gestual, começaram a construir o futuro dos filhos e netos. “Minha avó não falava uma palavra em português, mas vendia pastéis como ninguém”.

O pai da professora Alice K. é de Hokkaido, norte do Japão, e a mãe de Shikoku, mais a oeste. Ambos vieram pequenos com suas famílias, que se fixaram na agricultura como a maioria dos imigrantes, na esperança de um lugar novo. Acabaram por construir a vida de casados em São Paulo, sendo que o pai, hoje com 85 anos, ainda mantém sua banca de frutas no Mercado Municipal.

Dos 4 aos 7 anos de idade, Alice freqüentou o nihongogakko (escola de japonês), envolvida com a língua, os mangás (histórias em quadrinhos), fábulas e músicas nipônicas. Em todo mês de julho, a escola promovia o tradicional undokai (gincana esportiva) e, em dezembro, o gakugueikai (maratona de artes) com programação de música, canto, dança e teatro.

Alice e as outras crianças atuavam nas peças teatrais, mas sem entender direito a narrativa dramática. “Havia uma peça em especial, chamada Byakkotai, que simulava um haraquiri geral. Uma choradeira só. Só mais tarde fui perceber que o professor Asakawa tinha veia trágica, a ponto de repetir a montagem a cada ano”.

Além de se comunicar, Alice K. também pensava em japonês, mais por influência dos romances e mangás e pelo fato dos pais só falarem o idioma. Mesmo nas brincadeiras com as vizinhas, seu imaginário era muito ligado à fantasia, com pouca influência da televisão. “A entrada no ensino básico foi difícil e professores chegaram a pedir que eu deixasse a escola japonesa, que estaria atrapalhando meus estudos. Não saí, pois o caminho era reforçar o português e não retirar o meu japonês”.

Angela Nagai perdeu o pai em 2003 e lembra com carinho do presente que ganhou no aniversário de 18 anos. Empurrando-a no balanço no jardim, Hiroshi Nagai contou histórias da sua infância e adolescência na guerra, e do avô, Toraji, que sobreviveu aos campos de concentração na Sibéria. “Meu pai aportou em Santos com apenas 17 anos, em 1952, e puxou enxada até se formar engenheiro agrônomo, tornando-se um dos mais conceituados cientistas em melhoria genética do país”.

Em décadas de trabalho no Instituto Agronômico de Campinas (IAC), Hiroshi Nagai desenvolveu incontáveis variedades de hortaliças, frutos e legumes, como de tomates, pimentões, alfaces e quiabos. “Houve um tempo em que 80% das variedades de hortaliças plantadas no Brasil tinham sido aprimoradas por ele”.

O pai de Angela também foi cientista missionário da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação), salvando lavouras de pragas em vários países pobres da América Latina. “Hoje percebo que o seu amor não era apenas pelas plantas, acho que brotava do desejo inconsciente de que ninguém passasse fome no mundo”.

A filha tinha apenas 2 anos de idade quando Hiroshi Nagai chegou a uma nova variedade de tomate – doce, suculenta e tão resistente que motivou a invasão da estufa para roubo das sementes, provavelmente por alguém a mando da indústria de agrotóxicos. À variedade de tomate, que se propagou pelo mundo, ele deu o nome de “Angela”. E a dançarina sorri: “Você está falando com a própria”.

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