.. Leia nessa edição
Capa
Comentário
Artigo
Computador que fala
Parceria estratégica
Previdência
Cérebro em 3D

Peso de mulher

Reciclagem de água
Unicamp na Imprensa
Painel da Semana
Oportunidades
Teses da Semana
Desastre Ambiental
Reis do Rau-tu
Sebartião Martins Vidal
 

12

“Jardineiro dá nome a biblioteca de alunos

ROBERTO COSTA

Partiu do jardineiro-poeta Sebastião Martins Vidal a idéia de formar, em 1998, a biblioteca do antigo Cursinho do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Unicamp, hoje Cooperativa do Saber. Sebastião saiu à procura de potenciais doadores, a maioria clientes, e conseguiu em suas andanças reunir um acervo de dois mil livros. Nada mais justo, portanto, que os 1.100 alunos da Cooperativa soubessem da existência de um personagem tão singular. No último dia 7, a biblioteca do cursinho foi reinaugurada com um nome: Sebastião Martins Vidal.

Sebastião Martins Vidal: “Só o fato de ter nascido já me fez vitorioso”

O jardineiro não é homem de fazer pouco das coisas. Mas nos dias que antecederam a homenagem, ainda desconhecendo sua extensão e o conteúdo da programação, seguia na rotina quase franciscana de empreendedor. “Quero levar muitas flores, caixinhas de leite e meus poemas”, revelou ao Jornal da Unicamp. Uma contrapartida prosaica caso Sebastião não fosse, há muito, afeito a tirar leite de pedra. As caixinhas, por exemplo, vão ser destinadas a trabalhos artesanais. Já as flores e os poemas, para ele, são indissociáveis. “Quando estou com as flores, a inspiração vem logo. A planta é viva e, por ser viva, tem relação forte com a poesia”, ensina.

Não por acaso uma das homenagens programadas pelos agentes culturais do cursinho foi uma tertúlia lítero-musical. No palco improvisado, alunos leram os poemas de Sebastião, ele mesmo protagonista e promotor de saraus em Barão Geraldo. É, também, freqüentemente convidado por diretores de escolas para dar palestras sobre a arte de plantar. Atualmente tem conseguido reunir as coisas da poesia e dos jardins, no trabalho que desenvolve na Escola Roque Magalhães de Barros, do bairro Real Parque. O projeto “Brinca-Roque” junta literatura e cultivo de flores. Conduzido pelo jardineiro, um grupo de alunos esteve no final de maio no campus da Unicamp, em Barão Geraldo, para assistir a uma peça de teatro.

A biblioteca da Cooperativa do Saber: justa homenagem

Sebastião diz que o alecrim e o girassol são suas plantas preferidas, embora faça mais que fincar estacas na terra, podar galhos rebeldes e zelar pelas flores dos jardins formados por ele em Barão Geraldo e adjacências. Mantém o hábito de espalhar sementes de girassol por onde anda. E certamente foi com os bolsos cheios delas que pisou nos paralelepípedos remanescentes da rua 14 de Dezembro, Centro de Campinas, onde se localiza o prédio da Cooperativa do Saber. Foi ali que recebeu uma justa homenagem por sua semeadura.

 

---------------------------------------------------------

Muito além do jardim

EUSTÁQUIO GOMES

— Posso entrar?
— Por favor.
Muito poucas vezes tive ocasião de conhecer alguém que, no ofício de viver, soubesse harmonizar aquilo que faz com aquilo que ama. Tais pessoas são raríssimas. Em geral são dignas de admiração e inveja. Na sexta-feira, quando entrou em minha sala aquele homem pequeno, magro, quase escuro, bigodes densos e cabeleira revolta, tive a certeza, depois de alguns minutos de conversa, que havia tido a sorte de encontrar, finalmente, um sujeito em harmonia consigo mesmo.

Sebastião é jardineiro. Talvez lhe ficasse melhor a denominação “inventor de jardins”. Mas poderiam confundi-lo com um paisagista, o que absolutamente ele não é. Seus jardins não são públicos — compõem paisagens domésticas, particulares, e uma vez construídos continuam a contar com seu pastoreio diário. Afinal ele vive disso. Tem uma clientela que se expande por meio de uma rede de recomendações, em geral professores da Unicamp. Cada jardim é planejado a partir do pessoalíssimo gosto do interessado. Enquanto planeja, cava, semeia, planta, afofa e rega, se o dono permite Sebastião costuma cantar e recitar poemas.

Porque também tem isto: Sebastião é poeta. Há alguns anos publicou um livro de poemas, um lindo volume intitulado Contos poéticos, e chamou-os “contos” porque, segundo ele, “tudo ali foi experimentado e vivenciado”. Fazendo companhia aos poemas, gravuras belíssimas feitas por gente a quem ele vem servindo como jardineiro ou com quem conviveu nos últimos anos: professores e alunos da Unicamp, artistas do bairro universitário onde ele mora e trabalha. O livro nunca esteve nas livrarias, mas rapidamente se esgotou. Nas horas vagas, Sebastião saía por aí a oferecê-lo aos conhecidos, aos cientistas e aos estudantes. Agora acaba de reeditá-lo. Como da primeira edição, lá está o prefácio de Rubem Alves. Nada mais apropriado, já que Rubem é um jardineiro da palavra.

Se a poesia é coisa recente, a jardinagem nem tanto. Resumida, a história de Sebastião começa em Marília, onde nasceu há 60 anos. Aos seis ficou órfão de mãe. Desprovido de tios, tias e avós, e como nem sequer chegou a conhecer o pai, mandaram-no para um orfanato em Guaratinguetá. Depois dos 14, solto no mundo, levou vida difícil: padeiro em Aparecida, operário em São Paulo. Se gostava de flores e plantas, isso ainda era um mistério interior. Demorou a desvendá-lo. Mas, depois, nunca mais deixou de ser a espécie de fauno que é.

Conversar com as plantas, tocá-las, senti-las, ser capaz de perceber seu movimento lento, lentíssimo: nada disso se faz com pressa, sem ter chegado antes a um conhecimento íntimo delas. Há as que se rejeitam entre si e as que se procuram. As rosas, por exemplo, como as definiria?

– Bonitas e solitárias.

– Solitárias por quê?

– Até um tufo de margaridas é capaz de incomodá-las.

Já as lágrimas-de-cristo e as primaveras são sociáveis. Nenhuma é tão perfumada quanto a dama-da-noite, nem mesmo o cravo e o jasmim. Uma planta doentinha, cuida-se dela depois de trocar a terra, lavar o vaso e examinar-lhe as raízes. As plantas que não dão flores, como o cróton e a samambaia, extraem sua beleza da própria cor ou da forma de suas folhas. A mais perigosa é a coroa-de-cristo: seu leite tem a virulência da soda caústica. Numa coisa, entretanto, todas se assemelham: nenhuma deixa de buscar a luz e o ar.

Toda essa ciência vem permeada de serena filosofia. Proclama:

— A natureza somos nós.

Perguntado, responde:

— Sim, sinto que há uma eternidade.

— O que o leva a acreditar?

— As plantas nascem e renascem indefinidamente da mesma raiz.

E quando peço que me mostre um de seus poemas, retira o seu livro de uma sacola e abre-o na página 13. Leio: “Do profundo da mente / tiro a semente / saio ao mundo a plantar / planto amor-perfeito / simplicidade das margaridas / azaléas coloridas / no jardim de meus semelhantes”.

Sebastião Martins Vidal dá-me a idéia de um ser cosmogônico, integrado ao universo e colado ao húmus da terra. Para ele morrer será tão fácil quanto viver. Sei que muitas pessoas gostariam de ler seu livro e, por que não? contratá-lo como pajem de suas flores. Talvez possam tirar dele também algumas sementes de savoir vivre. Perguntem-lhe, por exemplo, se algum dia se sentiu derrotado pela vida. Ele responderá.
— Não. Só o fato de ter nascido já me faz vitorioso.

SALA DE IMPRENSA - © 1994-2003 Universidade Estadual de Campinas / Assessoria de Imprensa
E-mail: imprensa@unicamp.br - Cidade Universitária "Zeferino Vaz" Barão Geraldo - Campinas - SP