Leia nesta edição
Capa
Proinfra
Cartas
Patrimônio lingüístico
Programas sociais
Feagri
Mandarim 32
Manômetro
Entomologia
Cervejas na era PET
Exposição
Painel da semana
Teses
Livro da semana
Portal Unicamp
Editora
Publicação
 


6-7



Para reaver maioria, Plínio exonera diretores e decreta intervenção

CAPÍTULO 32

Onde entram 17 candidatos a reitor, Lula faz discurso no campus e até Sun Myung Moon dá o ar de sua graça

EUSTÁQUIO GOMES

Debate de reitoráveis no prédio do Ciclo Básico no início de outubro 1981: 17 candidatos reivindicavam a cadeira de reitor no contexto de um forte movimento pela democratização interna que refletia o clima de distensão política no país NO DIA SEGUINTE à morte do fundador, a Unicamp era uma universidade sem líder e sem regimento. A frase, cunhada pelo físico da USP Luís Guimarães Ferreira1, que alguns anos antes abandonara a meio uma experiência acadêmica em Campinas após acusar Zeferino de “burlar a lei dos contratos”, podia aplicar-se também à ausência de uma estrutura institucional que incluísse a realização de concursos e superasse o estado de anomia da carreira docente e de seu quadro de titulações – uma herança da fase de informalidade do período de implantação.

A emergência de um grupo de diretores dissidentes – que a imprensa logo apelidou de “democráticos” como contraponto ao establishment interno, considerado autoritário – era um sinal evidente demais para ser ignorado por uma reitoria que, um ano antes, demonstrara ser incapaz de realizar uma reforma administrativa, quando mais uma reforma regimental. Mas, nessa altura, o grupo emergente estava menos interessado em mudanças regimentais do que na busca de “esqueletos” nos armários da administração central. No centro do poder já se sabia que oito diretores vinham se reunindo semanalmente na sala do diretor da Faculdade de Engenharia, Maurício Prates, o líder mais visível de uma oposição que já tinha rosto2. No Conselho, Prates contava com a simpatia dos estudantes e era ouvido com uma atenção cada vez maior pela representação docente e até pelos seis representantes do governo. O primeiro sinal de que nem tudo estava sob controle foi quando se elegeu para a presidência da principal instância normativa do Conselho, a Comissão de Legislação e Normas, um crítico do sistema, o filósofo Rubem Alves. E quando o grupo conseguiu impor o nome de Eduardo Chaves – um dissidente notório – para o comando de uma comissão vital da universidade, a de Orçamento e Patrimônio, soou forte o alarme em todas as salas da reitoria: a chamada “caixa preta” corria o risco de ser aberta. Com surpresa os rebeldes descobriam, a cada embate, que eram maioria no Conselho.

A “caixa preta” era uma metáfora para ao menos três questões de administração interna consideradas intocáveis – tão intocáveis a ponto de terem sido a causa oculta da queda da troika, um ano antes. A primeira questão se referia às aquisições bibliográficas internacionais, as quais requeriam vultoso investimento em dólares e não eram feitas diretamente junto às editoras de publicações acadêmicas, mas sim através de uma empresa intermediária. A oposição colocava no mesmo plano de discussão o eterno contrato que a universidade mantinha com a empresa de transportes de propriedade dos Chedid, a Ensatur, com sede em Águas de Lindóia, cujo pagamento nem passava pela Unicamp: era feito diretamente na Secretaria da Fazenda. O grupo tinha planos de impugnar também o contrato de compra de equipamentos hospitalares firmado com o consórcio Hospitalia, liderado pela Siemens, em termos considerados inaceitáveis. Além desses, os olhos da nova Comissão de Orçamento e Patrimônio se voltavam para as compras de víveres destinados aos dois restaurantes universitários e para um festival de gratificações de mérito, de efeito retroativo, com que a reitoria planejava engordar os salários de funcionários administrativos de confiança. Sob influência do grupo rebelde, o Conselho desautorizou o benefício numa sessão eletrizada pela presença maciça, no costado das cadeiras dos conselheiros, de centenas de funcionários interessados. Semanas depois, o grupo tornou-se definitivamente incômodo quando levou o Conselho a negar o pagamento de uma complementação para a bolsa dos médicos residentes da Faculdade de Ciências Médicas, por julgar que esta era uma obrigação do governo do Estado, deixando furioso o diretor da faculdade, José Pinotti.

O surgimento de uma oposição consistente, que rapidamente se firmava como um núcleo de resistência ao establishment interno — identificado, genericamente, com o malufismo e o regime militar — não era um fenômeno isolado: tinha conexões com a mobilização social pela anistia e com o nascente clamor por eleições presidenciais diretas. Tudo isso fazia parte de um clima geral que em São Paulo se misturava com o entusiasmo que representou a criação de uma pequena agremiação política, o Partido dos Trabalhadores, que prontamente atraiu parte substancial das lideranças classistas dentro das universidades. O educador Paulo Freire, recém-chegado de seu longo exílio no Chile e na Suíça, foi um dos que assinaram o documento fundador do PT, ao lado de Antonio Candido, Sérgio Buarque de Holanda e outros intelectuais, em fevereiro de 1980. Essa atmosfera de renovação, que pela primeira vez juntava trabalhadores e intelectuais no papel de protagonistas de uma nova experiência política, teve o efeito imediato de ideologizar as assembléias e de assembleizar toda e qualquer tomada de decisão classista. Na Unicamp, essa meta se corporificou num projeto até ali tido como impossível, o da eleição direta para reitor.

Não por acaso, no início daquele ano, o líder sindical Luiz Inácio da Silva, o Lula, aportou na Unicamp para fazer pregação de seu ideário e, diante de uma platéia receptiva, senão fascinada, prometeu reforçar o movimento de contestação interno. Os estudantes queriam ampliar sua representação de um sétimo para um quinto do total de conselheiros. E os funcionários, que até então não contavam com representação no Conselho, passaram a pressionar para tê-la. Em suma, punham-se em marcha dois instrumentos que se tornariam típicos da cultura petista nos anos seguintes – o assembleísmo e a greve – com o fim de atingir seus próprios fins. Era com essa nova realidade que um fragilizado reitor se defrontava naqueles dias, com a agravante de freqüentemente subestimar a força do inimigo.

Cinco dos oito diretores exonerados: Aécio Pereira Chagas (IQ), Ayda Ignez Arruda (Imecc), Carlos Argüello (IFGW), Carlos Franchi (IEL) e Eduardo Chaves (FE). Crise paralisou a universidade por cinco meses

Em junho, Plínio foi forçado a admitir que não tinha mais as rédeas do Conselho quando viu ser aprovada, com 18 votos favoráveis e duas abstenções, num quórum de 25 conselheiros presentes, a proposta de Rubem Alves que criava um sistema de consulta à comunidade interna para a escolha do reitor a partir de uma lista indicativa de seis nomes. O estatuto da consulta, nos termos em que foi aprovado, escaparia completamente ao controle do reitor, já que sua organização ficaria por conta das entidades representativas de docentes, alunos e funcionários. A notícia caiu como uma bomba. A própria dissidência estava atônita com o resultado: não se esperava tanto. Um rebelde de primeira hora como Carlos Franchi chegou a recear pelo sucesso da empreitada. Achava que era liberdade demais, responsabilidade em excesso, conforme confidenciou a Chaves. Prates e Chaves, as fontes mais assíduas da imprensa que cobria a Unicamp, deram o tom do noticiário naqueles dias:

Filha de pais autoritários, antes da maioridade a Unicamp vai se emancipar. Em outras palavras: ela vai transformar-se na Universidade mais aberta do País, livre das estruturas de poder nos moldes das velhas universidades brasileiras.3

Todos sabiam que a consulta tinha caráter apenas indicativo, não excluindo a prerrogativa do Conselho de elaborar a lista sêxtupla final e tampouco negando ao governador o direito de escolher, da lista, o nome que melhor lhe conviesse. O discurso liberalizante que matizava o processo, no entanto, parecia antecipar a “doença do diretismo” que já ameaçava, em escala nacional, a sucessão do general João Figueiredo na presidência da República. Em São Paulo, o governador Maluf estava longe de ver com bons olhos a experiência dos chamados democráticos da Unicamp, seja porque a idéia lhe fosse antipática (ele fora escolhido indiretamente), seja pela raiva surda que alimentava contra o meio acadêmico em geral e, acreditava-se, contra a Unicamp em particular. Seis meses antes, a comunidade interna interpretara como um escárnio a atualização simbólica em 1 cruzeiro do orçamento para o ano seguinte, obrigando a universidade a cortes severos nas despesas de custeio e à protelação de pagamentos de serviços essenciais como água e luz. Professores e alunos do Departamento de Engenharia Agrícola estavam em greve porque não havia dinheiro para reformar as instalações que abrigavam seus laboratórios e salas de aula, ameaçadas de desabamento. Tudo isto deu vazas a uma anedota cruel e entretanto verdadeira. Plínio, no afã de agradar o governador para obter dele uma suplementação de verbas, presenteou-o com um litro de uísque de milho produzido num dos laboratórios da Faculdade de Engenharia de Alimentos. Maluf detestou o uísque. A partir desse dia, não perdia a oportunidade de fazer pilhéria a respeito: “Vejam”, dizia a seus auxiliares, “é nisto que a universidade pública gasta o dinheiro público”. E desse modo justificava as torneiras fechadas para a Unicamp.

Foi nesse clima de incertezas que as entidades de classe marcaram a consulta eleitoral interna para os dias 20, 21 e 22 de outubro de 1980. Já na primeira semana de inscrição apresentaram-se 17 candidatos, entre os quais Prates, Chaves, Franchi e, surpreendendo a todos, Paulo Freire, logo transformado em símbolo moral do movimento de contestação. O grupo dos candidatos chamados “progressistas” contava ainda com o filósofo Antonio Muniz de Rezende, o físico Carlos Argüello e os engenheiros de eletrônica José Ellis Ripper, Hermano Tavares e Yaro Burian. Seis outros postulantes eram considerados conservadores: o engenheiro civil Morency Arouca, o físico Rogério Cerqueira Leite, o cirurgião-dentista Antonio Carlos Neder, o ginecologista José Aristodemo Pinotti e os engenheiros de eletrônica Atílio José Giarola e Hélio Drago Romano. O economista e advogado Jorge Miglioli e o engenheiro agrônomo Roberto Moretti eram tidos como “independentes”.

Embora não houvesse indício de que a lista de preferências da comunidade seria levada em conta, e que dificilmente a comunidade emplacaria qualquer de seus candidatos, os debates foram acalorados. No mínimo, visava-se o desgaste da reitoria e do governo. Em setembro, Plínio passou a temer que, sem maioria no Conselho, se visse obrigado a levar ao palácio uma lista sêxtupla contrária aos interesses de Maluf e dele mesmo. Urdiu-se então na entourage do reitor um plano para recuperar o controle do órgão de deliberação máximo da universidade. Para começar, cuidou-se de protelar o reconhecimento do DCE junto ao Ministério da Educação, processo já em curso, evitando assim o aumento de sua representação no Conselho. Um mês mais tarde, Maluf foi convencido a substituir os seis representantes do governo no órgão, considerados brandos demais e até benévolos para com a oposição, por gente mais afinada com a situação. Assim foi feito. Entre os novos conselheiros, que Cerqueira Leite logo apelidou de “bando da lua”, constavam o reitor da Unesp Armando Otávio Ramos, o presidente do Conselho Estadual da Educação Moacyr Expedito Marret e o próprio secretário estadual da Educação, Luiz Ferreira Martins.4 A troca foi estratégica para que a reitoria recuperasse o domínio sobre o processo sucessório interno, já que os conselheiros nomeados representavam 20% dos eleitores que votavam a lista oficial de reitoráveis. O que à primeira vista parecia não ter maior importância, mudava de figura quando se observava o talhe conservador dos substitutos. Uma nota de Paulo Renato Souza, presidente da Adunicamp, chamava a atenção para o fato:

Saliente-se que se trata das mesmas pessoas que, depois de questionados os aspectos jurídicos [da legalidade do processo de democratização] vão julgar a causa no CEE. (...) Tememos em primeiro plano que, por uma questão de interpretação de leis e regulamentos, os novos conselheiros aleguem que o processo de democratização da Unicamp seja ilegal, considerando o aumento de representantes estudantis no Conselho Diretor e, finalmente, que na formulação da lista devam constar apenas nomes de professores titulares concursados.

Maurício Prates, diretor da Faculdade de Engenharia de Campinas: liderança natural entre os chamados ‘progressistas’Este último aspecto vinha tirando o sono da maioria dos candidatos, pois entre os 17 inscritos somente Morency Arouca, Antonio Carlos Neder e José Aristodemo Pinotti preenchiam o requisito da titularidade. Essa questão seria realmente levantada pela reitoria uma semana depois, com o apoio tático do CEE, para dizimar as pretensões da oposição, mas por ora ainda havia tempo para uma ação de opereta, magistralmente aplicada no começo de outubro, a duas semanas da propalada consulta interna.

No dia 8 de outubro o campus foi surpreendido com a informação de que o Jornal do Brasil trazia em seu primeiro caderno uma notícia espantosa. Título: “Candidatos a reitor da Unicamp são membros da seita Moon”. De fato, no início da década de 80 o coreano Sun Myung Moon, autoproclamado o terceiro filho de Deus, ao lado de Abraão e de Cristo, vinha arregimentando seus primeiros adeptos no Brasil, mas não era plausível imaginar que entre esses houvesse professores da Unicamp, ainda mais candidatos ao cargo máximo da instituição. Quando finalmente se conseguiu pôr as mãos num exemplar do jornal carioca, que à época chegava a Campinas por volta das duas da tarde, num ônibus da Viação Cometa, soube-se que os três “adeptos” unicampianos do reverendo Moon eram ninguém menos que três protagonistas do “processo de democratização” da universidade: Prates, Chaves e o diretor do Instituto de Artes, Yaro Burian. A reportagem do Jornal do Brasil, assinada por José Nêumanne Pinto, seu correspondente em São Paulo, relatava como a International Cultural Foundation, uma organização financiada pela seita nos Estados Unidos, havia atraído um grupo de acadêmicos da Unicamp para sua reunião anual, a International Conference on the Unit of the Sciences. Sendo a ICF o braço acadêmico da seita, cabia-lhe granjear a simpatia, senão o apoio, de intelectuais do mundo universitário para seus eventos de natureza científica e filosófica, ou o que fosse. Com efeito, o ICF conseguira atrair para seus quadros algumas celebridades da ciência mundial como Eugene Wigner, Nobel de Física de 1963, e o Nobel de Medicina do mesmo ano, o neurofisiologista sir John Carew Eccles. Este último sentava-se inclusive no conselho diretivo da entidade. Chaves fora indicado pessoalmente pelo orientador de seu doutorado na Universidade de Pittsburg, William Warren Bartley III, um antigo colaborador do filósofo britânico Karl Popper. Além de viajar de graça na primeira classe, os convivas do reverendo Moon eram tratados a pão-de-ló durante toda a conferência. Rubem Alves, um dos que admitem ter comparecido à reunião de San Francisco, recordou o fausto do hotel cinco estrelas em que foi alojado, onde o café da manhã era servido em salvas de prata e havia apresentações de balé coreano exclusivamente para os congressistas.

Embora a opinião geral, no campus, fosse de que a reitoria havia manobrado para difamar os três candidatos, o fato é que no mesmo dia eles convocaram a imprensa para tentar minimizar os efeitos da reportagem ou, quem sabe, neutralizar seu contéudo. O tom da imprensa local foi de apoio aos candidatos e de repúdio à reitoria, como dá a entender o Correio Popular do dia seguinte:

... a política de bastidores [na Unicamp] chegou a seu mais baixo nível de manobras. (...) Os três professores, conhecidos por adotarem posições liberais, confirmam a participação nos congressos científicos, mas rebatem: “Os congressos são estritamente científicos e desvinculados de qualquer sentido religioso”. (...) Não endossam qualquer posição dos financiadores. Pelo contrário, discordam totalmente deles.

A semente da discórdia, entretanto, estava semeada no campo de liberais e conservadores. Nessa entrevista, os difamados acusaram um dos candidatos – Cerqueira Leite – de haver perpetrado a infâmia, sem desconfiar que fora Zuhair Warwar, o diretor de administração, quem passara a informação a Nêumanne.5 Depois de acusar Cerqueira de possuir “um ego exacerbado e sensível”, concluíram:

Acusar-nos de simpatizar com a seita Moon apenas por termos participado de congressos científicos financiados por fundações do reverendo é a mesma coisa que acusar Rogério Cerqueira Leite de defender as multinacionais pelo fato de ele ter trabalhado na Bell Telephone Company por muitos anos.

Embora viessem a desculpar-se mais tarde com Cerqueira, o certo é que a cizânia já havia contaminado o trigal. O físico deplorou o fato num debate entre os reitoráveis indagando a quem servia “toda essa discussão insólita, essa lavagem de roupa suja”.

— Quero deixar claro que há uma luta pelo poder aqui na Universidade. E, dentro desse cenário, alguma outra facção está se beneficiando da confusão. Alguém, que eu não sei quem é, saiu-se bem, fazendo com que as acusações fossem atribuídas a mim.

Dias depois a Folha de S. Paulo, jornal do qual Cerqueira compunha o conselho, insere um comentário que procura contextualizar a luta que se tratava no interior da Unicamp:

— Mais uma vez – concluía o artigo – como determina a tradição histórica, a Universidade reflete em seu interior as comoções que perturbam a comunidade em que está inserida. A mesma luta contra forças retrógradas que hoje estrutura a vida política do País repete-se no interior da Universidade. E se a abertura vier a se concretizar no Brasil, também na Universidade não poderá deixar de se impor.6

Neste ínterim, influenciado pelo grupo que orbitava a seu redor – sobretudo o coordenador geral Paulo Gomes Romeo, o diretor de administração Zuhair Warwar e o procurador-chefe Pérsio Furquim Rebouças — Plínio foi levado a crer que o veneno aplicado na lavoura acadêmica não fora ainda suficiente para matar a ‘praga diretista’ nela entranhada. Podia ser que a recomposição do Conselho, limitada até ali à troca dos seis representantes do governo, não fosse ainda garantia de uma lista que contentasse o governador e assegurasse a linha de continuidade. Era preciso pôr em debate, e depressa, o tema antecipado por Paulo Renato em seu profético boletim: de um momento para outro a reitoria poderia passar a exigir a titularidade por concurso para os diretores de unidades, que eram doze àquela altura; desses, oito não a possuíam — os mesmos que, desde há algum tempo, vinham oferecendo a mais tenaz oposição à reitoria.

No começo de outubro, o reitor introduziu a melindrosa discussão no Conselho. A oposição estava preparada para interpor um argumento considerado inquestionável: o de que, se ao longo de toda a história da Unicamp diretores haviam sido nomeados sucessivamente sem que lhes fosse exigida a titularidade, não fazia sentido passar a exigi-la agora sem que qualquer reforma estatutária houvesse sido esboçada ou sequer proposta. A polêmica que se armou serviu de pretexto para que o vice-reitor, também prevenido, sugerisse encaminhar ao Conselho Estadual de Educação, de que ele próprio era membro, uma consulta formal a respeito. O encaminhamento foi autorizado e a oposição só compreendeu tardiamente que havia sido vítima de uma cilada. Tinham porventura se esquecido que, além de Romeo, três dos novos representantes do governo também integravam o CEE, um dos quais era seu presidente. Alguns dias depois o CEE reuniu-se e emitiu um parecer de dez páginas cuja conclusão era a seguinte: a situação de oito dos onze diretores da Unicamp (o décimo-segundo era o coordenador do Instituto de Artes, que ainda estava em implantação) contrariava o disposto no artigo 74 do estatuto interno, que exigiria titularidade por concurso para o exercício do cargo, devendo portanto o reitor fazer cessar o efeito de suas designações.

Julgando-se amparado por uma norma interpretada por sábios, contra a qual ninguém se animaria a contrapor-se – assim talvez pensasse –, Plínio foi adiante e, no dia 17, um sábado, fez publicar no Diário Oficial do Estado a portaria mais virulenta da história da Unicamp. Num texto burocrático e seco, exonerava de seus cargos oito diretores designados por Zeferino ou por ele próprio, cinco dos quais tinham a pretensão de sentar-se futuramente na cadeira do reitor.7 Para substituí-los, a mesma portaria nomeava igual número de professores titulares concursados, dos quais seis nunca haviam pertencido aos quadros da Unicamp. Um deles era o próprio secretário da Educação Luiz Ferreira Martins, ex-reitor das Unesp e homem de confiança de Maluf. Eram acadêmicos efetivamente titulados por concurso, mas a comunidade interna, chocada com a violência da medida, tomou como um escárnio a mais o fato de que o reitor não tivesse levado em conta, nas designações para a maioria das unidades, sequer a área de formação dos interventores. Assim, para a Faculdade de Educação foi designado um cirurgião-dentista, para as Ciências Humanas um biólogo, um arquiteto para a Engenharia (Elétrica, Mecânica e Química), um agrônomo para a Matemática e um outro dentista para a Química.8

Paulo Renato Souza, que depois se tornaria reitor, era presidente da Associação dos Docentes no período da crise: boletins de alerta à comunidadeAlém das oito exonerações, a portaria trazia uma outra bomba em seu bojo: demitia sumariamente 14 funcionários que integravam a diretoria da Associação de Servidores da universidade, o embrião do atual Sindicato dos Trabalhadores da Unicamp. Nas duas semanas anteriores, a Associação vinha tentando paralisar a universidade por razões salariais e, no dia 14, chegara ao ponto de ensaiar uma invasão da reitoria com um pelotão de 300 funcionários.9 A publicação da portaria, consumada num sábado, apanhou todo mundo de surpresa. A diretora do Instituto de Matemática, Ayda Ignez Arruda, dava um curso na Universidade de Varsóvia quando recebeu um telefonema da família avisando-a de sua exoneração do cargo. Aécio Pereira Chagas, diretor do Instituto de Química, tinha acabado de abrir um simpósio sobre fotoquímica na biblioteca central do campus quando foi informado de sua destituição por pessoas que tinham lido o Diário Oficial. Maurício Prates, de visita ao pai doente em Campos, no interior fluminense, folheava a edição dominical de O Globo quando deu com seu nome numa nota sobre “a crise na Universidade de Campinas”. Eduardo Chaves preparava uma peixada na casa de praia de Argüello, nas imediações de Ubatuba, litoral paulista, e só teve tempo de limpar as mãos num pano de prato quando a caseira veio avisá-lo que havia um senhor muito aflito ao telefone com uma notícia urgente para lhe dar. Era Carlos Franchi. Acabara de ser avisado pelo próprio reitor, que entretanto, estressado, caíra doente.

No dia anterior, minutos antes da portaria ser despachada, de carro, para as oficinas da Imprensa Oficial, Plínio fora admoestado por um de seus colaboradores mais próximos, o economista Ferdinando Figueiredo, então ocupando a Coordenadoria dos Institutos:

— Duvido que o senhor consiga manter essa decisão. Desista enquanto é tempo.
Paulo Gomes Romeo, que tinha responsabilidade direta no assunto e estava ao lado do reitor, chamou Ferdinando de medroso. Em meio ao bate-boca que se armou, Plínio, receoso de que prosperasse uma crise dentro da crise, chamou seu motorista e despachou imediatamente o documento para a capital, onde entrou no prelo aquela mesma noite.



1 Carta publicada na seção de leitores de O Estado de S. Paulo em 29/10/1981.

2 Compareciam a essas reuniões os seguintes diretores: Aécio Pereira Chagas, do Instituto de Química; André Villalobos, do Instituto de Filosofia de Ciências Humanas; Ayda Ignez Arruda, do Instituto de Matemática; Carlos Argüello, do Instituto de Física; Carlos Franchi, do Instituto de Estudos da Linguagem; Eduardo Chaves, da Faculdade de Educação; Maurício Prates, da Faculdade de Engenharia; Yaro Burian, do Instituto de Artes.

3 Jornal de Hoje, 14 de junho de 1981.

4 Os demais eram o diretor da Faculdade de Filosofia da USP, Erwin Theodor Rosenthal, o conselheiro do CEE Eurípedes Malavolta e a ex-professora da USP Maria de Lourdes Marioto Haidar. Os conselheiros dispensados eram a delegada de ensino de Campinas Enéa Caldato Rafaelli, o médico Joaquim Paula Barreto Fonseca, o ex-reitor da UFSCAR Heitor Gurgulino de Souza e os professores Fausto Coral, Paulino da Costa Eduardo e Maurides Ribeiro.

5 Depoimento de José Nêumanne Pinto ao autor.

6 Folha de S. Paulo, 13/10/1981.

7 Foram os seguintes os diretores exonerados pela portaria de 17/10/1981: Aécio Pereira Chagas, do Instituto de Química; André Villalobos, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas; Ayda Ignez Arruda, do Instituto de Matemática, Estatística e Ciência da Computação; Carlos Argüello, do Instituto de Física; Carlos Franchi, do Instituto de Estudos da Linguagem; Eduardo Chaves, da Faculdade de Educação; Maurício Prates, da Faculdade de Engenharia; e Yaro Burian Júnior, do Instituto de Artes.

8 O lingüista Antonio Soares Amora, da USP, foi designado interventor no Instituto de Estudos da Linguagem; o arquiteto Eduardo Corona, da USP, na Faculdade de Engenharia de Campinas; o agrônomo Frederico Pimentel Gomes, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, no Instituto de Matemática; o físico Shigueo Watanabe, também da USP, no Instituto de Física; o dentista Geraldo Claret de Mello Ayres, da Faculdade de Odontologia de Piracicaba, no Instituto de Química; o cirurgião dentista Eduardo Daruge e o biólogo Paulo de Toledo Artigas, ambos homens de confiança do reitor na Unicamp, deveriam ocupar respectivamente a direção da Faculdade de Educação e do Instituto de Ciências Humanas.

9 Os funcionários demitidos eram os seguintes: Cândida Maria Teixeira, José Walter Martinez, Alaíde Pedro Franco Correa, Elói José da Silva Lima, Jair de Seta, Sérgio Antonio Moscatini Schetini, Denio Rebello Arantes, Reginaldo Bispo Pereira, Wilson Hiroyuki Kawai, Luís Antonio Teixeira Vasconcelos, Waldemar Pantarotti Filho, Ozair Crispim da Silva e o presidente da Associação de Servidores da Unicamp, Clóvis Antonio Garcia.


Continua na próxima edição.

 

SALA DE IMPRENSA - © 1994-2005 Universidade Estadual de Campinas / Assessoria de Imprensa
E-mail: imprensa@unicamp.br - Cidade Universitária "Zeferino Vaz" Barão Geraldo - Campinas - SP