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Os ‘textos-ninja’ de Leminski

Ensaios e anseios crípticos, publicado pela Editora da Unicamp, reúne textos de Paulo Leminski (1944-1989) sobre poesia, literatura, arte e cultura. Dividido em duas partes, o livro reproduz, em cada uma delas, de maneira integral e na ordem originalmente estabelecida, material de outros dois livros, editados em anos passados pela Criar Edições, de Curitiba: Anseios crípticos (1986) e Anseios crípticos 2 (2001).

Além destes dois volumes anteriores, vale registrar a existência de um terceiro, justamente intitulado Ensaios e anseios crípticos, organizado por Alice Ruiz e Áurea Leminski e publicado pela Pólo Editorial do Paraná, em 1997. A despeito do nome em comum, não terá sido considerado na elaboração da presente edição. Junto a uma seleta de textos de Anseios crípticos (o primeiro, de 1986), o livro trazia outros oito, sete deles não republicados em Anseios crípticos 2, nem neste Ensaios e anseios crípticos de 2011. Há ainda um bom material de Paulo Leminski (seja crítico, seja criativo) disperso em periódicos e publicações de maior ou menor difusão. Um desafio editorial para o futuro será, precisamente, o levantamento e a edição dessa produção.

Mas o volume que ora se publica cumpre bem a função de tornar acessível o conteúdo de livros de circulação restrita e já esgotados, além de chamar novamente a atenção para uma faceta importante da produção do escritor curitibano: a do ensaísta, crítico e polemista.

Somam-se ao todo 60 textos (37 em Anseios crípticos, 23 em Anseios crípticos 2), produzidos entre a segunda metade da década de 1970 e meados da década seguinte. Muitos foram publicados em periódicos locais (Gazeta do Povo, Correio de Notícias) ou de circulação nacional (Folha de S. Paulo, Leia Livros, Veja). Alguns acompanhavam as traduções do escritor saídas a público pela editora Brasiliense. Outros se encontravam ainda inéditos quando das primeiras edições em livro.

O trocadilho do título tem sabor bem leminskiano. Seus “ensaios” são “anseios” de decifração. Pelo esforço “crítico” pretende lançar luz sobre o que se encontra em estado “críptico”. O subtítulo do primeiro volume editado pela Criar, aliás, dizia: “Anseios Teóricos: peripécias de um investigador do sentido no torvelinho das formas e das ideias.”

Porém, ao contrário do que o adjetivo “críptico” também possa sugerir, sua prosa, de maneira geral, não guarda segredos. É clara e comunicativa, adequada aos meios em que circulou originalmente. Predominam os períodos e parágrafos curtos, de caráter assertivo, com formulações de impacto polêmico, cheias de insights, atravessadas de coloquialidade e humor. Para melhor definir o caráter combativo dos textos, o escritor gostava de chamá-los “textos-ninja”.

Sua escrita visa o leitor informado, interessado nas coisas da cultura, mas não necessariamente acadêmico, muito menos erudito. Por vezes mobiliza alguns conceitos teóricos (da Psicanálise de Freud, da Semiótica de Peirce, do Estruturalismo, da Teoria da Informação, da Escola de Frankfurt), mas nada que impeça ao não-iniciado acompanhar seus argumentos. Leminski é homem de leitura variada e grande poder de síntese. Num virar de páginas, vai da antiguidade clássica à cultura de massas contemporânea. Trata tudo com autoconfiança e calibrado didatismo. Não duvida do que sabe e sabe que seduz o seu leitor.

Alguns ensaios revelam mais amplo escopo, e alguns temas muito caros ao escritor se fazem presentes. Em “Teses, Tesões”, por exemplo, acompanha as conjugações entre crítica e poesia na produção poética brasileira desde o Modernismo, e conclui com formulação que serve para entender os seus próprios dilemas crítico-criativos: “Aqui dentro, duas obsessões me perseguem (que eu saiba): a fixação doentia na ideia de inovação e a (não menos doentia) angústia quanto à comunicação, como se percebe logo, duas tendências irreconciliáveis.”

A preocupação com o “novo”, disseminada em tantos textos, é central no ensaio “Tudo, de Novo”: “(...) o novo é a modalidade que o belo escolheu para aparecer no século XX”. A partir de tal idéia, procura entender a produção dos poetas da década de 1970 e as tantas tensões com a produção das vanguardas, cujo magistério alicerça muito do pensamento de Leminski e para as quais “inovação” é conceito fundamental: “(...) tem que ser novo? Novidade é tudo? Ou há outros valores a considerar na produção desses indispensáveis bens supérfluos, que chamamos ‘obras de arte’?”. Noutro ensaio, “O Boom da Poesia Fácil”, volta a discutir a produção literária daquela geração, explicitando o seu legado: “O alternativo poetar dos anos 1970 não queria nada. / Só queria ser. A palavra para isso era ‘curtição’, a pura fruição da experiência imediata, sem maiores pretensões.”

Em outros ensaios, Leminski discute as relações entre arte (poesia), sociedade e mercado, como em “Arte Inútil, Arte Livre?” e “Estado, Mercado, Quem Manda na Arte?”. Na conclusão deste último, assevera: “Entre o dirigismo ideológico do Estado e a sutil dominação do Mercado, não sobra um lugar onde a arte possa ser ‘livre’. / A não ser nos pequenos gestos kamikazes, nas insignificâncias invisíveis, nas inovações formais realmente radicais e inovadoras.” É a deixa para introduzir então o conceito de poesia como “inutensílio”, latente nestes textos, e que retorna com força justamente no ensaio “Inutensílio”: “Coisas inúteis (ou ‘in-úteis’) são a própria finalidade da vida. / Vivemos num mundo contra a vida. A verdadeira vida. Que é feita de júbilo, liberdade e fulgor animal. / (...) A poesia é o princípio do prazer no uso da linguagem. E os poderes deste mundo não suportam o prazer. (...)”

Outro tópico que surge com frequência, e no qual a “alegria” e o “prazer” têm papel importante, é a contraposição cultural que o escritor faz entre o Norte e o Sul do país, como em “Alegria da Senzala, Tristeza das Missões”. Num sintético apanhado histórico-antropológico-social, opõe a formação do Sul com a do Norte/Nordeste, para assinalar a franca desvantagem do primeiro: “Essa destruição primordial do substrato cultural popular explica a pequena produtividade cultural do Sul, em comparação com o Brasil Norte, rico de formas musicais, poéticas, coreográficas e até agônicas”. No Sul, a partir da imigração de trabalhadores europeus e asiáticos, teria passado a imperar a “mística do trabalho”, com a repressão da sexualidade e o imperativo da poupança, em tudo contrários ao esbanjamento generoso implicado no gesto criativo. Tais idéias serão centrais em dois ensaios dedicados a interpretar, de modo muito incisivo, a sua própria cidade: “Culturitiba” e “Sem Sexo, Neca de Criação”. Neles, fere firme a auto-estima de seus conterrâneos: “Freudianamente, Curitiba é a retenção das fezes. Nosso pecado é a avareza. Ora, criar é esbanjar. Só por excessos se cria.”

Além dos ensaios mais abrangentes, encontram-se outros, de diferente fatura e extensão. Por exemplo, algumas resenhas, em que acompanha a dinâmica do mercado editorial, como “Poeta Roqueiro”, sobre a tradução de Ledo Ivo para Uma temporada no inferno, de Arthur Rimbaud; “Tímidos e Recatados”, sobre edição de volume com poesia de Bertold Brecht, traduzida por Paulo César Souza; ou ainda sobre a publicação de Galáxias, de Haroldo de Campos.

Outros são apresentações de autores e obras que Leminski traduziu, publicados originalmente como prefácios ou posfácios dos volumes em questão: “Double ‘John’ Fantasy”, sobre Pergunte ao pó, de John Fante; “Beckett, o Apocalipse e Depois”, sobre Malone morre de Samuel Beckett; “Latim com Gosto de Vinho Tinto”, sobre Satyricon, de Petrônio; “Um Texto Bastardo”, sobre Giacomo Joyce, de James Joyce; “Taiyo To Tetsu – entre o gesto e o texto”, sobre Sol e aço de Yukio Mishima; “Lennon Rindo”, sobre os dois livros de prosa de John Lennon reunidos no volume Um atrapalho no trabalho; entre outros.

Há ainda poemas de caráter metalinguístico, como os que abrem cada uma das partes do livro: “Anseios Teóricos” (que reproduz o poema “Invernáculo”) e “M, de Memória”. Poemas curtos do mesmo Leminski surgem, aliás, em vários ensaios, às vezes em epígrafe, às vezes no corpo do texto, como ilustração de algum tópico tratado.

Os textos reunidos em Ensaios e anseios crípticos dão uma boa idéia dos principais assuntos que interessavam a Paulo Leminski naqueles anos decisivos em que deixava os limites locais de sua cidade para se tornar um intelectual de expressão nacional. Testemunham a passagem do escritor experimental para o escritor de inserção profissional e de maior apelo, e os dilemas aí implicados. Ajudam a entender questões centrais de sua própria obra criativa. Revelam a grande vitalidade do seu pensamento e de sua escrita. Esta nova edição se soma, enfim, ao esforço de repor em circulação a obra de um intelectual múltiplo e singular, que carece de republicações à altura de sua importância.

* Marcelo Sandmann é professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR)

Serviço
Obra: Ensaios e anseios crípticos
Autor: Paulo Leminski
Páginas: 336
Preço: R$ 42,00
Editora da Unicamp




 
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