| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 335 - 28 de agosto a 10 de setembro de 2006
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Estudo mostra que reforma agrária e investimento
maciço em educação podem ser complementares

Tese revela peso da
baixa escolaridade
na desigualdade de
renda no meio rural

O economista e professor universitário Marlon Gomes Ney: olhar sobre os setores de serviço e industrial no meio rural também mostra disparidades (Foto: Antoninho Perri/Divulgação)Tornou-se senso comum afirmar que a educação é a variável mais importante na determinação da desigualdade de renda em todos os setores da sociedade brasileira. O diagnóstico está correto. Tão comum quanto é atribuir à desigualdade fundiária a causa da concentração de renda no meio rural. Faz sentido. Dados do PNAD mostram que nada menos do que 37,5% das áreas agrícolas do país estão nas mãos de apenas 1% de proprietários – entre empresas e produtores. Levando em conta apenas a agricultura, o capital físico pesa mais do que a educação no universo das disparidades. Para corrigir essa distorção, a receita soa como um mantra: reforma agrária. Ocorre que o meio rural não é constituído apenas de atividades agrícolas. Embora os setores industrial e de serviços sejam ignorados pelos estudos que analisam exclusivamente o setor primário, eles vêm aumentando sua participação na geração de emprego e renda no campo. O economista e professor universitário Marlon Gomes Ney decidiu trilhar um caminho mais espinhoso. Esquadrinhou as atividades dos três setores – agrícola, industrial e de serviços – e constatou que, no conjunto, a educação, mais que o capital físico, é o principal gerador da desigualdade de renda no meio rural. O estudo está na tese de doutorado “Educação e desigualdade de renda no meio rural brasileiro”, orientada pelo professor Rodolfo Hoffmann, do Instituto de Economia (IE) da Unicamp.

Para desenvolver seu trabalho, Ney utilizou equações de rendimentos ajustadas para o setor primário e analisou regressões de renda para a população rural ocupada na indústria e nos serviços. A base de dados foi o Censo Demográfico de 2000 (IBGE). Trabalhados, traduzidos e colocados no papel, os números e as equações revelam o tamanho da distorção. Ney não despreza outros fatores que desembocam na desigualdade de renda: preconceito racial, concentração de renda, questões de gênero, entre outras. O economista é, também, um defensor da reforma agrária. Entretanto, ele próprio faz uma indagação que, de certa forma, permeia seu trabalho: de que adianta distribuir terras, se seus futuros proprietários não têm escolaridade suficiente para administrá-las? Ney acredita que o investimento maciço em educação é fundamental para reverter esse quadro.

Desigualdade – Os números apresentados por Ney em seu estudo ajudam a entender a desigualdade no campo. De acordo com dados de 2000, se analisada a escolaridade média dos trabalhadores dos três setores do meio rural oficial, constata-se a dimensão da defasagem escolar. Nada menos do que 48,4% da massa de trabalhadores tem escolaridade menor ou igual a três anos de estudo, sendo que 20,1% sequer concluíram a 1a série do ensino fundamental. Outros 21,8% conseguiram apenas concluir o ensino primário (4a série). No outro extremo da tabela, o percentual daqueles que chegaram a concluir o nível médio está em 7,6%.

Não é menos dramática a situação dos trabalhadores agrícolas do meio rural oficial. Tabela formulada pelo autor da pesquisa mostra que, somados aqueles que têm menos de um ano de estudo e os que cursaram até três anos de escola, o percentual chega a 58,5%. Os que têm apenas o primário completo são 22,8%, e aqueles que têm de cinco a sete anos de estudo ficam em 10,7%. Na tabela, a taxa de escolaridade vai caindo na medida em que os anos de estudo avançam – a tal ponto que, no extremo do quadro, o percentual daqueles que têm o ensino médio concluído não chega a 3%.

Entretanto, a pedra de toque do estudo é o olhar de Ney sobre as atividades não-agrícolas do meio rural. A tese mostra que o nível de escolaridade na indústria e no setor de serviços é significativamente maior do que nas atividades agrícolas. Para efeito de comparação, mesmo alto, o percentual de trabalhadores ocupados no setor rural não-agrícola que têm menos de um ano de estudo é de 10,6% (contra 26,1% no setor agrícola). Na outra ponta da tabela, mais um número chama atenção: o percentual de trabalhadores não-agrícolas com o ensino médio completo é de 15,7%, valor substancialmente maior do que os 2,6% encontrados na agricultura. O efeito dessas diferenças reflete, de acordo com os números, diretamente no rendimento médio dos trabalhadores agrícolas e não-agrícolas nas áreas oficialmente rurais. Enquanto na primeira categoria, os ganhos mensais médios ficam em R$ 270, no setor não-agrícola chegam a R$ 344. Ney alerta que os dados são de 2000, estando portanto sujeitos a correção monetária do período.

Essa defasagem, no entanto, não interfere no resultado final do trabalho. O economista teve o cuidado de observar as (grandes) diferenças regionais. “É muito importante isolar o efeito das variáveis. Diminuir a desigualdade entre as regiões contribuiria muito para atenuar as disparidades de renda em todo o país”, diz Ney, reconhecendo que a tarefa é difícil em razão da concentração de renda no estado de São Paulo e em outras regiões mais ricas do Sudeste e do Sul. O autor da tese também trabalhou em cima de outros conceitos do que seja área rural, por si só objeto de controvérsia entre os estudiosos. Incluiu, por exemplo, no seu campo de pesquisa, sedes de municípios e de distritos que, embora apresentem baixíssimo contingente populacional, são oficialmente classificadas como áreas urbanas no país. “Muitas dessas sedes não têm mais do que dois mil habitantes. Resolvi classificá-las como área rural”, revela.

“Acreditamos que uma das contribuições de nossa pesquisa é chamar a atenção para o fato de que uma política de democratização do acesso ao ensino é condição fundamental para o desenvolvimento eqüitativo do meio rural, mesmo sendo a concentração fundiária brasileira o principal determinante da desigualdade de renda agrícola. Sem essa política, a expansão das atividades rurais não-agrícolas pode vir acompanhada de um aumento da desigualdade, o que atenuaria seus efeitos positivos na redução da pobreza”, escreve Ney em sua tese defendida no Instituto de Economia no final de junho.

Oportunidades – O pesquisador fornece mais números para fundamentar a afirmação acima. Lembra, por exemplo, que o efeito da educação na renda das pessoas torna-se bem maior a partir de 10 anos de estudo. Antes disso, ou seja, até os nove anos de escolaridade, cada ano de estudo contribui para que a pessoa tenha, em média, uma renda 7,3% maior ao ano. A taxa de retorno cresce abruptamente quando são atingidos os níveis superiores de escolaridade, chegando a 19,1% com dez anos de estudo ou mais. O problema, porém, como lembra Ney, é que os filhos das famílias rurais mais pobres dificilmente conseguem chegar aos níveis mais altos de ensino.

Para o pesquisador, a deficiência na oferta do ensino rural já é alta logo nos primeiros anos de escolaridade. “Um dos graves problemas da educação rural é que boa parte das escolas que ministram o ensino de 1a a 4a série são multisseriadas, ou seja, o professor é obrigado a ministrar o ensino de várias séries em uma única classe”. De acordo com os dados do governo federal, no meio rural nada menos do que 64% dos estabelecimentos de ensino são multisseriados, sendo eles responsáveis por 34% das matrículas.

Outros fatores responsáveis pela evasão é a baixa oferta do ensino a partir da 5ª série e a deficiência no uso de políticas públicas que incentivem o aumento da demanda por educação, especialmente entre as famílias mais pobres do campo. Ney defende que a garantia de uma renda adicional para as famílias pobres com filhos matriculados e freqüentando regularmente as salas de aula, como o programa bolsa-família, pode incentivar os pais a mantê-los por mais tempo estudando. Mas salienta que é preciso fiscalizar se a criança cuja mãe recebe a bolsa está de fato freqüentando à escola. “Os pais acabam procurando a escola até para aumentar a renda familiar”. Na falta de incentivo, os pais fazem com que os filhos trabalhem na lavoura ou em outras atividades. “Além de políticas voltadas para esse fim, o poder público deve oferecer o transporte público gratuito. Muitas crianças deixam de estudar porque têm de percorrer longas distâncias”.

Esses problemas, aponta Ney em seu estudo, só agravam uma distorção secular do sistema educacional brasileiro, quando o assunto é área rural: o acesso aos níveis mais altos de ensino é muito restrito às classes mais favorecidas. “A evasão escolar dos filhos de família de baixa renda é alta logo nos primeiros anos de escolaridade e mantém-se elevada durante todo o ensino fundamental. Muitos ainda chegam à maioridade sem sequer ter completado o primário”, escreve Ney na tese. A falta de políticas adequadas colabora também para manter o abismo entre as taxas de escolaridade nos meios urbano e rural. A média de escolaridade na zona rural oficial da população com 25 anos ou mais de idade é de três anos de estudo, enquanto nas cidades é de 6,9 anos, ou seja, mais do que dobro.

Abastados – Por outro lado, os dados mostram que até a população adulta relativamente rica do meio rural não têm alta escolaridade, muito embora seus filhos hoje estejam freqüentando por muito mais tempo o banco escolar, conforme observa Ney. Levantamento feito com 20% dos mais abastados do campo com idade maior ou igual a 25 anos revela que 21,3% deles têm escolaridade inferior a 1 ano, 23,4% têm de um a três anos de estudo e 25,5% concluíram apenas a 4a série do ensino fundamental. A soma desses percentuais – 70,02% - é reveladora de uma outra distorção secular: a terra como instrumento de dominação. “Não me consta que os coronéis, por exemplo, tenham um alto nível de escolaridade...”, ironiza o economista. “É a apropriação da terra pelos mais ricos aliada a um baixíssimo nível de escolaridade entre os mais pobres que garante a forma de dominação de uma classe sobre a outra, tal como vemos no passado e ainda hoje no meio rural”.

Os dados revelam que, entre a população adulta mais pobre, definida como os 40% menos abastados no meio rural, 38,6% têm menos de 1 ano de estudo, 35,3% o antigo primário incompleto (1a a 3a série) e 16,1% o primário completo (4a série). Portanto, 90% dessas pessoas sequer concluíram o primeiro ano do antigo ginasial (5a série).

Na avaliação de Ney, a baixíssima escolaridade da população mais pobre restringe sua capacidade de defender seus direitos e de participar de forma mais ativa na vida social e política do país, o que poderia gerar mudanças institucionais importantes a favor da eqüidade. Por outro lado, sua baixa escolaridade pode comprometer o sucesso de uma política de reforma agrária. “Ainda que o Estado consiga provocar uma mudança brusca na estrutura fundiária brasileira distribuindo terra para os mais pobres, boa parte dos empreendimentos agrícolas familiares constituídos, ao sofrerem com a escassez de capital humano, possivelmente não alcançaria o nível de produtividade e renda necessário à expansão da produção agrícola. esperdiçaria também oportunidades de aumentar a renda por meio de atividades industriais e de serviços, pois a educação é um determinante significativo da diversificação em atividades não-agrícolas”, pondera o economista.

Como demonstra a pesquisa de Ney, embora a reforma agrária seja de fato condição necessária para a redução da desigualdade de renda no campo, ela não deve ser suficiente. É preciso também democratizar o acesso ao ensino nas áreas rurais para que o país comece a reescrever uma nova história.

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