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| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 333 - 14 a 20 de agosto de 2006
Leia nesta edição
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Artigo: Burocracia e Biodiversidade
Cartas
Geociências e nova era
Origem do mel
Aroma e prevenção de doenças
Muitos mundos
Língua portuguesa
Agualusa e o mundo
Teatro infantil
Painel da semana
Teses
Livro
Destaques do portal
Jabuti
Ajuda de cão-guia
Desfibrilador em estabelecimentos
Prêmio Bunge
 

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A aventura da língua portuguesa sob o olhar de Charlotte, francesa

(Fotos: Antoninho Perri)A lingüista Charlotte Galves nasceu na Borgonha, região francesa célebre por sua produção de vinhos de primeira. Ao ser indagada sobre seu interesse sobre a língua portuguesa, brinca. “O primeiro rei de Portugal [D.Afonso Henriques] é filho de um burgonhês”. A boutade, proferida com um levíssimo sotaque, embute uma trajetória de anos de dedicação à língua portuguesa. Charlotte deixou a terra natal aos 19 anos rumo a Portugal, onde permaneceu por três anos, tempo suficiente para aprender o idioma. De volta à França, testemunhou a chegada de milhares de portugueses, num movimento imigratório que deixaria marcas definitivas em seu país. Consolidou-se aí, na década de 70, o contato da intelectual com o idioma de Camões. Charlotte cursou lingüística e trabalhou como intérprete e tradutora, além de atuar como professora de crianças cujos pais deixaram Portugal em busca de uma vida melhor.

O português não sairia mais da vida da hoje diretora do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. Tanto no campo pessoal – casou-se com um brasileiro –, como na profissional. Charlotte tornou-se especialista no idioma. Suas pesquisas abrangem, entre outros temas e sub-temas, a história do português, a relação da língua falada em Portugal com a usada no Brasil, além da evolução do nosso idioma. Assim que começou a ter contato com as pesquisas que indicavam as semelhanças entre o português falado no Brasil e em países africanos, a docente viu descortinar uma fonte inesgotável – e fascinante – de novas abordagens lingüísticas que transcendiam a lusofonia, muito embora não deixem de integrá-la. As contribuições dos africanos e de seus descendentes – iniciada na escravidão – foram colocadas sob o tapete mas vieram à tona por meio de um fenômeno vivo e mutante, infenso a controles – embora os colonizadores, governantes e escravocratas teimassem em alimentá-los: a fala e, em última análise, a língua.

O resultado desse cruzamento de culturas será o foco do Colóquio “Caminhos da língua portuguesa:África-Brasil”, que ocorrerá na Unicamp entre os próximos 6 e 9 de novembro. O enfoque multidisciplinar será uma das marcas do evento – já estão confirmadas, por exemplo, a presença do historiador Luiz Felipe de Alencastro e do escritor angolano José Eduardo Agualusa (leia entrevista na página 8). O programa definitivo deve ser consolidado no início de setembro, e a chamada de comunicações está aberta até 15 de agosto (http://www.iel.unicamp.br/coloquio/). Na opinião da especialista, o colóquio vai possibilitar a abertura de um leque imenso de possibilidades nos campos da pesquisa e do ensino. Na entrevista que segue, Charlotte analisa as nuances de uma língua falada hoje por cerca de 200 milhões de pessoas e explica as origens das influências exercidas pelas culturas, a começar pela portuguesa.

Jornal da Unicamp – O que o colóquio vai enfocar no campo da lingüística?
Charlotte Galves – No caso da língua, é a questão do contato entre a língua portuguesa e as línguas africanas. Na realidade, a língua portuguesa esteve em contato com duas grandes famílias: a banto e uma outra família da qual faz parte, por exemplo o yorubá. E o que é muito interessante e que certamente esse contato do português com as línguas africanas tem um efeito sobre o desenvolvimento brasileiro – na sua diferença com o português de Portugal –, mas também sobre o português falado na África. Há muita coisa em comum entre o português falado aqui e aquele falado em países como Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe.

“Há muito em comum entre o português falado aqui e aquele falado em Angola, Moçambique, Cabo Verde...”

“A literatura é fundamental. Se não houvesse a obra do Jorge Amado, possivelmente perderíamos muita coisa”

JU – Quais são os pontos coincidentes?
Charlotte – Na pronúncia, por exemplo, muito embora seja um caso complicado, já que Portugal também mudou a sua. O fato de as pronúncias brasileira e africana terem muito em comum podia ser, simplesmente, porque em Portugal houve uma mudança que não ocorreu aqui ou lá na África. Mas, na realidade, é um pouco mais complicado do que isso. Os africanos que falam o português como língua materna usam hoje em dia a pronúncia portuguesa. E os africanos que falam português mas que não fazem parte dessa classe social, digamos, mais próxima da universidade – ou tão escolarizada – falam um português diferente. Possivelmente, era assim no Brasil no século 19.

JU – A chegada da Corte colaborou para isso?
Charlotte – Havia um português falado pela elite, que era muito próximo do português de Portugal, e um português falado pelo povo, que era muito diferente. Na realidade, é justamente esse português falado pelo povo que vai se impor. As elites, com o tempo, vão incorporá-lo. Na África, não houve tempo para isso.

JU – Por quê?
Charlotte – Justamente porque a descolonização é recente, ocorreu há coisa de 30 anos.

JU – De certa forma, então, ocorre um processo semelhante ao verificado no Brasil no século 19?
Charlote – Sim, temos lá as duas vertentes do português. Uma que é bem semelhante ao português europeu – um africano fala como um lisboeta. E a outra que é o português mais popular, que na pronúncia e na sintaxe se aproxima muito do português do Brasil. Uma coisa que se fala muito é a questão da colocação dos pronomes, tida como um dos problemas de gramática normativa. Eles usam, por exemplo, o pronome em primeira posição da oração; a gramática diz que não pode, já que em Portugal não pode... Constata-se isso quando você lê os romances escritos na África, sobretudo nas falas das personagens.

JU – Isto ocorre então na oralidade e na escrita?
Charlote – Na oralidade e em particular na escrita literária, que quer justamente trazer essa fala mais coloquial. Percebe-se isto também nas palavras. No português brasileiro houve muita importação de palavras de origem africana.

JU – Qual seria o papel da literatura?
Charlotte – Ela é fundamental, retrata essa relação muito fortemente. Muitos trabalhos de lingüistas foram baseados em obras literárias. Os escritores têm muita sensibilidade para isso, são muito antenados. Jorge Amado, por exemplo, mostra muita coisa da influência da cultura africana na Bahia. Se não houvesse a obra do Jorge Amado, possivelmente a gente perderia muita coisa.

JU – A cadência também é diferente?
Charlotte – As línguas bantos, em particular, e até aonde eu saiba também o outro grupo de línguas das quais o yorubá faz parte, têm palavras que invariavelmente tem consoantes e vogais intercaladas. Dificilmente você encontrará uma palavra que tenhas várias consoantes, na seqüência. Isso tem a ver com o ritmo da língua. Então, a tendência, na fala, é acrescentar uma vogal. Um exemplo: fala-se adivogado (sic). Na África, ocorre a mesma coisa.

JU – A que pode ser atribuído esse fenônemo?
Charlotte – Possivelmente, trata-se do efeito do contato com as línguas africanas. Os muitos escravos que vieram para o Brasil tiveram que aprender o português. Até porque eles eram muito misturados, numa estratégia que visava coibir a sua organização e, conseqüentemente, possíveis revoltas. E eles aprendiam o português como uma segunda língua, e o pronunciavam como na língua deles.

JU – Por que se deu essa apropriação?
Charlotte –Esse português do século 17, muito diferente do de hoje, foi aprendido por muitos africanos em situações difíceis. Essa língua acabou se tornando o português popular brasileiro. Por um lado, tínhamos os portugueses que vinham para cá – cuja escolarização era toda feita em Portugal – que falavam como portugueses. De outro, havia o grosso da população, que falava o português popular extremamente influenciado pelas línguas africanas.

JU – E o que ocorreu quando os países africanos passaram a ser colonizados?
Charlotte – A grande diferença que ocorreu é que, no Brasil, o português era a língua majoritária. Mesmo no início do século 20, parece que se falavam línguas africanas na Bahia. Mas, hoje em dia, o Brasil é praticamente monolíngue, tirando o caso das línguas indígenas, que hoje é uma questão aberta. Há certamente influência no vocabulário, como, por exemplo, na toponímia. Na pronúncia e na sintaxe, a contribuição indígena é uma questão que vem sendo discutida. Agora, o Brasil, hoje em dia, obviamente fala o português. Já em Moçambique, Angola, Cabo Verde, é diferente. Em Moçambique e Angola, por exemplo, uma boa parte da população não fala português. Outra parte fala o português como a segunda língua.

JU – É muito diferente do Brasil.
Charlotte – Sem dúvida. O peso das línguas africanas hoje em dia ainda existe nesses países. Outro fator interessante é que, nas ilhas em particular, como Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, e também na Guiné-Bissau, se desenvolveu o que os lingüistas chamam de crioulos.

JU – Como são constituídas essas línguas?
Charlotte –Elas têm uma base vocabular que vem das línguas européias: francês, português, inglês e holandês. O que sobra da língua portuguesa nos crioulos são as palavras portuguesas. Você reconhece se ouvir bem, porque se torna uma língua totalmente diferente. Tem um parentesco lexiçal, mas o resto é totalmente diferente. Atualmente, esses crioulos são línguas oficiais em alguns países, juntamente com o português. Nesses lugares, o português não é a língua materna. Trata-se de uma situação diferente também da verificada do Brasil.

JU – O curioso é que o português sobreviveu apesar de o seu país de origem ser pequeno. Como a senhora analisa isso?
Charlotte – São dois momentos. No primeiro, é quando o colonizador impõe sua língua de maneira violenta. No Brasil, até o século 18, não se falava português em certo lugares. Aqui em São Paulo, se falava a língua geral, que era um tupi mesclado com o português. Foi necessária uma política muito específica do governo português naquele momento para impor a sua língua. Em particular, isso culminou na expulsão dos jesuítas do Brasil; eles tinham um papel importante na relação com os índios e usavam a língua geral. Os portugueses que vinham para o Brasil acabavam, também, falando a língua geral. Isto poderia ameaçar inclusive a sobrevivência do português. Essa política do governo português era deliberada: impor o português.

Num segundo momento, temos o caso da África. Na descolonização dos países, há uma variedade lingüística muito grande. Os países africanos tiveram de escolher as suas línguas oficiais. Em geral, acabaram optando pela língua do colonizador.

“Em São Paulo se falava um tupi mesclado com o português. O governo português precisou de uma política para impor a língua”

“Os alunos estão muito interessados no colóquio. Nessa geração não há preconceito, há uma vontade de
ver explicitada essa raiz africana”

 

JU – A que pode ser atribuída essa escolha?
Charlotte – Porque o português tinha prestígio no resto do mundo. E também porque a diversidade de línguas era muito grande. Se eles não pegassem o português, eles tinham que decidir qual das línguas de lá eles iam escolher. Isto era complicado, porque poderia criar um problema entre as diversas etnias. Dessa forma, o português aparece como uma língua relativamente neutra. Ela é prática para se relacionar com o resto do mundo, e ela uma língua comum para todo o mundo. Angola, Moçambique, Guiné escolheram o português como sua língua oficial.

Um caso muito interessante é o de Timor Leste. Depois que deixou de ser colônia portuguesa, o país foi invadido pela Indonésia. Foi terrível, foram anos e anos de luta. Havia um movimento de libertação, cujos integrantes não queriam ser parte da Indonésia. Quando Timor Leste conseguiu enfim ganhar a batalha e ser tornar independente mesmo, eles tiveram que decidir que língua oficial eles deveriam escolher. Houve um referendo para escolher entre o inglês e o português, além da língua local, o tetum. E 80% da população escolheu o português. Isso é interessante, porque eles poderiam ter escolhido o inglês, uma língua mais falada internacionalmente.

JU – Quando foi constatada essa semelhança entre o português falado no Brasil e na África?
Charlotte – É relativamente nova a constatação. Agora, a comunidade acadêmica está começando a se interessar por isso, está vindo à tona, muito embora tenha gente trabalhando com o tema há muito tempo. O interessante é ver que, independentemente, pesquisadores brasileiros e africanos mostraram que havia uma influência das línguas africanas sobre a língua portuguesa e verificaram que esse componente era muito parecido aqui e lá. Agora, o nosso objetivo nesse colóquio é justamente incentivar a colaboração entre os pesquisadores que trabalham na África e no Brasil.

JU – No que pode resultar esse intercâmbio?
Charlotte – Só temos a ganhar nesse estudo do contato entre a língua portuguesa e as línguas africanas. Para todo mundo é importante. Trabalhando junto, os resultados serão mais interessantes. Cabe destacar também que os lingüistas não podem trabalhar sozinhos. É muito importante ter a visão histórica, os componentes literários. A abordagem precisa ser multidisciplinar. Na teoria, vai ser importante porque entenderemos melhor qual é o efeito do contato entre as línguas. Isso é uma das grandes questões da lingüística.

JU – O contato pode ser visto como o grande deflagrador desse processo?
Charlotte – Se você o olha português brasileiro hoje em dia, ele é muito diferente do português europeu. Ele mudou. Se a gente compara o português de hoje no Brasil e o português do século 18, a gente constata que é diferente. Aliás, é preciso ter cuidado. O fato de o português brasileiro ser diferente do português europeu, pode ser atribuído também ao fato de o português europeu ter mudado, por razões que são complexas já que lá não houve muito contato com outras línguas.

JU – Quais seriam essas razões?
Charlotte – Venho trabalhando muito com o fato de ter havido, no fim do século 17 e início do século 18, uma grande mudança na pronúncia dominante do português. É consensual, por exemplo, que é nova a maneira que os portugueses têm de pronunciar a língua hoje em dia. Trata-se de uma coisa recente. O português que veio para o Brasil, nos séculos 16 e 17, era diferente. Há várias hipóteses possíveis sobre os motivos dessas mudanças, mas é muito difícil comprová-las.

Tenho um projeto de pesquisa que tenta entender o efeito que essa mudança na pronúncia, que é uma mudança no ritmo, provocou sobre as alterações registradas na gramática da língua. Mas isso era lá em Portugal. Para o Brasil, veio um português que era o dos séculos 16 e 17, que tinha uma pronúncia diferente, mas que sofreu a influência das línguas africanas. Portanto, essa pronúncia dos séculos 16 e 17, não só era diferente, como evoluiu no sentido oposto do português europeu.

JU – De que maneira?
Charlotte – O português europeu evoluiu no sentido do fechamento das vogais, o que dá justamente uma pronúncia que se parece com certas línguas do centro da Europa, as quais têm muitas consoantes, umas depois das outras. Já o português brasileiro sempre vai ter uma consoante e uma vogal. Isso porque na língua que vem para o Brasil já era mais assim do que é hoje em dia em Portugal. Entretanto, certamente a influência africana forçou essa tendência.

Uma das fontes de mudanças lingüísticas é o contato. Você tem uma língua que é aprendida por alguém que fala outra. Foi assim, por exemplo, que se desenvolveram as línguas românicas. O latim foi falado por milhões de pessoas. Os romanos impunham o uso do latim, que era falado por pessoas chamadas de bárbaros pelos colonizadores. Acontece que essas pessoas não eram capazes de falar o latim como os romanos, mas falavam de uma maneira diferente. Isso que deu origem às línguas românicas.

Na história das línguas, como já disse, o contato é essencial. A gente tem um exemplo de contato que é extremamente interessante, entre o português e as línguas africanas. Isso teve efeito no português falado na África e no português falado no Brasil, com 200 anos de diferença em termos de descolonização. Isso é interessante, porque olhando para aquilo que acontece na África talvez a gente entenda melhor o que aconteceu aqui no século 19, apesar do contexto bem diferente.

É interessante observar como, nessa história do contato, a língua popular vai se impondo até mesmo nas camadas mais favorecidas.

JU – A senhora acha que há uma unidade da língua no Brasil?
Charlotte – Há, e é bem razoável. Os professores universitários falam um português muito próximo daquele português falado por pessoas pouco escolarizadas. Existem diferenças, mas são superficiais.

JU – Mas não deixa de ser curioso, dada a dimensão do país.
Charlotte – Aí que se torna interessante saber a história do Brasil. Na realidade, uma boa parte das regiões brasileiras foram colonizadas e habitadas por brasileiros. Quando chegaram, os portugueses fundaram algumas cidades no litoral, entraram um pouquinho, mas depois, Goiás, Minas Gerais e outras regiões mais afastadas foram colonizadas por brasileiros. Os grupos que iam já tinham um forte componente de negros; então, no fundo, acaba tendo uma espécie de homogeneização no Brasil do ponto de vista cultural, do ponto de vista lingüístico.

JU – Estamos falando dessa ponte imaginária entre a África e o Brasil. Porém, qual o papel a ser desempenhado por Portugal, além do fato de ter difundido a língua?
Charlotte – Há muita gente interessada no assunto em Portugal. Nós vamos ter, nesse colóquio, uma pesquisadora portuguesa que tem um trabalho absolutamente magnífico sobre textos escritos em português por chefes africanos desde o século 18.

Em Coimbra, que tem a universidade mais antiga de Portugal, há um grupo de pesquisadores trabalhando sobre o contato do português com as línguas africanas. Eu acho que hoje em dia boa parte dos pesquisadores portugueses está envolvida com nisso e colaborou com pesquisadores brasileiros e africanos. Vejo então um triângulo de interesses comuns muito fortes.

No colóquio, o enfoque maior vai ser nessa relação entre a África e Brasil porque tem uma história comum. Convidamos o historiador Luiz Felipe de Alencastro, que tem um livro em que mostra como, na época colonial, a África e Brasil formavam praticamente uma unidade. No momento em que não se falava em estado brasileiro e lá ainda menos em estados africanos, era uma unidade. O assunto dele, que é justamente o tráfico de escravos, se dá entre Portugal, Brasil e África. E muitos brasileiros estavam envolvidos nisso.

Acho que existe uma história comum. Dizer que há uma cultura em comum talvez seja muito forte. Mas certamente, há uma identificação possível.

Nossos alunos estão muito interessados no colóquio. Outro fator relevante é que os afro-descendentes aqui no Brasil são hoje em dia grupos reconhecidos e valorizados. É uma coisa muito forte. Nessa geração dos nossos alunos, não há preconceito e há um interesse muito grande nessa relação. Há uma vontade muito grande de ver explicitada essa raiz africana, via esses milhões de africanos que vieram para cá e trouxeram seu sangue, sua cultura e sua visão de mundo.

JU – Mas nem sempre foi assim.
Charlotte – Houve no Brasil, durante muito tempo, uma certa tendência em esconder isso, mas acho que está mudando fortemente.

JU – Qual a importância da mídia nessa inserção das culturas em mão dupla?
Charlotte – Uma pesquisadora do Labeurb está com um projeto extremamente interessante que é baseado no que ela chama de “pontos de cultura”. São locais conectados à internet nos quais é possível comunicar em tempo real. Trata-se de algo próximo, por exemplo, da videoconferência. O projeto, que conta com o aval da Unesco, prevê a criação de 10 pontos de rede. Aliás, o nosso colóquio vai ser transmitido nos países da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa).

As novas tecnologias vão nos ajudar muito. Ademais, os jovens hoje em dia lidam com isso muito facilmente. E mesmo países muito pobres, como é o caso dos países africanos, têm recursos hoje em dia para a instalação desse tipo de tecnologia. É uma coisa que dá para fazer.

JU – Para a difusão da língua é muito bom.
Charlotte – É muito bom, sem dúvida. O grande problema hoje em dia para a língua é como, ao mesmo tempo ter essa possibilidade de comunicação que implica usar a mesma língua, sem acabar com a diversidade lingüística. O perigo não é tanto a comunicação, mas sim a uniformização.

O reverso desse projeto é trabalhar juntos sobre as línguas africanas, acerca da influência do português sobre as línguas africanas, ou seja, não olhar para esses fenômenos em mão única. É preciso enxergar sempre os dois lados.

(Reprodução)

JU – Qual seria o efeito da uniformização?
Charlotte – É interessante fazer do português uma língua de comunicação, mas é preciso ter cuidado para que ele não sufoque as demais línguas. É quase um paradoxo. O ideal é que todo mundo falasse a mesma língua, mas a gente sabe que as línguas são veículos de cultura. Quando determinadas línguas deixam de ser faladas, é sempre uma perda. Essa cultura só não morre totalmente porque os falantes sempre vão levar algo de sua bagagem. Chegar ao equilíbrio é muito difícil.

Isto não pode ser esquecido. É preciso trabalhar a diversidade, muito embora ela seja problemática já que, se não falamos a mesma língua, não nos entendemos.

JU – À luz da perspectiva histórica, em que medida essa constatação que dá conta da semelhança entre o português falado aqui e na África pode causar mudanças na língua?
Charlotte – Não sei se pode mudar, mas pode tornar a mudança mais visível, precipitar e agilizar as coisas. Pessoalmente, acho que o português brasileiro, tal como a gente conhece hoje, existe há muito tempo. Só que, nas camadas mais escolarizadas e de nível socioeconômico mais alto, houve uma tendência em esconder e recusar essas evidências. Durante muito tempo, houve a ilusão de que as pessoas continuam a falar a língua da norma, lá de Portugal. Isso é problema que esteve muito vivo inclusive na escola. As criancinhas tinham de aprender a colocar pronomes, e isto os portugueses fazem naturalmente.

Outro dia vi uma reportagem numa revista [Língua] sobre a evolução da língua nos gibis. Nos gibis publicados nos anos 50, você constata que Huguinho, Zezinho e Luizinho falavam como os professores universitários. Esse português já não era o português das crianças da época e nem dos pais deles. Mas ainda se achava que era assim que ele precisava ser escrito.
Seria melhor reconhecer isso, saber muito bem como é o português brasileiro e descrevê-lo. É preciso aceitar que as crianças cheguem falando esse português. Eu acho que podemos fazer isso. Agora, provocar a mudança, acho que não. Aconteceu a mesma coisa no século 16, nos países europeus, quando foram introduzidas gramáticas em francês e português. Até então, tudo era escrito essencialmente em latim. Até que se começou a achar que as línguas como o francês, o espanhol e o português também eram dignas de ser escritas. Quando isso ocorreu, parecia que a língua havia mudado, quando na verdade isso havia ocorrido muito tempo atrás. Na hora de escrever, as pessoas usavam aquilo de 100, 200 anos atrás. Mas a língua do dia-a-dia já havia mudado.

A língua escrita nos dá um reflexo atrasado da língua falada. Afirmar que a língua mudou vai gerar um efeito sobre a representação que as pessoas têm da própria língua. É importante para valorizar essa língua. Existe um complexo lingüístico grande no Brasil. E muito comum a gente ouvir que fulano não sabe falar o português. Eles sabem falar o quê, então?


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