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UNICAMP DE PORTAS ABERTAS

O pensamento vivo do fundador da Unicamp

Breve história
da usina de pesquisas

EUSTÁQUIO GOMES

Por trás das salas de aulas, centenas de laboratórios científicos produzem 15% de toda a pesquisa universitária brasileiraO Campus da Unicamp em Campinas foi oficialmente instalado em 5 de outubro de 1966. Mesmo num contexto universitário recente, em que a universidade brasileira mais antiga ainda não tem 80 anos, a Unicamp pode ser considerada uma universidade jovem. Apesar disso, rapidamente ela conquistou forte tradição no ensino e na pesquisa científica e tecnológica.

O projeto de instalação da Unicamp – realizado pelo parasitólogo Zeferino Vaz, seu fundador – veio responder à demanda crescente por pessoal qualificado numa região do país, o Estado de São Paulo, que já nos anos 60 detinha 40% da capacidade industrial brasileira e 24% de sua população ativa.

Até então o sistema de ensino superior do país estava voltado para a formação de profissionais liberais solicitados pelo processo de urbanização, como advogados, médicos e engenheiros civis. Zeferino era de opinião que o país precisava de uma universidade diferente, com ênfase na pesquisa conjugada ao ensino, e que mantivesse uma sólida vinculação com a sociedade e com o processo de desenvolvimento.

Não por acaso o plano inicial da Unicamp privilegiou a consolidação dos institutos de ciências básicas (Física, Química, Matemática), orientando-os para projetos tecnológicos como lasers, comunicações ópticas e computação. O projeto alargou-se em seguida em direção às carreiras da moderna engenharia – Elétrica, Mecânica, Química, Civil, de Alimentos e Agrícola. A área biomédica já estava, a essa altura, consolidada com os cursos de Medicina, Biologia e Odontologia, mais tarde acrescidos dos de Enfermagem e Educação Física. Os anos 70 viram o desenvolvimento das ciências humanas (Filosofia, Ciências Sociais, Economia, Lingüística, Letras), nos anos 80 floresceram as artes e na década de 90 surgiram os cursos noturnos e cursos novos como os de Arquitetura e Ciências da Terra.

A instalação gradativa dessas unidades ao longo das primeiras três décadas não invalida, entretanto, que elas tenham emanado de um projeto coerente e único. Uma característica da Unicamp foi ter escapado à tradição de criação de universidades pela justaposição progressiva de cursos e unidades. Basta dizer que, antes mesmo de instalada, a Unicamp já havia atraído para seus quadros mais de 200 professores estrangeiros vindos de diferentes países e áreas do conhecimento, além de 180 brasileiros buscados nas melhores universidades do país.

Segredo está na união de ensino e pesquisa

A Unicamp compreende hoje 20 unidades de ensino e pesquisa e um vasto complexo médico-hospitalar, além de uma série de unidades de apoio ao ensino e à pesquisa onde convivem cerca de 30 mil pessoas e se desenvolvem alguns milhares de projetos de investigação científica e tecnológica. Estão matriculados hoje em seus 53 cursos de graduação 12.476 alunos, dos quais 35% no período noturno, além de 12.645 outros matriculados em 120 programas de mestrado e doutorado — é a universidade brasileira com maior índice de alunos na pós: 52% de seu corpo discente –, 20% de outros estados e 5,5% do exterior. Seus programas de pós-graduação concentram, sozinhos, em torno de 10% dos mestrandos e doutorados de todo o país, qualificando profissionais que em boa parte atuam como professores em outras instituições do país e do exterior – o que faz da Unicamp uma espécie de “escola de escolas”. O número de vagas anualmente oferecidas na graduação ampliou-se expressivamente graças à criação dos cursos noturnos, uma antiga reivindicação da comunidade. Atualmente, das 2.810 vagas oferecidas em seu vestibular nacional, 890 são disponibilizadas para os cursos noturnos.

A qualidade da formação oferecida pela Unicamp tem muito a ver com a estreita relação que historicamente mantém entre ensino e pesquisa. Tem a ver também com o fato de que 90% de seus 1.893 professores atuam em regime de dedicação exclusiva e têm titulação mínima de doutor – um índice de primeiro mundo. Isto significa que os docentes que vão às salas de aula são os mesmos que, nos seus laboratórios, desenvolvem as pesquisas que tornaram a Unicamp conhecida e respeitada. É natural, portanto, que o conhecimento acumulado com as pesquisas seja repassado aos alunos, muitos dos quais, aliás, delas participam.

Ao dar ênfase à investigação científica, a Unicamp parte do princípio de que a pesquisa é uma atividade social e freqüentemente também econômica. Daí a naturalidade de suas relações com a indústria, seu diálogo fácil com os organismos de fomento científico e sua rápida inserção no processo de produção de bens e serviços.

Tal inserção começou já nos anos 70, com o desenvolvimento de pesquisas de alta aplicabilidade social como a digitalização da telefonia, o desenvolvimento da fibra ótica e suas aplicações nas comunicações e na medicina, os vários tipos de lasers hoje disponíveis no país, o chip nacional, os diversos programas tecnológicos para controle biológico de pragas agrícolas e outros.

Acrescente-se a estas (e às centenas de outras em andamento) um número notável de pesquisas no campo das ciências sociais e políticas, da economia, da educação, da história, das letras e das artes. Muitas dessas pesquisas não só estão voltadas para o exame da realidade brasileira como freqüentemente têm-se convertido em formas de benefício social imediato. No seu conjunto, estima-se que elas representem cerca de 15% de toda a pesquisa universitária brasileira.

De um modo geral, pode-se dizer que todas essas atividades que caracterizam a vida da Unicamp permeiam a vida do aluno do primeiro ao último semestre. Em muitos casos a atividade discente leva a um contato direto com a população, como nas artes e na medicina. Da pesquisa ele participa através dos inúmeros laboratórios de ensino existentes na Universidade, com a concessão, em muitos casos, de bolsas de iniciação científica. Mas pode participar também da produção e até da transferência de conhecimento ao se engajar numa das 16 empresas-júnior em atividade no campus, muitas delas com uma folha de serviços já considerável à indústria ou ao setor público

Laços profundos com a sociedade

Voltada, desde seu início, para a formulação de programas sociais, a Unicamp mantém conseqüentemente estreitos laços com a sociedade. É amplo o seu espectro de atividades direcionadas à população. No campo da medicina, por exemplo, a Unicamp ultrapassa em muito o seu papel de produtora de conhecimento. Junto à Faculdade de Ciências Médicas funciona o maior complexo hospitalar do interior de São Paulo, constituído pelo Hospital de Clínicas (HC), pelo Centro Integral de Atenção à Saúde da Mulher (Caism) e por um hospital de atendimento secundário que a Unicamp gerencia na cidade vizinha de Sumaré.

Com um total de mais de 800 leitos, essas três unidades hospitalares atendem principalmente à população de baixa renda dos 90 municípios da região de Campinas que, no conjunto, correspondem a uma população de cinco milhões de pessoas. Além deles, funciona no campus um centro de hematologia e hemoterapia (o Hemocentro), um centro de diagnóstico de doenças do aparelho digestivo (o Gastrocentro), um centro de pesquisas onco-hematológicas e pediátricas e o Centro de Reabilitação “Gabriel Porto”, voltado para a pesquisa e para o atendimento a crianças portadoras de deficiência sensorial ou de síndrome de down. Em Piracicaba, a Faculdade de Odontologia é também responsável pela promoção da saúde a um considerável número de pessoas.

Sua tradição com a pesquisa aplicada dá-lhe também a condição de uma das universidades brasileiras que mais fortes vínculos mantém com o setor de produção de bens e serviços, seja para o repasse de produtos tecnológicos, seja para a prestação de serviços técnicos. A intensificação dessa demanda ao longo dos anos levou à criação de um escritório de difusão de serviços tecnológicos e, mais recentemente da Agência de Inovação da Unicamp.

Finalmente, além da vasta programação de eventos culturais, acadêmicos e científicos de toda espécie, a Unicamp mantém um importante programa de cursos de atualização e especialização em todas as áreas do conhecimento, através de sua Escola de Extensão, que beneficiam diretamente a sociedade.

Nos últimos anos, essa foi a atividade de serviços que mais cresceu dentro na Universidade. Até o fim do ano de 2001, por exemplo, os cursos de extensão da Unicamp alcançariam cerca de 22 mil alunos matriculados em seus 799 cursos.

Pioneiros vieram do mundo todo

Em 1966, os principais líderes mundiais respondiam por nomes como Mao Tsé Tung, Leonid Brejnev e Lyndon Johnson. Aqui, quem dava as cartas era um militar, o marechal Castello Branco. Em gramados ingleses, o Brasil não confirmava sua condição de favorito para a Copa do Mundo daquele ano. Na mesma Inglaterra, quatro rapazes de Liverpool firmavam-se como a banda mais famosa do século — os Beatles. No Brasil, os festivais de música popular pegavam fogo e os brasileiros se dividiam entre “A Banda”, de Chico Buarque de Holanda, e “Disparada”, de Geraldo Vandré. Enquanto isso, em Campinas, numa ensolarada manhã de outubro — precisamente o dia 5 — era lançada a pedra fundamental do campus central da Unicamp.

À volta dos convidados, tudo o que havia era um extenso canavial e campinas selvagens que logo dariam lugar aos prédios e gramados do campus, a 12 quilômetros do centro urbano de Campinas. A gleba para a construção fora doada por um fazendeiro da região, Almeida Prado, amigo do educador e parasitólogo Zeferino Vaz, encarregado pelo governo do estado para instalar a nova universidade. Dizem que o fazendeiro tinha uma dívida de gratidão para com Zeferino: anos antes, o professor havia curado seu rebanho de gado de uma grave doença contagiosa. “A estrada de acesso era ruim e quando chovia até os ônibus atolavam”, lembra o físico Nelson de Jesus Parada, professor hoje aposentado e dono de uma empresa da área de telecomunicações. No dia em que veio conhecer o campus, no final de 1968, Parada perdeu-se no canavial e teve de pedir ajuda para desenterrar seu fusquinha do barro.

Na verdade, o projeto da Unicamp não esperou o início das obras para ser alicerçado. Muitas das atividades já vinham funcionando em prédios emprestados ou alugados no centro da cidade. Para começar, a Faculdade de Ciências Médicas, unidade embrionária da Unicamp, já vinha funcionando desde 1963, ano de sua criação, em instalações da Maternidade de Campinas e, mais tarde, da Santa Casa de Misericórdia. A própria Reitoria funcionou em pelo menos três lugares diferentes antes de chegar ao campus, em 1969. Um dessas sedes improvisadas foi o velho edifício da rua Culto à Ciência que hoje abriga o Colégio Técnico da Unicamp. Ali, em salas apertadas e um galpão improvisado, foram instalados os laboratórios dos primeiros pesquisadores trazidos por Zeferino Vaz do exterior e de outras regiões do país.

Um deles foi o matemático Rubens Murilo Marques, que entrou com a missão de organizar o Instituto de Matemática e realizar o primeiro vestibular. Rubens foi também o primeiro presidente da Câmara Curricular e graças a ele a Unicamp tornou-se a primeira universidade do país a adotar os cursos semestrais e a matrícula por disciplinas. Em 1971 as matrículas já eram feitas pelo computador. “Claro que era tudo na base do cartão perfurado, mas ainda assim uma tremenda novidade”, lembra o funcionário Antonio Faggiani, até hoje à frente da Diretoria Acadêmica (DAC), um dos lugares mais reconhecíveis pelos alunos de todos os cursos.

Rapidamente o velho prédio começou a encher-se de pesquisadores jovens que tinham acabado de doutorar-se nos Estados Unidos, mas também de gente célebre que até já constava de enciclopédias. Havia no país um movimento para a repatriação de cientistas e Zeferino resolveu tirar partido disso trazendo do exterior, nos anos seguintes, mais de uma centena de pesquisadores. César Lattes, que em 1948 produzira artificialmente o méson pi, tinha seu laboratório no porão do edifício. “O porão era uma confusão de varais onde Lattes estendia suas chapas de detecção de partículas de raios cósmicos recolhidas no monte Chacaltaya, na Bolívia”, lembra o professor Luiz Antonio Vasconcelos, do Instituto de Economia, na época aluno de ciências exatas. Vasconcelos recorda-se que Lattes tinha uma rede onde se deitava sempre que precisava fazer cálculos.

Na vizinhança de Lattes ficava outro físico famoso, Marcelo Damy de Souza Santos, que havia sido presidente da Comissão Nacional de Energia Nuclear. Coube a Damy iniciar a organização do Instituto de Física. A ele vieram se juntar nomes como Rogério Cerqueira Leite (física do estado sólido), José Ellis Ripper (física aplicada), Sérgio Porto (física quântica), além do próprio Parada e de Carlos e Zoraide Argüello, entre outros. Segundo Parada, no início o Instituto de Física “funcionava sobre duas cadeiras no corredor”, pois não havia lugar para todos. “Mas foi dessa improvisação que nasceu um projeto que rendeu o primeiro milhão de dólares para a instalação de laboratórios”, com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

Uma época de grande ebulição

Outras unidades também se organizavam paralelamente, sempre sob a batuta de gente que Zeferino ia “roubando” de outras instituições, como o biólogo Walter August Hadler, o geneticista Gustav Brieger, o filósofo Fausto Castilho, o químico Giuseppe Cilento e o engenheiro agrônomo André Tosello, que organizaria a Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA), a primeira de todo o Hemisfério Sul. Aos economistas que chegavam de São Paulo e do Rio de Janeiro, Zeferino disse: “Acredito na competência de vocês: quero um curso crítico e atual”. Para darem seus primeiros cursos de especialização, o grupo da Economia dividia espaço com os primeiros lingüistas no velho galpão do prédio da Culto à Ciência.

Apesar da precariedade das instalações, Zeferino queria tudo novo. “De fato o plano era criar uma universidade que fosse um padrão para as demais instituições, melhor que as já existentes, aproveitando as experiências positivas e levando em conta as negativas”, diz Damy, que, apesar de mais tarde haver-se desentendido com Zeferino por razões institucionais, mantém sua opinião sobre a originalidade do projeto que ajudou a implantar. “Zeferino podia até ser um homem polêmico”, diz Murilo Marques, “mas era também profundamente aberto às inovações”. Prova disso é que, em 1967, quando Murilo lhe propôs a criação do curso de computação, sob a alegação de que o futuro apontava para a tecnologia informacional (contra opiniões contrárias de muita gente, inclusive de matemáticos da USP, que acharam a idéia “uma loucura”), o reitor apanhou rápido a idéia: “Tem uma semana para apresentar o projeto”, disse. Com mais duas o curso estava aprovado em todas as instâncias.

Ao mesmo tempo, era uma época de grande ebulição acadêmica. Mal saída do papel, a nova universidade já enfrentava suas primeiras turbulências, que no fundo eram sinal de vitalidade. Ficaram famosas as “comissões paritárias” da Faculdade de Ciências Médicas, em que docentes, alunos e funcionários se reuniam para discutir assuntos institucionais, assistenciais e acadêmicos, não raro influenciando os currículos e as decisões administrativas. E já em 1967 houve uma primeira greve de estudantes que mobilizou todos os 127 alunos do curso básico, contra a unificação do vestibular. "O pomo da discórdia era a prova de biologia no vestibular de exatas. Os estudantes chegaram a conseguir uma liminar brecando a realização do vestibular, mas no fim Zeferino triunfou como sempre", lembra Vasconcelos.

Os tempos heróicos incluíram até mesmo alguns embates com o regime, coisa que deu o que fazer ao reitor, cuja atitude paternal para com os alunos não impedia que ele tivesse excelentes relações no governo militar e, inclusive, houvesse apoiado publicamente o AI-5, o mais discricionário dos atos institucionais do período. Em setembro de 1968 um grupo de seis alunos da Unicamp — Vasco inclusive — foi preso durante o congresso da UNE realizado em Ibiúna, interior de São Paulo. Ficaram uma semana trancafiados no Doi-Codi, a sede da polícia política em São Paulo.

No terceiro dia Zeferino apareceu com um lote de cobertores e um grande sortimento de chocolates, bolachas e cigarros. "Foi a única autoridade universitária a visitar os estudantes na prisão", lembra Edson Corrêa da Silva, então aluno de ciências exatas e hoje professor do Instituto de Física. "Ele tranqüilizou todo mundo ao dizer que havia falado com o governador e que todos seriam soltos". De fato, uma semana depois estavam livres. Ficou célebre a frase que ele dirigiu aos militares que o criticavam por proteger gente de esquerda: "Dos meus comunistas cuido eu". Ele falava com a autoridade de quem, afinal, estava construindo uma das melhores – senão a melhor – universidade brasileira.

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