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A " Roma brasileira "
 

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Os anjos mulatos
da “Roma Brasileira”



ÁLVARO KASSAB

A cidade de Itu coleciona epítetos. “Berço da República” é um deles. Um outro, “Roma Brasileira”, é menos conhecido, embora suas causas saltem aos olhos numa incursão pelo centro histórico do município. São dezenas de igrejas, muitas surgidas no fausto da cana-de-acúçar. O que pouca gente sabe – incluindo aí os nativos – é que a cidade abriga obras daquele que é considerado um dos maiores artistas barrocos do país: padre Jesuíno do Monte Carmelo (1764-1819), personagem cuja vida se confunde com a obra, ambas profícuas em lances peculiares. A tal ponto que Mário de Andrade acabou elegendo o padre não só o maior representante do barroco paulista como também protagonista de seu último livro (Padre Jesuíno de Monte Carmelo, esgotado). É justamente esta relação o foco central da dissertação de mestrado Sobre Mário de Andrade e a sua Paulistanidade: uma Reflexão, de autoria da professora Maria Silvia Ianni Barsalini. Orientado pelo professor Carlos Eduardo Ornelas Berriel, o estudo revela a trajetória do beato mulato que, analfabeto, viúvo, com quatro filhos, virou padre e desenhou anjos barrocos com cabelo pixaim em um dos templos católicos de Itu.

Mário de Andrade, igualmente mulato, não deixou a história passar batida. Estava ali, para o líder do modernismo, uma oportunidade rara de tecer loas à arte genuinamente brasileira de Jesuíno. Aliás, à arte paulista, antes de tudo. “Cheguei à conclusão de que ele era muito mais paulista do que nacionalista”, revela a professora Maria Silvia. Para tanto, a pesquisadora vasculhou durante anos a obra e a correspondência do escritor paulistano. Na abordagem, inédita, a autora da tese, defendida no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, divide sua dissertação em capítulos que dialogam entre si, apesar das diferenças cronológicas e temáticas. Maria Silvia mostra a similaridade entre o modernismo e o barroco, sobretudo o latino-americano e suas influências mestiças; historia a trajetória de Mário de Andrade como líder do movimento modernista; mostra as referências barrocas na obra do escritor paulista; passa pelos “sintomas de identidade nacional” nas obras de Aleijadinho; conta como se deu a “descoberta” do padre Jesuíno por parte de Mário de Andrade, e encerra com uma indagação: o livro sobre o padre Jesuíno é apenas um estudo biográfico?

“Quase como um conto biográfico”, reconhece o próprio Mário de Andrade na introdução de seu livro. O primeiro contato com a obra de Jesuíno Francisco de Paula Gusmão deu-se em 1937, ano em que Mário de Andrade inventariava obras do Brasil Colônia para o Sphan (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Já desanimado com a falta de obras barrocas representativas em solo paulista, Mário de Andrade ficara entusiasmado com o que presenciara em Itu. Em carta endereçada ao amigo e seu diretor, Rodrigo Mello Franco de Andrade, o escritor manifesta seu contentamento. Quatro anos depois, em 1941, Andrade iria dedicar-se quase exclusivamente à monografia sobre o padre, trabalho concluído em 1944, meses antes de sua morte.

Mas o que aproximou Mário de Andrade do padre Jesuíno? Em sua dissertação, Maria Silvia dá as pistas. Lembra que “para alguém que em 1928 elaborara o ensaio sobre o Aleijadinho, pode parecer possível que tal descoberta fundamentasse ainda mais as idéias que há muito tempo desenvolvia de que o Barroco brasileiro (na verdade, até então apenas o mineiro e, a partir de 1938, também possivelmente o paulista), poderiam representar um fecundo ângulo para pensar uma nova e importante visão da cultura brasileira”. Mais: já quando escrevera sobre Aleijadinho, continua Maria Silvia, Mário de Andrade defendia a idéia de que da mestiçagem havia brotado a arte colonial brasileira.

Foi uma empreitada de fôlego a do escritor. De documentos havia apenas uma carta do padre Jesuíno, datada de 1815, endereçada ao prior de Santos. De resto, Mário de Andrade recorreu à oralidade e à atenta observação das obras. Passou, como ele disse, por um processo de “jesuinização”. Tudo o que dizia respeito ao pintor, arquiteto e músico foi vasculhado e catalogado. Filho de mãe parda forra, o padre nasceu Jesuíno Francisco de Paula Gusmão, em Santos. Foi com 17 anos para Itu, onde aprendeu o ofício com o pintor erudito José Patrício da Silva Manso, que estava incumbido de pintar o forro da capela-mor da Igreja Matriz, havia pouco inaugurada. Casou-se em 1784, teve cinco filhos – os quatro últimos sobreviveram – e enviuvou em 1793. Ainda casado, assumiu toda a decoração pictórica da Igreja do Carmo, em Itu. “Jesuíno pôs um anjo mulato em perfeita igualdade com os serafins de alvura bíblica”, observa Mário de Andrade sobre o afresco do padre na igreja do Carmo. Segundo Maria Silvia, os elementos e as cores caipiras utilizados por Jesuíno também deixaram maravilhado o escritor paulistano, que via nos adereços um exemplo de uma arte livre das influências européias.

Viúvo, Jesuíno seguiu para São Paulo, onde fora convidado para decorar as igrejas da ordem carmelita – Convento do Carmo e a de Santa Teresa. Enquanto pintava, tinha aulas de latim com um frei que sabia da vocação de Jesuíno para o sacerdócio. Quatro anos depois de enviuvado, Jesuíno Francisco de Paula Gusmão receberia as ordens menores e trocaria seu nome de leigo pelo de Jesuíno do Monte Carmelo. Rezaria sua primeira missa em Itu, em 1798, embora ordenado “ex defectu natalium” (defeito de nascença) por ser mulato. Mais tarde, depois de receber a doação de um terreno, ergueu com a ajuda dos filhos a Igreja Nossa Senhora do Patrocínio, considerada por especialistas a mais bela de Itu e onde está uma impressionante coleção de quadros em que o padre Jesuíno coloca fisionomias dos filhos em obras que levam nomes de santos carmelitas.

Entre os aspectos inéditos da dissertação de Maria Silvia, uma ituana de nascimento, está a aproximação que faz da condição de mulato do escritor paulistano e do padre. A autora da tese lembra que, durante o seu trabalho de prospecção, Mário de Andrade referiu-se mais de uma vez ao “refrão da mão”. “Na sua compreensão, padre Jesuíno inconscientemente pintava anjos e santos mulatos porque via a própria mão, também mulata”. Maria Silvia avança. “Será que o refrão da mão não era o da própria mão de Mário de Andrade?”, indaga a professora, que pretende publicar seu estudo em breve. A julgar o entusiasmo do escritor pelos querubins mestiços que flanam em céus arianos, sim.

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