Jornal da Unicamp 186 - 19 a 25 de agosto de 2002
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O professor Gustavo Zimmermann: "Prefeituras que tiveram grande expansão populacional estão invariavelmente endividadas"Prefeituras
entre a
cruz e a espada

Um tema que fala muito de perto aos municípios, e que vai merecer uma reflexão especial durante o evento organizado pela Funcamp e Unicamp, é a Lei de Responsabilidade Fiscal, conjunto de normas que entrou em vigor em 2000. A nova legislação impõe condutas mais rigorosas no trato do dinheiro público. Mais do que estabelecer limites, ela cria mecanismos para o controle dos gastos permanentes. Em outras palavras, determina que um administrador público só poderá iniciar uma obra ou contratar servidores, por exemplo, se conseguir comprovar de onde virão os recursos. De acordo com o economista Gustavo Zimmermann, professor do Núcleo de Economia Social, Urbana e Regional (Nesur), do Instituto de Economia da Unicamp, esse tipo de disciplina representou um avanço, embora também tenha criado algumas distorções.

Segundo Zimmermann, apesar de a maioria dos municípios do Estado de São Paulo, para ficar um exemplo regional, tenha se adequado às exigências da Lei de Responsabilidade Fiscal, alguns deles ainda enfrentam sérios problemas, sobretudo os que registraram ao longo das últimas décadas explosão de suas demandas sócio-urbanas, provocadas pela expansão demográfica. “Isso é um excesso da legislação, que a meu ver deveria ser corrigido. Tal situação não foi fruto exclusivo de uma ação momentânea das administrações municipais, mas sim de um processo de longo prazo”, analisa o especialista. Além disso, destaca o professor do Nesur, existe um ponto controverso em relação à aplicação das penas previstas na legislação. Uma corrente de juristas defende o argumento segundo o qual elas não são auto-aplicáveis. Esses e outros aspectos serão abordados no encontro dos dias 30 e 31 de agosto. O Jornal da Unicamp antecipa, porém, alguns desses pontos. Leia, a seguir, os trechos mais importantes da entrevista com Zimmermann.

Jornal da Unicamp - Quais são os princípios básicos da Lei de Responsabilidade Fiscal?

Gustavo Zimmermann - A Lei de Responsabilidade Fiscal surgiu da necessidade que o governo federal teve de disciplinar as posturas fiscais das administrações públicas, como fruto dos compromissos assumidos dentro do plano de estabilização da moeda brasileira e também da vontade de voltar a ter um controle macroeconômico sobre as administrações estaduais e municipais. Na realidade, a disciplina imposta por essa lei também vale para o governo federal, mas é ele que estabeleceu quais são os limites para ele próprio e para as demais esferas. Essa lei estabelece normas muito rígidas para o exercício fiscal e financeiro. Tem mecanismos de controle dos gastos permanentes. Gastos permanentes são aqueles que passam de um exercício fiscal para o outro, principalmente os relacionados com a contratação de pessoal. Esses gastos são limitados pela Lei Camata, que surgiu um pouco antes da Lei de Responsabilidade Fiscal, originada da preocupação com o esgotamento da capacidade de investimento dos estados e municípios.

P - Qual a origem desse esgotamento?

R - Com o advento da Constituição de 1988, estados e municípios tiveram expressivo aumento de receita. É bem verdade que tiveram também um expressivo aumento de gastos de pessoal, pois a própria Carta garantiu a estabilidade a servidores e promoveu mudanças na aposentadoria de funcionários públicos. Os municípios, em particular, praticamente dobraram os recursos que recebiam. Obviamente, assumiram novas funções. Porém, como os gastos com pessoal aumentaram e a dinâmica pública tende a manter um ritmo constante de crescimento nessa área, achou-se por bem aprovar a Lei Camata, que foi uma iniciativa do Legislativo Federal. A legislação surgiu exatamente para possibilitar a ampliação da capacidade de investimento de estados e municípios.

P - Os limites de gastos impostos pela Lei Camata são os mesmos da Lei de Responsabilidade Fiscal?

R - A Lei de Responsabilidade não altera o limite imposto pela Lei Camata, que é de 60% da receita corrente líquida. Mas ela traz uma outra novidade. Determina que só é possível fazer um gasto permanente se houver a indicação de onde virá a receita permanente para saldá-lo. Há uma confusão nesse aspecto. Algumas pessoas pensam que a Lei de Responsabilidade Fiscal impede a contratação de servidores. Não é isso. Ela só condiciona essa contratação à disponibilidade de verbas.

P - A imposição desses limites é razoável? Prefeituras e estados estão conseguindo se enquadrar nas exigências?

R - Esses limites são razoáveis. Obviamente, você tem prefeituras que tiveram piores administrações. Hoje, em São Paulo, temos poucos municípios acima desse nível. Na federação, temos quatro estados com problemas de adequação. O Estado de São Paulo está um pouco acima, mas não deverá ter dificuldade para se enquadrar. Na realidade, não houve apenas o controle dos gastos permanentes, mas também um controle do nível de endividamento. As prefeituras, estados e o governo federal não podem se endividar a partir de um determinado limite. Esse é um dos pontos mais controversos da Lei de Responsabilidade Fiscal. Mais do que impor um limite, o que é saudável, ela condena a ampliação ou a manutenção do investimento nos entes federados que estejam com problemas. As prefeituras que tiveram uma grande expansão populacional, o que causa uma necessidade maior de investimento, estão invariavelmente endividadas, como é o caso de Campinas. Isso é um excesso da legislação, que a meu ver deveria ser corrigido. Tal situação não foi fruto exclusivo de uma ação momentânea, mas sim de um processo de longo prazo.

P - A maioria dos prefeitos se diz favorável à Lei de Responsabilidade Fiscal, mas vários deles reclamam que deveria ter sido estabelecido um processo de transição para a adaptação às novas exigências. O senhor concorda com essa queixa?

R - O período de transição foi previsto antes do advento da Lei de Responsabilidade Fiscal, por ocasião da aprovação da Lei Camata. Esse período foi expandido com a entrada em vigor desta última. No entanto, a Lei de Responsabilidade Fiscal não tratou de algumas situações concretas. Ela é de difícil aplicação em relação às administrações que se encerraram. As críticas partem mais dos novos prefeitos e governadores do que daqueles que foram reeleitos. Eles mesmos tiveram que ir se adequando à Lei Camata e depois à Lei de Responsabilidade Fiscal. As críticas são procedentes, particularmente quando partem de municípios endividados e com uma alta demanda social provocada pelo crescimento populacional.

P - Que outros pontos positivos o senhor destacaria na Lei de Responsabilidade Fiscal?

R - Ela tem alguns outros procedimentos que são, do meu ponto de vista, absolutamente saudáveis. Inibe, por exemplo, a renúncia fiscal. É o caso do famoso incentivo para atração de investimentos. Se por um lado esse tipo de iniciativa é a contrapartida à ausência de uma política industrial, ela implica num custo social extremamente elevado. Era muito comum, em vésperas de eleição, dar-se anistias, algumas extremamente elevadas. A não-cobrança da dívida ativa não acarretava a responsabilização dos prefeitos. Sob esse ponto de vista, a lei é absolutamente primorosa. Ela tem um outro aspecto, que é pouco conhecido. A lei amplia a transparência governamental, porque exige que se tornem públicos os balancetes mensais. Eu conheço inúmeras prefeituras que não faziam isso, nem para as Câmaras de Vereadores. Hoje, o Tribunal de Contas e o Ministério Público têm que receber o documento mensalmente. E mais: se as prefeituras quiserem corrigir algum dado do balancete, terá que fazê-lo numa época certa. Porém, a transparência contábil pode ser enganosa. A contabilidade pública é como biquíni fio dental: mostra muita coisa, mas esconde o essencial. A transparência não é uma conquista inquestionável, mas representa um avanço. O Poder fiscalizatório também aumentou. Tanto o Tribunal de Contas quanto o Ministério Público são agentes importantes de fiscalização. Se um cidadão não estiver satisfeito com a dinâmica contábil de uma prefeitura, ele poderá recorrer a qualquer uma dessas instituições.

P - Que tipo de penas a Lei de Responsabilidade Fiscal reserva para o mau administrador público?

R - A responsabilização está prevista tanto na Lei de Responsabilidade, bem como na Lei de Crimes da Administração Pública, que foi aprovada no bojo da primeira. As penas são rígidas. Vão da inelegibilidade à perda de mandato, chegando até à prisão. No entanto, a aplicação dessas penas não é clara, até porque ainda não ocorreram casos. Juridicamente, há controvérsia nesse aspecto. Existe uma corrente de juristas que acha que as penalidades não são auto-aplicáveis. Esse tema, aliás, será debatido numa das mesas do encontro com os prefeitos. A meu ver, é dos pontos mais preocupantes para o administrador municipal.

P - O senhor acredita que a lei, por si só, fará com que estados e municípios recobrem a sua capacidade de investimento, sobretudo para o enfretamento da dívida social?

R - Tendencialmente, a capacidade de investimento deve ser ampliada. Mas ela depende basicamente das condições de oferta de crédito. As necessidades de investimentos são dadas, mas as necessidades de desembolso dependem do montante do crédito. Se eu tiver que pagar um investimento em cinco anos, eu terei um desembolso de xis. Se eu tiver que pagar esse mesmo empréstimo em dez anos, já é xis sobre dois. Isso é que está influenciando no limite do endividamento. Com as normas extremamente rígidas, por conta da política monetária igualmente rígida, esse endividamento está diminuindo. Mas eu temo que estejam ocorrendo desembolsos maiores. As restrições ao crédito, impostas pela política monetária atual, fazem com que os empréstimos sejam de prazos menores. Isso traz um efeito maléfico e, em última análise, estabelece um paradoxo com os objetivos da lei.

P - O senhor acredita, então, que a lei ainda deva merecer ajustes?

R - Esses ajustes devem ser feitos, sem dúvida. Não acredito, porém, que isso seja feito antes da posse do novo presidente da República. Agora, seja qual for o novo presidente, ele terá necessariamente que tratar dessas questões, terá que flexibilizar a lei. A legislação tem que ser adequada à crise. Ela foi feita num momento em que a economia estava com um potencial inflacionário menos crítico, as pressões macroeconômicas eram menores e o nível da atividade econômica era mais efetivo, quer porque o PIB (Produto Interno Bruto) ainda crescia, porque a privatização e a liberalização de preços dos serviços de utilidade pública ampliaram a base da arrecadação. Agora, temos duas novas tendências: a queda do nível de atividade geral e a maior restrição da base tributária. Não há mais como expandir a arrecadação sem maiores prejuízos à atividade econômica, a não ser que se retome os investimentos. Esses problemas tenderão a aparecer de forma mais clara e intensa na campanha presidencial e certamente legitimará as demandas até agora reprimidas.

P - Voltando à questão do endividamento, nem toda dívida é ruim, não?

R - A Lei de Responsabilidade Fiscal não impõe apenas alguns parâmetros administrativos e fiscais. Ela tem embutida uma visão da política fiscal pública. Para o setor público não é necessariamente válida a assertiva de que não se pode gastar mais do que se ganha. Você pode afirmar que um trabalhador não pode gastar mais do que ganha, mas você não diz o mesmo de uma empresa. Se fosse assim, ela jamais investiria ou teria que ter uma poupança prévia para investir. Não é esta a dinâmica do setor privado e nem do setor público. Vou te dar um exemplo. Um contribuinte, que reside numa determinada cidade, contribui com impostos e espera ver esse dinheiro revertido em serviços. Se você pega o recurso gerado por esse imposto e começa a poupar para dali a dez anos investir no abastecimento de água, podem acontecer algumas coisas. O cidadão pode ter morrido ou mudado de cidade nesse período. Ou seja, contribuiu mas não usufruiu. Em compensação, uma outra pessoa acaba de chegar à cidade. Ou seja, não contribuiu e usufruiu. Essa não é a lógica nem dos trabalhadores. Eles se endividam para comprar uma casa, um carro ou para fazer um tratamento médico. Depois, no tempo, se reequilibram. Então, não é a dívida em si mas a forma de endividamento é que pode ser ruim. Isso vale para as pessoas, para os governos e para as empresas.

P - A partir do encontro com os prefeitos, que tipo de contribuição a Universidade pode dar às prefeituras, sobretudo no aspecto da adequação à Lei de Responsabilidade Fiscal?

R - Primeiramente, não cabe à Universidade fazer assessoria direta às prefeituras. Mas cabe discutir se os princípios dessa lei são aplicáveis e imutáveis ou se são negociáveis. A academia pode mostrar que é possível se conviver com uma disciplina fiscal, sem ser necessariamente esta. Cabe, ainda, mostrar também as implicações das posturas embutidas na legislação. Temos que tentar aclarar se as punições são de fato aplicáveis. Finalmente, cabe à Universidade mostrar o potencial dos novos instrumentos criados pela lei, que facilitam a administração fiscal. Hoje, o administrador público está muito mais respaldado para negar uma anistia, negar um privilégio fiscal. Ele tem que se expor para fazer isso e não pode fazer com o nível de endividamento anterior. Junto com o excesso dessa lei, houve algumas outras que trouxeram coisas positivas. A Emenda Constitucional número 29, por exemplo, prevê uma válvula de escape para as prefeituras aumentarem a arrecadação para a aplicação na área da saúde. Trata-se do IPTU progressivo, que além de ter um aspecto de potencializar a arrecadação de tributos, também tem um aspecto de justiça, de eqüidade tributária. As dificuldades impostas pela Lei de Responsabilidade Fiscal estão dissolvendo as resistências parlamentares à aplicação das taxas de serviços públicos. Na Constituinte, as taxas foram extremamente dificultadas. Se você não pode estabelecer uma taxa para a iluminação pública, por exemplo, todo mundo paga por esse serviço - tanto quem usufrui quanto o quem não usufrui -, por meio dos impostos gerais. Então, cabe à Universidade mostrar esses novos instrumentos, cabe mostrar os horizontes.

P - No encontro com os prefeitos, um outro tema importante a ser tratado é o Estatuto da Cidade. O senhor pode explicar o que é esse estatuto?

R - O Estatuto da Cidade não será objeto de discussão, mas serão tratados os seus mecanismos de apoio à expansão da carga tributária em novos paradigmas, enquanto instrumento que auxilia o cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal via expansão da arrecadação. Alguns instrumentos desse estatuto são claramente voltados para a arrecadação. Cabe à Universidade debater e orientar as administrações sobre o uso deles. Como a sociedade, politicamente, resiste à ampliação da carga tributária, tenho certeza que isso levará a um aprimoramento dos lançamentos dos impostos e a um cuidado maior com a inadimplência. É preciso aprimorar a distribuição da carga tributária, de forma a ampliar o montante total arrecadado. Eu não sou pessimista com os efeitos da Lei de Responsabilidade Fiscal, mas entendo que certamente ela terá que passar por algum tipo de flexibilização.

Parceria rende inclusão digital de 4 mil alunos

A prefeita Cleide Berti e um dos milhares de alunos do programa de inclusão digital em Américo Brasiliense: professores da rede pública receberam orientação da Unicamp

Embora esteja para entrar numa nova etapa, o relacionamento entre a Unicamp e os órgãos governamentais é histórico e tem rendido resultados significativos, sobretudo para a sociedade. No encontro com os prefeitos, marcado para os próximos dias 30 e 31 de agosto, alguns desses gestores públicos terão a oportunidade de falar sobre projetos executados em parceria com a Universidade. Uma das convidadas para testemunhar sobre a importância da maior proximidade entre a academia e os poderes públicos é Cleide Aparecida Berti (PTB), prefeita de Américo Brasiliense, cidade paulista com aproximadamente 30 mil habitantes localizada na região de Araraquara.

Com a orientação de especialistas da Unicamp, a Prefeitura de Américo Brasiliense adotou um programa de inclusão digital que tem beneficiado cerca de 4 mil alunos do ensino fundamental. Os professores da rede pública foram qualificados e passaram a utilizar o computador como uma poderosa e eficiente ferramenta educacional. Uma satisfação adicional, conforme a prefeita, foi registrar a participação da comunidade ao longo dos dois anos de implantação do projeto. "Graças à parceria com a Unicamp, nós estamos oferecendo uma melhor formação para os nossos estudantes, que lhes será útil para o resto da vida", diz a prefeita.

De acordo com Cleide, a cidade não teria condições de conduzir, sozinha, uma ação dessa envergadura. Ela destaca que, embora os prefeitos conheçam bem a realidade de suas cidades, eles não têm condições de conhecer todas e alternativas e soluções disponíveis para os seus problemas. A aliança com a academia, nesse caso, torna-se fundamental para atender às demandas da população. A prefeita entende que os assuntos que serão tratados no encontro organizado pela Funcamp e Preac são de grande interesse dos municípios, sobretudo os que se relacionam com a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Reeleita para o cargo, Cleide afirma que não está tendo dificuldade para se adequar às exigências impostas pela legislação, pois teve tempo suficiente para se preparar. "Eu acabei criando a minha própria Lei de Responsabilidade Fiscal. Hoje, a Prefeitura não gasta mais do que arrecada", assegura. Ela reconhece, porém, que nem todas as cidades estão na mesma situação e enfrentam sérios problemas para se manter nos limites de gastos estabelecidos pela lei. "Considero que a Unicamp poderá oferecer grande colaboração para essas cidades, seja por meio de orientação, seja através da condução de algum projeto em parceria com as prefeituras", analisa.