Edição nº 649

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 11 de março de 2016 a 20 de março de 2016 – ANO 2016 – Nº 649

O coletor de partículas invisíveis

Telescópio do IFGW investiga os efeitos secundários de raios cósmicos que chegam à Terra

No subsolo do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) da Unicamp, quatro pirâmides metálicas – dispostas como um par de ampulhetas, ocupando todo pé-direito da sala, onde se encontram também bancadas e computadores – coletam múons, partículas invisíveis geradas por raios cósmicos e que passam através das lajes de concreto do prédio e dos corpos humanos sem se fazer notar. “Em um metro quadrado, a cada segundo, passam mais ou menos 140 múons”, explica o pesquisador Anderson Fauth, responsável pelas “ampulhetas” que formam o telescópio Muonca [acrônimo para Múons em Campinas].

“Os múons são partículas instáveis, produzidas na atmosfera da Terra pela colisão de raios cósmicos”, disse Fauth. “Esses raios, por sua vez, são núcleos de átomos, a maioria deles são prótons”. Raios cósmicos podem chegar à atmosfera da Terra vindos de diferentes fontes, e de diversos pontos do espaço.

“Há um espectro de energia dos raios cósmicos”, explicou o pesquisador. “Existem raios cósmicos tanto de energias relativamente baixas a até energias que estão entre as mais altas já estudadas, de uma magnitude que não se encontra nem mesmo em aceleradores de partículas”. O Muonca estuda os efeitos secundários de raios cósmicos que chegam à Terra com energias altas demais para serem pesquisados por satélites no espaço.

Múons são partículas de carga elétrica negativa (ou positiva), igual à do elétron (ou pósitron), mas com massa cerca de 200 vezes maior. Os que chegam à superfície terrestre são produzidos a partir da interação entre raios cósmicos e núcleos de átomos dos gases da atmosfera, como o nitrogênio e o oxigênio. “Durante a interação de um próton vindo do espaço com um núcleo, o núcleo se rompe e produz partículas secundárias instáveis, que são os mésons. Alguns mésons decaem em múons, que depois vão decair em elétrons e neutrinos”, descreveu Fauth.

“Os múons têm a caraterística de ser penetrantes, fazem uma trajetória praticamente retilínea”, disse ele. “Eles não sentem a força nuclear forte presente no núcleo dos átomos que encontram pelo caminho e, embora tenham carga elétrica, como têm grande massa e viajam muito rápido, são muito pouco afetados pelas interações eletromagnéticas”.

Blindagem

O Muonca é o único observatório de raios cósmicos em funcionamento no Estado de São Paulo. Ele trabalha em conjunto com um observatório-irmão localizado na Universidade Federal Fluminense (UFF), e sua montagem, bem como a tomada de dados inicial, fez parte da dissertação de mestrado de Débora Nunes Barros de Vasconcelos, “Telescópio de múons para estudo da atividade solar”, orientada por Fauth, que também orientou o trabalho “Estudo e montagem de um telescópio de múons” de Henrique Vieira de Souza, que recebeu o prêmio de Mérito Científico no XXII Congresso de Iniciação  Científica da Unicamp.

Em seu trabalho inicial, descrito na dissertação de Débora e também em apresentação feita na 34ª Conferência Internacional de Raios Cósmicos, realizada na Holanda entre julho e agosto do ano passado, o Muonca foi usado para investigar dois dos chamados “eventos Forbush”, que ocorrem quando a atividade solar impede que parte dos raios cósmicos galácticos penetre o campo magnético terrestre. O nome dado ao fenômeno remete ao físico americano Scott E. Forbush, que estudou raios cósmicos nas décadas de 30 e 40 do século passado.

Eventos Forbush acontecem após emissões coronais de massa (CMEs, na sigla em inglês), ocorrências violentas, em que o Sol dispara “labaredas” para o espaço. Quando as CMEs são lançadas na direção da Terra, as partículas emitidas interagem com a atmosfera e o campo magnético do planeta e podem causar problemas para satélites de comunicação e, mesmo, nas redes de distribuição de energia elétrica. Em março de 1989, um blecaute que durou por 12 horas na província de Quebec, no Canadá, foi causado por a uma intensa CME.

“Nessas explosões, o Sol acelera partículas, prótons e alguns íons leves”, explicou Fauth. “E, se essas partículas chegam à Terra, podem formar uma espécie de blindagem, uma grande blindagem magnética, que faz com que outros raios cósmicos, originados de outros pontos do espaço, sejam bloqueados”.

Esse bloqueio diminui a produção de múons na atmosfera, que leva a uma queda na contagem de partículas no telescópio. “O que estudamos, na primeira parte do projeto, são efeitos de blindagem, os distúrbios no campo magnético da Terra que fazem com que essa radiação cósmica tenha variações”, disse.

 Variações do fluxo de múons detectadas pelo Muonca e vinculadas a eventos Forbush, em setembro e dezembro de 2014, foram comparadas às variações do fluxo de nêutrons – outro tipo de partícula elementar, nesse caso também vinculada aos raios cósmicos – captadas na estação americana McMurdo, localizada na Antártida. As leituras do Muonca e de McMurdo mostraram-se compatíveis, o que foi uma ótima notícia para o projeto brasileiro.

“Fizemos a comparação com McMurdo porque lá se trata de um detector muito estável: se alguém viu o evento, McMurdo viu”, explicou o pesquisador. “E os dados de lá estão disponíveis na internet”.

Fauth acrescenta que as CMEs geram efeitos globais, porque são muito maiores que a Terra: “Na hora que vem a nuvem de partículas, a Terra é pequenininha em comparação, então todos os detectores vão enxergar o fenômeno”. No entanto, também há efeitos locais, dependendo da posição do detector na superfície terrestre, e em relação ao campo magnético do planeta.

“Às vezes, se a emissão não é exatamente centrada, haverá um equipamento que vai enxergar primeiro. E o corte geomagnético vai ser diferente, porque cada detector vai ter um corte próprio. Também há partículas diferentes: para produzir os nêutrons, por exemplo, precisa-se de uma energia menor que os múons”.  Um retrato mais completo da CME e de seus efeitos sobre a Terra depende, portanto, da combinação dos dados de uma diversidade de equipamentos, tanto baseados em pontos diversos do planeta, como o Muonca e McMurdo, como no espaço, em satélites.

Ciência e indústria

O pesquisador destaca que o Muonca foi todo montado na Unicamp. “Foi construído totalmente aqui. É a única experiência de raios cósmicos que foi construída e que toma dados no Estado de São Paulo, e está aqui, na Unicamp”. Ao chamar a atenção para esse fato, ele afirma que é preciso integrar melhor a indústria nacional à ciência.

 “Atualmente, você tem a globalização, então tem os grandes experimentos internacionais, e é necessário que o Brasil participe deles”, ponderou Fauth. “Porque a Física é uma ciência experimental: só se avança tomando dados, fazendo medidas, analisando as medidas e comparando com modelos. É um processo que requer obrigatoriamente dados fundamentais: se não tem os dados fundamentais, a Física não progride”.

Essa parte experimental, disse ele, envolve esforços cada vez maiores. “O pesquisador precisa inserir o seu trabalho dentro de uma colaboração internacional onde vão estar países como EUA, França, Japão. E a nossa indústria tem que participar disso, e aí é que está o problema”, declarou. “Se me derem US$ 10 milhões para fazer uma experiência, vou comprar equipamentos de última geração lá fora, mas isso não traz desenvolvimento social aqui para o Brasil”.

“Para ter realmente desenvolvimento social, é preciso ter a conexão entre o desafio científico, de fazer um experimento inédito, e a indústria, de tal maneira que você financia a pesquisa e desenvolvimento na indústria para esta construir equipamentos inexistentes e o cientista fazer a experiência de física pura, que não terá aplicação de curto prazo, mas você está financiando o desenvolvimento de um know-how tecnológico para o qual a indústria vai encontrar mercado, seja na agricultura, no setor espacial, nas telecomunicações, onde for”, apontou.

Didática

Além de coletar dados sobre raios cósmicos e atividade solar, o Muonca também vem ajudando no ensino de Física dentro do IFGW.  “Os múons são perfeitos para a atividade didática”, disse o pesquisador. “Porque você tem condições de fazer medidas de velocidade para mostrar que são partículas relativísticas”.

Partículas relativísticas são aquelas que viajam a velocidades altas o suficiente para sofrer os efeitos previstos por Albert Einstein na Teoria da Relatividade Especial, como a dilatação do tempo: para essas partículas, o tempo passa mais devagar do que para um observador parado, ou que esteja se movendo a velocidades comuns.

“Usamos os detectores do Muonca e outros equipamentos para medir a vida média desses múons, utilizando um método de medição relativamente simples. A vida média do múon, depois que é gerado, é 2,2 microssegundos”, explica. “Eles são produzidos na alta atmosfera, a 15 km de altitude. Se você faz as contas utilizando a mecânica clássica, ignorando a relatividade, eles deviam se desintegrar depois de viajar 400 metros, não daria tempo de chegarem aos detectores. Só dá para explicar a presença deles aqui usando a relatividade especial, então é uma atividade didática demonstrando que as equações de dilatação do tempo e contração do espaço têm efeitos reais”.

Publicações

Dissertação: “Telescópio de múons para estudo da atividade solar”
Autora: Débora Nunes Barros de Vasconcelos
Orientador: Anderson Fauth

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Tese: “Estudo e montagem de um telescópio de múons”
Autor: Henrique Vieira de Souza
Orientador: Anderson Fauth
Unidade: Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW)
Financiamento: Fapesp