Edição nº 634

Nesta Edição

1
2
3
4
5
6
8
9
10
11
12

Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 24 de agosto de 2015 a 30 de agosto de 2015 – ANO 2015 – Nº 634


Uma grande aula de história


Tudo começou no Arquivo Nacional de Cuba, há alguns anos, quando uma carta dirigida ao general Máximo Gómez chamou a atenção dos historiadores. Trata-se de um pedido comercial escrito em inglês, datilografado em tinta roxa no papel timbrado de uma firma belga: depois de contar a história de sua família e falar de seus ideais, um comerciante de charutos de Antuérpia chamado Édouard Tinchant solicitava autorização para usar o nome e a imagem do grande líder militar das lutas pela independência de Cuba nas caixas de charutos que ele fabricava. O pedido era incomum e o relato, além da Guerra Cubana pela Independência, mencionava a Revolução Haitiana, a Guerra Civil e a Reconstrução nos Estados Unidos.

Rebecca Scott seguiu as pistas fornecidas pelo documento e logo Jean Hébrard juntou-se a ela para puxar os fios que os levaram a uma interessantíssima pesquisa e a produzir esse livro excepcional, que já recebeu muitos prêmios. Provas de liberdade conta os esforços de Rosalie, escravizada por volta de 1785 na Senegâmbia e levada para Saint-Domingue (depois Haiti), para se libertar e manter seus filhos fora da escravidão. Sua história e a de sua família, por cinco gerações, envolvem eventos cruciais na África, na América e na Europa do final do século XVIII até a Segunda Guerra Mundial. Nessa odisseia que atravessa o Atlântico várias vezes, todos lutaram para manter a dignidade e o respeito, desafiando o preconceito racial e a exclusão, cultivando os laços que uniam os vários descendentes e valorizando as escolhas dos antepassados.

A narrativa, simples e cativante, está baseada em uma pesquisa detalhada e extensa, e consegue discutir com grande acuidade e rigor histórico questões complexas como a luta por direitos em diferentes contextos jurídicos numa época de grandes transformações sociais. O texto consegue mesclar vários níveis de análise. O que está em primeiro plano é a defesa da liberdade – desde a ação individual de Rosalie, passando pelos discursos em prol dos direitos civis das mulheres proferidos por seu neto na Convenção Constitucional da Luisiana, até o drama de uma noiva para sobreviver nos campos de concentração nazistas. Mas essa é também uma história da construção de direitos: de ser livre, de ir e vir, de casar e ter filhos, de viver e sobreviver, de votar e ser votado. As ações dos vários membros da família, em circunstâncias diversas, mostram que os contornos e os limites da cidadania não eram fruto apenas de artigos constitucionais, mas de atitudes e estratégias que testavam e punham à prova definições legais e jurídicas. Tais aspectos, presentes em outras narrativas históricas, ganham aqui proporções ainda mais significativas, pois envolvem contextos racializados. No mundo escravista e nas sociedades do período pós-abolição, nas Américas e na Europa, a liberdade e a cidadania eram ainda mais difíceis e precárias para os descendentes de africanos. Nesse contexto, as lutas por direitos civis se entrelaçavam àquelas que buscavam a igualdade racial.

Mas há ainda a dimensão econômica. Os modos de vida e os negócios familiares organizados em torno da fabricação e do comércio de charutos no circuito atlântico e europeu permitem ultrapassar os episódios da vida doméstica. Descortina-se, assim, uma rede comercial de longa distância por meio da qual a fama dos charutos cubanos foi inventada e reinventada várias vezes.

Os esforços de vários membros da família para provar a condição de livres, defender seus direitos de cidadania e manter firmas comerciais sólidas constituem o pano de fundo para uma reflexão arguta sobre as condições da pesquisa histórica e sobre o lugar dos documentos na vida das pessoas. A cada passo, a cada viagem pelo Atlântico, a trajetória da família precisou ser registrada e contada – e Rebecca Scott e Jean Hébrard mostram como esses papéis serviram de guia para a história que narram.

Por tudo isso, Provas de liberdade é uma grande aula de história. Uma obra magistral, de interesse tanto para estudiosos das ciências humanas, como para leitores não especializados.

 

Silvia Hunold Lara é professora do Departamento de História do IFCH-Unicamp.


Capa do livro Provas de liberdade

 SERVIÇO

Título: Provas de Liberdade – Uma odisseia atlântica na era da emancipação

Autores: Rebecca J. Scott e Jean M. Hébrard

Tradução: Vera Joscelyne

Editora da Unicamp

Páginas: 296

Área de interesse: História

Preço: R$ 68,00