Edição nº 634

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 24 de agosto de 2015 a 30 de agosto de 2015 – ANO 2015 – Nº 634

Afinidades eletivas


Grupos pesquisados e reproduções de páginas do “Facebook”: o virtual como espelho do real e interações interessantes no campo da linguagemNo Facebook, a rede social mais acessada no Brasil, nem tudo é novidade. Papéis tradicionalmente desempenhados por homens e mulheres se reproduzem com facilidade e as temáticas em debate nem sempre diferem das que nos acostumamos a ver em outras mídias como revistas, jornais e TV. Em contrapartida, criam-se interações que podem ser muito ricas, do ponto de vista da linguagem. Estas considerações fazem parte da tese de doutorado “Os temas e as dinâmicas sociointeracionais em nove grupos criados e gerenciados por mulheres no Facebook”, de Luciane Cristina Paschoal Martins.

Luciane partiu da hipótese de que, na rede social, as categorias demográficas tendem a se dissolver em nome das afinidades entre as pessoas. Ou seja, não importa qual a renda, gênero, idade ou raça; o que move as pessoas, ou perfis, é o interesse pelos mesmos assuntos. “As categorias demográficas tradicionais significam menos agora do que significavam antes. Com as ferramentas de rede online, as pessoas se agrupam por afinidades”, afirma a pesquisadora na tese.

A hipótese do trabalho foi inspirada nas ideias da pesquisadora de mídia Johanna Blakley, da University of Southern California. De acordo com Blakley, os interesses e valores compartilhados dizem muito mais sobre uma pessoa do que as categorias demográficas. Partindo desse pressuposto e para descobrir se a distinção de gêneros masculino/feminino estaria desaparecendo na mídia social, Luciane decidiu pesquisar as interações em grupos nos quais havia a palavra “Mulheres” no título. São elas, de acordo com dados de uma pesquisa usada na tese, que mais acessam as redes sociais no país, correspondendo a 58,7% da quantidade de acessos.

Luciane queria compreender como e com que finalidade as redes sociais são usadas por mulheres brasileiras e como funcionam os grupos criados e gerenciados por elas. A começar, haveria uma relação entre o tema discutido e os papéis sociointeracionais, (papéis que levam em conta fatores, políticos, culturais e históricos) desempenhados nos grupos? Em outras palavras, “como as pessoas se relacionam?”, indaga.

O primeiro passo da autora foi mapear os grupos. Após duas filtragens, Luciane chegou a nove, que a aceitaram como participante. Destes, seis tratavam de assuntos genéricos, comumente abordados na tradicional mídia considerada “de interesse das mulheres”: beleza, moda, decoração, saúde, maternidade, culinária. Outros três grupos: “Empoderamento das mulheres na UFRA”, “MNT – Mulheres na tecnologia” e “Manifesto contra o preconceito às mulheres brasileiras” fugiam aos temas associados à mídia “feminina”. Os grupos foram observados no período entre março de 2012 e julho de 2013.

METODOLOGIA

A etnografia tradicional, usada na antropologia, vai a campo registrar o que está acontecendo numa determinada comunidade. São utilizadas fotos, filmagens e anotações de campo. A pesquisadora utilizou como metodologia a etnografia online. “A internet resgatou a etnografia com algumas alterações. A diferença para a etnografia online, que uso na minha pesquisa, é que o trabalho é feito com as ferramentas do meio digital: buscas por palavra-chave, print screen da tela e outros recursos”. 

A metodologia foi considerada a mais apropriada porque, segundo Luciane, os grupos observados mostram que o Facebook não é um mundo totalmente virtual. “Embora as interações nesses grupos ocorram online, elas são intrinsecamente relacionadas ao cotidiano das pessoas”. Ao todo foram registradas 1907 postagens envolvendo todos os grupos.

“MULHERES”

Nos seis grupos homônimos “Mulheres”, ordenados alfabeticamente, predominaram os temas recorrentes na mídia voltada para mulheres. A pesquisadora percebeu várias semelhanças com revistas especializadas no público feminino. 

Participantes dos grupos orientam-se, por exemplo, sobre como devem se vestir ou qual a aparência ideal. Da mesma forma são feitos aconselhamentos quando o assunto é relacionamento amoroso. Os textos são longos e não trazem links de notícias. A pesquisadora chama a atenção para a utilização de verbos no imperativo e textos que apresentam características do discurso exortativo com o intuito de influenciar o comportamento da mulher, prescrevendo regras de como agir, muito presente em algumas revistas.

O estilo de linguagem utilizado, em tom otimista e familiar, também é comum nos grupos intitulados “Mulheres”. Outra semelhança com as revistas femininas é a presença do imperativo, uma espécie de “armadilha linguística”, definida por alguns pesquisadores. “Embora o tom seja coloquial, há um ordenamento de conduta, uma imposição”, adverte Luciane.

Em relação à discussão de temas polêmicos, a autora da tese verificou que nos grupos “Mulheres” nota-se a tendência a evitar conflitos, o que também já foi percebido na imprensa feminina. “Como alguns desses grupos aceitam apenas participantes do sexo feminino, isso pode reforçar os estereótipos de gênero, como se esses assuntos interessassem apenas às mulheres. Além disso, as representações da mulher nos grupos, assim como nas revistas femininas, refletem o ideal hegemônico de beleza feminina e são estereotipadas”, reforça Luciane. Conforme a pesquisadora, os grupos intitulados “Mulheres” tendem a manter e reforçar os estereótipos de gênero.

Nos grupos restantes: “Empoderamento das mulheres na Ufra”, “MNT – Mulheres na Tecnologia” e “Manifesto contra o preconceito às mulheres brasileiras”, a dinâmica é diferente. São abordados temas como questões de gênero, tecnologia computacional, política, melhorias na universidade, assuntos que, segundo a autora, não aparecem nas mídias voltadas ao público feminino.

“O estilo de linguagem utilizada também se diferencia. O tom otimista não é recorrente e o debate e questionamentos são utilizados com maior frequência” salienta. Para a autora da tese é possível afirmar que os grupos voltados para questões sociais, são os que têm maior grau de elaboração dos textos escritos. “Esses grupos parecem tentar romper os estereótipos ligados aos gêneros, buscando abordar temas que tradicionalmente não são considerados como de interesse das mulheres. Além disso, o fato de abordarem questões de gênero indica que os participantes estão abertos a essa discussão, o que poderá auxiliar a romper os estereótipos de gênero”.

RAÍZES

Luciane não apenas observou e registrou as postagens dos participantes dos grupos e comentários gerados, como participou, enviando dez postagens com indicação de links para notícias de assuntos atuais e que pudessem gerar alguma discussão. Os comentários foram mapeados e, a partir daí, a pesquisadora identificou três tipos de rede nomeadas por ela, com inspiração em raízes da botânica: fechada, pivotante e rizomática. 

Um exemplo de rede de comentários do tipo fechada, explica a autora, é aquela composta por no máximo três participantes, que iniciam e finalizam o assunto em uma interlocução. “Além disso, esse tipo de rede de comentários se caracteriza pela utilização de comentários dos tipos pergunta e resposta. É o tipo que mais se aproxima de uma conversa face a face”, assinala Luciane. 

A rede do tipo pivotante envolve vários interlocutores, no entanto os comentários não têm relação entre si, mas remetem ao post inicial. “Uma única postagem, um único pivô, gera várias ramificações, os comentários, mas esses não retomam o assunto e não dialogam entre si”. Luciane observou que esse tipo de rede de comentários é típico das redes sociais. 

O tipo mais complexo de rede de comentários, que se assemelha a uma roda de conversa, é a rizomática.  “Caracteriza-se pela presença de vários tipos de comentários que são retomados por diferentes participantes. A postagem inicial gera comentários que, por sua vez, vão gerar outros. Diferentemente da rede fechada, o assunto não se fecha, isto é, há sempre comentários que ancoram outros, ou seja, que permitem novas participações”. 

Em cada grupo, a pesquisadora verificou a predominância de um tipo de rede. Nos intitulados “Mulheres”, as redes pivotante e fechada e, nos demais, a rede rizomática. O curioso é que as provocações da autora da tese, realizando dez postagens dos mesmos assuntos em todos os grupos, modificaram os tipos de redes mais comuns em cada grupo.

Luciane escolheu temas variados, entre os quais a desigualdade de salários entre homens e mulheres, a submissão feminina no casamento, o preconceito contra as mulheres na ciência, a leitura de um blockbuster como 50 tons de cinza, a contribuição das mulheres no Wikipedia, uma pesquisa sobre a preferência das mulheres em ter homens como chefes. A postagem campeã de comentários foi sobre uma pesquisa na área da genética que prevê a extinção dos homens no mundo. 

Em alguns casos, as participantes assumiram papéis mais ativos quando um tema diferente foi colocado em discussão. “Isso demostra que as mulheres estão dispostas a discutir novas temáticas, não restritas àquelas tradicionais da imprensa feminina”, ressalta Luciane. De acordo com ela, a internet permite que as identidades sejam ampliadas, que se mostrem todas as identidades dentro dos espaços. 

“O que eu descobri é que, em parte, a categoria demográfica não fez muita diferença porque as mulheres querem falar de tudo e não só do que seria considerado de interesse delas. Mas, em contrapartida, quando fui analisar as redes e os papeis sociointeracionais, descobri que em alguns grupos, quando o homem entra na discussão, a mulher não entra no debate e o inverso também é verdadeiro. Parece que ainda há divisão dessa categoria de gênero”.

 

Publicação

Tese: “Os temas e as dinâmicas sociointeracionais em nove grupos criados e gerenciados por mulheres no Facebook”

A pesquisadora Luciane Cristina Paschoal Martins: “Com as ferramentas de rede online, as pessoas se agrupam por afinidades”

 

Autora: Luciane Cristina Paschoal Martins

Orientação: Inês Signorini

Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)