Edição nº 593

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 07 de abril de 2014 a 13 de abril de 2014 – ANO 2014 – Nº 593

Pesquisa alerta para uso de sapatos infantis inadequados

Dissertação aponta que problema afeta desenvolvimento motor e construção da feminilidade

Michele é uma mulher que sempre prezou pela boa aparência. Ela não hesita ao escolher um sapato menor que o seu número, se for para ficar bonita. Ocorre que ela tem uma filha que é sua cópia fiel. Aos seis anos de idade, já usa sandalinhas de salto e se envaidece de parecer mocinha.

Esse panorama já se constitui um fenômeno mundial. E essa postura ingênua pode ocultar uma questão maior, que é a antecipação de fases na infância e na sensualização. Foi o que concluiu a fisioterapeuta Renata Augusto Martins em sua dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Ciências Médicas (FCM). “As crianças e adultos não sabem o que podem estar suscitando com isso”, adverte.

O uso de calçados inadequados não contribui para o desenvolvimento motor e nem para a construção da feminilidade. Além do mais, antecipação de fases na infância pode ter consequências perversas, afirma ela.

“As crianças hoje gostam muito de se fantasiar para se transformar. Saem assim pelas ruas. Só que uma coisa é brincar de ser princesa. A outra é crescer princesa na rua. Não está havendo momento lúdico em suas vidas e, o que é pior, estão passando por isso e as famílias nem percebem”, verifica.

A fisioterapeuta estudou o uso de calçados por meninas na faixa etária de um a sete anos, para compreender se eles prejudicam a marcha. Durante esta fase do desenvolvimento motor e da consciência corporal, a marcha independente é o ponto alto. O tipo de calçado que acompanha a criança durante esse aprendizado pode influenciar o desempenho de um caminhar seguro, alterando a largura, o tempo e o impacto durante cada passo.

Renata notou que as meninas, foco deste estudo, têm a seu favor o crescimento. Seus músculos e ossos acomodarão os pés e todo resto do corpo quando estiverem em pé ou andando. Por outro lado, na idade adulta, poderão arcar com danos pelo uso de sapatos inadequados, hábito originado na infância. Poderão ter deformidades como as joanetes (geradas pela mudança na angulação dos ossos que atinge o dedão do pé, entortando) e o neuroma de Morton (lesão no nervo entre os dedos, que causa espessamento e dor).

Esses e outros comprometimentos dos pés se dão numa proporção de 9:1 nas mulheres em relação aos homens, conforme a literatura. “Escolhi esse assunto pela dificuldade de optar por modelos de sapato para minha filha, quando pequena, pois, se estava ruim para mim, que tinha senso crítico, imagine para ela e para outras mães que nunca pensaram nisso”, reflete. “Vejo que o sapato ideal é o tênis e, tanto quanto possível, as crianças deveriam andar mais descalças.”

A pesquisadora também adentrou a questão do consumismo. Sondou como ele é incutido nas crianças. Percebeu que, para elas, consumir é prazeroso. Está comprovado, inclusive, a liberação de endorfina no organismo, um hormônio que cria essa sensação.

Há anos, observa-se uma vasta oferta de sapatos com saltinho e de plástico, em geral com personagens infantis. Isso acaba envolvendo muito a criança. Agora, é certo que existe um consumo necessário. Só que, na maioria das vezes, vem repleto de mensagens subliminares que vão além dos danos ortopédicos, com forte apelo para a sensualização precoce.

Conexões
Renata entrevistou 12 mães. Queria conhecer a percepção delas. Verificou que se assustavam quando perguntava se elas achavam que o caminhar com o salto interferia no estilo de vida da criança. [A mestranda viu nas lojas saltos com mais de 5 cm de altura.]

As mães disseram que nunca tinham pensado nisso. Algumas se chocaram. Outras falaram de uma novela em que as meninas usavam roupas que pediam um saltinho, incentivando-as a terem um igual. Isso vai levar a um batom e a um esmalte. Uma coisa puxa a outra.

Mesmo sabendo dos sapatos inadequados, as mães não conseguiam ignorá-los. Daí a relação direta entre o consumo e a criança, denotando que a infância está mudando. Há elementos sugerindo que ela é pretérita, fruto de uma criação sociocultural.

A infância está mudando de fato, sustenta Roberto Teixeira Mendes, docente do Departamento de Pediatria da FCM e orientador do estudo, porque boa parte do que se vivia na adolescência está “descendo” para essa fase, vindo a erotização precoce, que é uma demanda adulta.

A infância que era um período “protegido”, para que a criança se desenvolvesse, tem sofrido uma redução em sua duração e uma transformação em seu conteúdo, comprometendo o período de latência, no qual as funções cognitivas superiores e os valores ético-morais começam a se constituir na forma adulta. “Não pensamos nisso no começo. Depois vimos que o fenômeno do uso dos calçados do tipo adulto por meninas coincide com os estudos sobre a infância contemporânea ou pós-moderna”, verifica Teixeira.

A adolescência parece expandir para baixo, antecipando-se à puberdade, e para cima, sobrepondo-se à idade adulta, criando a adultescência, com o adiamento prolongado do comportamento adulto, como que desmanchando limites antes melhor definidos.

Renata percebeu uma questão muito cruel: a nova postura é fomentada pelos próprios pais ou os responsáveis pelo marketing de produtos para crianças (os fabricantes, os veiculadores e todo o staff ), que dão suporte ao consumo e às ideias. Tudo isso deveria dizer respeito à preservação da infância, opina.

Mas a preocupação ortopédica não é maior que a apreensão com a atitude da criança. Em uma festa, ela tira o sapato quando está apertado, para brincar. Naquele momento ela é criança. Paradoxalmente, outras querem continuar arrumadinhas.

Normas
Teixeira e Renata viram que seria difícil avaliar a alteração da marcha com sapatos inadequados, mesmo para adultos, visto que os equipamentos para analisar esse parâmetro eram pouco acessíveis há cerca de dez anos, quando ambos começaram o levantamento bibliográfico e a discussão do assunto.

Eles envolviam esteiras e requeriam um laboratório de marcha, no qual se filma a pessoa andando com e sem sapato. Seria ainda possível associá-la ao uso de uma palmilha, que estudaria a mudança das pressões no pé, conforme o salto ou o tipo de sapato. Isso pode ser feito hoje, não à época.

Como foi superada tal barreira metodológica, já que a Unicamp não tinha esses meios de análise para crianças? Para driblar o empecilho, a mestranda partiu do seguinte consenso: sapatos de salto não são adequados para a marcha porque qualquer pessoa que colocá-los vai andar diferente – passos mais curtos e menos equilíbrio.

Ela então decidiu fazer um trabalho que considerasse isso um elemento dado, embora não estudado em crianças. “Tomamos por base que no mínimo isso também se passava com elas, e fomos estudar outras questões que envolviam a escolha.”

Renata buscou normas da ABNT para a confecção de calçados para meninas. Achou normas mais ou menos estabelecidas para adultos no Brasil e no exterior. Foram encontrados apenas estudos de adequação. A despeito de haver selos de qualidade para calçados de crianças, a estudiosa, ao fazer contato com as sociedades que os conferiam, relatou que elas não souberam informar o parâmetro para atribuí-lo.

O maior risco de usar sapato com salto é o entorse, que pode levar a lesões simples e também de ligamentos, que exigem intervenção cirúrgica. Quem tem pé pequeno e usa salto alto, diminui a base de sustentação do corpo.

Implicações
Uma das perguntas que Renata fez às mães foi se elas já tinham comprado um sapato que machucava o pé? A resposta foi sim. O que elas fizeram com ele? Deram a uma outra pessoa ou usaram pouco. O que elas faziam quando o sapato machucava o pé das filhas? Comentaram que “o pé cresce tão rapidamente que, se tiver que ficar comprando muitos sapatos, assim não vai dar...”

São atitudes impensáveis, critica a mestranda. Mas, no momento seguinte, depois de as mães terem dado seu testemunho, “a ficha caía” e elas desabafavam: “nossa, eu falei isso?” Era constrangedor. Teixeira constata que as mães são reféns de uma demanda das filhas e do consumo.

Na literatura, estudos de Linda O’Keefe (1996) mostraram que 88% das mulheres usavam sapato um número menor que o ideal. O autor descreveu o fascínio delas pelos saltos altos: “[...] as mulheres podem ‘enfiar’ uns chinelos, ‘calçar’ uns tênis ou ‘por’ uns sapatos mais confortáveis, mas ‘vestem-se’ de saltos altos.”

Outra questão estudada foi a da identidade representada pelo uso de certos calçados com estilos de vida e status social, fato registrado na história dos calçados pelo menos desde o Antigo Egito.

Usar este ou aquele calçado, associado a roupas e posturas, indica o pertencimento a grupos e identidade com ícones da cultura. Exemplo disso é o roubo de tênis por adolescentes que indica a luta por serem semelhantes a quem o possuía. Se a menina não é a Cinderela, ao menos tem um sapatinho transparente, de plástico que seja. Na identificação com grupos e personagens, o calçado então parece ser o elemento icônico.

Há pouco, lembra Renata, a menina brincava de usar a sandália da mãe. Agora, ela e suas amigas vão à escola de salto e com maquiagem. Fogem dos seus mundos e invadem a vida adulta.

O psicanalista Donald Winnicott disse que a brincadeira é a forma de a criança entender o mundo e se entender nele, e de aprender a se relacionar com o outro. “Boa parte das crianças que não brinca terá menor capacidade de reflexão e de interação com as complexas realidades do mundo adulto”, frisa Teixeira.

Na sua visão, parte da violência entre os jovens tem a ver com o fato de não haver mais tempo para as brincadeiras coletivas, porque quem brinca desde criança continua brincando quando adulto, sendo criativo e tolerante. Quem nunca brincou quando criança, torna-se um adulto intolerante.

“O sapato é um elemento como outros, como as telas de computador e dos celulares. Crianças muito pequenas reconhecem esses aparatos que, para elas, têm outro uso. Acabam não brincando, nem interagindo. O sapato segue a mesma linha”, garante o pediatra.

Em nome da beleza, a dor
Na cultura chinesa, em nome da beleza, os adultos tinham o hábito de enfaixar os pés das crianças desde os três anos. Dobravam os dedos das meninas na direção da sola do pé. Deformavam o pé até que ficasse do tamanho de uma caixinha de cigarro, os chamados Pés de Lótus.

A menina era transformada desde a infância, pois não era possível transformar o pé de uma mulher adulta. Isso porque é preciso ter os ossos em desenvolvimento para deformá-los. Parece um exagero. Na verdade, é o mesmo fenômeno: as crianças usam o sapato que não serve para sua idade.

Algumas modelos decepam o dedo mínimo para que o pé caiba num sapato de bico fino. A jornalista americana Glória Steinem refere-se ao assunto no livro Memórias da Transgressão: Momentos da História da Mulher do Século XX (1997), com a seguinte pergunta: se o sapato não serve, nós devemos mudar o pé?

Publicação
Dissertação: “Pressão de consumo e escolha das mães: o caso dos sapatos para meninas de 1 a 7 anos”
Autora: Renata Augusto Martins
Orientador: Roberto Teixeira Mendes
Unidade: Faculdade de Ciências Médicas (FCM)

Comentários

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Há algum limite "tolerável" em relação ao tamanho do saltinho em sapatos infantis? Crianças acima de 7 anos também são igualmente prejudicadas com o uso de pequenos saltos (inferiores a 5 cm)?

simone_leite@uol.com.br

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boa noite renata parabéns pela pesquisa e matéria eu como pai de uma filha criiança com 03 anos gostei muito.
obrigado
atenciosamente
emerson

emerson_sinzato@yahoo.com.br

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Parabéns caros colegas pela matéria a população precisa se conscientiza e se informa pois a modernidade não pode ultrapassa antecipando as fases da infância.
"Tudo a um custo e um fator mental e postural."

albuquerque-daniel@hotmail.com

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Excelente pesquisa. Principalmente por chamar a atenção para um problema grave que vem sendo negligenciado pela nossa sociedade: a falta de infância. Hoje os pais (e os adultos em geral) vêm impedindo que as crianças se comportem como tal e comprometendo seu desenvolvimento psicosexual, ao mesmo tempo que têm permitido que a adolescência se extenda até idades avançadas, criando adultos frágeis, com baixa tolerância a críticas e baixo grau de comprometimento. Muito mais que uma questão estética ou ortopédica, estas práticas têm consequências psicológicas e sociais extremamente graves.

lu_vmk@hotmail.com

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Cara Renata e de. Roberto Teixeira ! Excelente estudo e muito importante! O salto implica em mais do que uma " perturbação " física , pois elas precisam mesmo é de pé no chão e " brincar" de imitar as mães , o que implica um tempo limitado, da brincadeira ! Do ponto de vista psicológico elas tem que saber que são meninas e não mulheres!
Parabéns !
Iane Melotti -doutoranda da FCM

glauce_psi@hotmail.com

Comentário: 

Parabéns!
Criança tem que ser criança e os adultos que as cercam tem que garantir isso....

claudiasilva@ige.unicamp.br

Comentário: 

Parabens renata pelo texto. Vi seu link na página sobre a publicação das repugnantes fotos na vogue kids deste mes. Olha eu como adulta também tenho problemas em achar sapatos, pois os saltos simplesmente acabam com meus pés. Os unicos que são razoáveis são os beira rio confort, mas ainda assim, não são aqueeeele estilo de salto. E tem da linha usaflex, que de uns tempos pra cá modernizou-se bastante. Acho que é um absurdo a gente ter que se adaptar aos sapatos e não eles a nós! Parabens pela tese.

renata_cibele@hotmail.com