Edição nº 568

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 29 de julho de 2013 a 04 de agosto de 2013 – ANO 2013 – Nº 568

Falta de política de pessoal e distribuição
de médicos agravam problemas no SUS

Embora avaliado como “muito bom”/“bom” e “regular” pela maioria dos
brasileiros (71,5%), dificuldade de acesso ainda é principal “doença” do sistema

Sintoma - Acesso mais fácil, rápido e oportuno aos serviços prestados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Esse é o modelo desejado pela maioria dos brasileiros, segundo pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) no final de 2010. A maioria dos entrevistados aponta a falta de médicos (58,1%), em primeiro lugar, depois a demora em ser atendido (35,4%) e conseguir consulta com especialista (33,8%) como os principais problemas da saúde pública no Brasil. “O aumento do número de médicos pode ser entendido pela população como uma solução para os problemas que vivencia, quando, na busca de serviços no SUS, ocorre demora em conseguir marcar uma consulta ou utilizar outro tipo de serviço de saúde”, afirma a pesquisa, que ouviu 2.773 pessoas em várias regiões do país.

Para o governo federal, a falta evidente de médicos no Brasil (sintoma) justifica as ações do Programa Mais Médicos. “Talvez o maior desafio de todos é suprir a rede de saúde com profissionais em quantidade suficiente para atender com qualidade toda população. Não apenas aos que têm a sorte de morar perto de hospitais públicos ou de pagar pelo seu atendimento. Mas atender também os que vivem nas periferias mais desassistidas, ao que moram nas cidades pequenas, nas cidades médias, aos que moram em todas as regiões”, disse, no lançamento do programa (8/07), a presidente Dilma Rousseff.

Pesquisa do Datafolha (27 e 28/06) mostra que, para os brasileiros, a saúde é o principal problema do país (48%), mais que a violência e o desemprego, temas preponderantes há dez anos. Criado no Brasil em 1988, o SUS tornou o acesso gratuito à saúde direito de todo cidadão. Até então, o modelo de atendimento era dividido em três categorias: os que podiam pagar por serviços de saúde privados, os que tinham direito à saúde pública como segurados da previdência social (ou seja, tinha registro em carteira) e os que não possuíam direito algum.

Diagnóstico – Para quem já entendeu que apenas faltam médicos, cabe um esclarecimento: há 90 anos, a relação de profissionais por mil habitantes vem crescendo (veja arte) e isso não foi suficiente. “Os médicos nunca foram tão numerosos, ao mesmo tempo em que persistem acentuadas desigualdades na distribuição dos profissionais entre as regiões, Estados e municípios”, descreve o coordenador da pesquisa Demografia Médica no Brasil, Mário Scheffer, realizada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), divulgada em fevereiro deste ano. Segundo a entidade, projeções mostram que, neste ano, já existem dois médicos para cada mil habitantes, mais que o recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

De 1970, quando existiam 58,9 mil médicos no país, o Brasil chegou a 2012 com um crescimento de mais de 500% na quantidade desses profissionais. No mesmo período, a população brasileira praticamente dobrou. Hoje, 55% deles, cerca de 215 mil médicos, atuam no Sistema Único de Saúde, segundo pesquisa do CFM. Em 2020, mantida a atual taxa de crescimento, existirão 500 mil médicos no país – média de 2,4 profissionais por mil habitantes, marca ainda inferior ao registrado, atualmente, na Argentina (3,2), no Reino Unido (2,7) e no Uruguai (3,7).

Para o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, não existe número ideal de “um médico por mil habitantes” recomendado pela OMS, porque esse indicador é uma unidade de proporção estatística para fins de comparação internacional. “O Brasil é um país de dimensões continentais que tem um sistema de saúde público e universal, ou seja, pretende dar cobertura gratuita a 100% da população, o que torna suas necessidades por profissionais de saúde maiores do que a de países que não têm sistemas universais e públicos”, diz (leia entrevista na pág. 8).

Pode até parecer simples aumentar o número de vagas de medicina nas universidades, mas não é. “Precisamos de mais condições de atendimento nos hospitais, principalmente nos hospitais públicos universitários que já se encontram sobrecarregados por uma demanda muito grande de pacientes, porque não há outros para onde eles possam se dirigir. Necessitaremos também de mais professores para ensino e supervisão, além e mais salas de atendimento”, avalia o médico Nelson Adami Andreollo, professor e coordenador da Comissão de Diplomas de Estrangeiros da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp. Em 1979, quando Andreollo chegou ao Hospital das Clínicas, em Campinas, a FCM tinha 80 alunos na graduação e menos de cem residentes. Hoje, são 110 estudantes e 600 médicos residentes que entram por ano. “Não há espaço físico para colocar mais alunos e residentes na mesma estrutura, e isso sem contar que também cresceram os alunos de especialização e de pós-graduação”, destaca, ao defender novos investimentos.

Ainda como exemplo da situação da rede de saúde pública, cerca de 1,2 mil pessoas aguardam vaga no Hospital das Clínicas de São Paulo, apenas no setor de urologia, para serem operadas. “O curso de medicina da Universidade Federal de São Carlos está sem aula, sem equipamentos, sem professores. Mais da metade dos hospitais escola não consegue dar uma residência em um nível que imaginamos como bom. Você precisa ter uma estrutura universitária para ter uma residência de qualidade. Se aumentar o número de alunos em hospitais sucateados, o que esses jovens vão aprender?”, avalia o médico Desiré Carlos Callegari, 1º secretário do Conselho Federal de Medicina (CFM). A entidade defende a aplicação de 10% do Produto Interno Bruto na saúde – hoje, o país investe 3,5% do PIB. “Sem dinheiro, sem financiamento, sem estrutura, não adianta colocar estudante de medicina nem médicos que venham de fora.”

Resumindo: faltam médicos em algumas regiões do país, não é fácil ampliar rapidamente a formação desses profissionais e existe uma dificuldade por parte do governo para fixar médicos em regiões isoladas e nas periferias, apesar dos salários oferecidos. Como resolver isso? Existem várias questões interligadas que afastam os profissionais e tornam o cenário complexo.

“O problema principal é a falta de uma política de pessoal no SUS, que não existe até hoje”, afirma o médico Gastão Wagner de Sousa Campos, professor do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp e ex-secretário executivo do Ministério da Saúde (2003 a 2005). “Há uma característica do SUS: 70% dos trabalhadores são contratados por meio de ‘gambiarras’ trabalhistas.” Um exemplo disso, segundo ele, é a contratação temporária prevista pelo Programa Mais Médicos, um paliativo, mas não a solução para a dificuldade para fixar médicos em regiões desassistidas.

Já tramita no Congresso uma proposta de criação de plano de carreira que prevê algo como já existe para magistrados, promotores, por exemplo. Contratados mediante concursos, esses profissionais iniciariam atividade em localidades menores, de primeira “entrância”, e seriam promovidos ao longo do tempo para regiões mais bem estruturadas. O ministro da Saúde disse que o governo apoia a iniciativa, mas desde que os médicos trabalhem em regime de dedicação exclusiva.

Se a falta de carreira de Estado afasta os médicos do SUS, há outra lógica de mercado que influencia na distribuição de médicos pelo Brasil e agrava o problema, segundo o médico e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Alcides Silva de Miranda, vice-presidente do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes). O médico afirma que a maior parte dos profissionais possui duplo vínculo, ou seja, trabalham para o SUS, mas também para a iniciativa privada. “Se observarmos a distribuição de profissionais no Brasil, os médicos estão onde há essa possibilidade de duplo vínculo”, avalia. Isso explica a concentração de profissionais, detectada pelo Ministério da Saúde e pelo CFM, nos grandes centros urbanos, onde também estão posicionadas as principais unidades de saúde do SUS.

Nesse cenário, formam-se “periferias” desassistidas ou atendidas em parte por médicos. Pior, é que onde faltam médicos, de fato, poucos “aparelhos” de saúde existem, quando existem. Essa tem sido a principal linha de argumentos dos médicos contrários às propostas do governo: a precariedade nas regiões isoladas e nas periferias das grandes cidades, de fato, vai além da falta de médicos e exige investimentos públicos em infraestrutura. “Com o financiamento que existe hoje não dá para estruturar o SUS como ele precisa, com unidades básicas interagindo com unidades de média e alta complexidade. Precisaríamos de, no mínimo, 10% da receita corrente bruta para o financiamento federal em saúde, conforme projeto de lei há muito tempo no Congresso”, avalia o médico da Unicamp Jorge Carlos Machado Curi, 1º vice-presidente da Associação Médica Brasileira (AMB).

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Historicamente, quando o mercado, por conta própria, não é capaz de suprir demandas que envolvem clamor social, apenas o Estado pode resolver o problema, por meio de subsídios e incentivos, a exemplo da contratação de médicos temporários proposta pelo Ministério da Saúde. “Não adianta deslocar o médico para os grotões. É preciso montar uma estrutura nesses locais. Quem irá financiar isso? As medidas [anunciadas] têm algum fundamento social, acho até que poderiam ser implementadas, mas isso envolveria uma discussão séria com todos os protagonistas”, afirma o médico Miguel Srougi, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

Comparado a países que possuem sistema único de saúde, como Inglaterra e Canadá, o Brasil segue no rumo certo ao defender a estruturação da atenção básica – uma rede com médicos e enfermeiros que fazem atendimentos clínicos e, principalmente, prevenção de doenças. Pesquisa do IPEA mostrou que o Programa Saúde da Família é o serviço mais bem avaliado do SUS, com 80,7% de aprovação (considerado muito bom ou bom). O problema é que, de acordo com médicos ouvidos, em outros países, o profissional da atenção básica é autoridade sanitária em sua região, pode determinar a internação de pacientes em outras unidades de maior complexidade e trabalha em rede com toda a estrutura de saúde. No Brasil, falta integração dentro da rede de atendimento e, em vez de reforçar essa estrutura, o país tem investido numa rede de unidades de pronto-atendimento (UPAs), que gastam mais, realizam 50% mais exames e receitam 40% mais medicamentos, afirma o professor de medicina Gastão Campos, da Unicamp. “E não é com melhores resultados”, afirma. No estudo do IPEA, urgência e emergência, em 2010, eram os piores serviços do SUS.

Na atenção básica, o profissional médico aproximase e conhece os pacientes, diferentemente do que ocorre nas UPAs, que deveriam servir apenas para emergências e urgências. No Canadá, onde há 1,7 médicos por mil habitantes, 99% da população é atendida pela atenção básica. Pesquisas no Brasil mostram que o aumento do atendimento local no Programa de Saúde da Família, como resultado, reduz a mortalidade infantil. Formar essa rede de atenção básica exige uma variada lista de investimentos, incluindo pessoal, não apenas médicos, ampliação da infraestrutura, aquisição de equipamentos, verbas para custeio etc.

Tratamento – Feito o diagnóstico, resta avaliar o remédio proposto pelo governo federal. Professores de medicina e representantes de entidades médicas ouvidos até observam qualidades na proposta, mas divergem sobre a forma de encaminhamento, criticam o que chamam de falta de debate e a imposição de alguns termos, como o trabalho obrigatório dos médicos no Sistema Único de Saúde durante o segundo ciclo.

“Estender o curso de medicina não ajudará a resolver a situação. Essa tentativa de fazer com que os médicos façam treinamento em postos de saúde, em pronto-socorro e emergência, é totalmente válida, só que isso pode ser feito perfeitamente durante o curso”, avalia o médico Nelson Andreollo, da Unicamp. Na região de Campinas, por exemplo, os alunos de medicina da Unicamp realizam, desde 2000, atividades supervisionadas na rede pública de saúde durante três dos seis anos do curso, do 4º ao 6º ano, para contribuírem e entenderem a realidade do SUS.

Além disso, aumentar o tempo de duração do curso de medicina, segundo o Conselho Federal de Medicina, pode inviabilizar a carreira. “Quem neste país ficará tanto tempo para se formar?”, indaga o médico Desiré Callegari, do CFM. Hoje, além dos seis anos de graduação, os médicos enfrentam de três a cinco anos de especialização antes de entrarem de vez no mercado. Pior, as vagas de residência não são suficientes para todos e a disputa por elas é acirrada. Cerca de 180 mil de médicos (46% do total) não possuem especialização. Há ainda o receio de que, esticando a graduação, aumente a escassez de especialistas.

No último dia 24 de julho, o Ministério da Educação (MEC) divulgou que estuda proposta para, em vez de ampliar em dois anos o curso de medicina, transformar o segundo ciclo em uma residência obrigatória a ser realizada em unidades do SUS. Nessa mesma semana, o Ministério da Saúde anunciou o investimento, para este ano, de R$ 560 milhões no Programa Nacional de Reestruturação dos Hospitais Universitários.

Segundo médico Gastão Campos, da Unicamp, outros países criaram um sistema de contratação para a rede de atenção básica que une a contratação de profissionais, dentro de uma carreira, e o preenchimento compulsório de vagas remanescentes por meio da residência médica. Para ele, todos os residentes – e hoje 90% deles estudam com bolsas públicas no Brasil – poderiam passar um ano, obrigatoriamente, na atenção básica antes de completar a especialização. “Há ideias boas nas propostas do governo, mas que foram atiradas ao barro pela forma de encaminhamento, pela falta de discussão, e podemos perder uma oportunidade para um tema essencial para a saúde dos brasileiros: mexer na formação dos médicos, na distribuição desses profissionais e fortalecer a atenção primária básica da família”, avalia o professor.

De forma unânime, professores e representantes de entidades médicas ouvidos não aprovam o plano de expansão de vagas na graduação em medicina, mas concordam com a ampliação de vagas apenas nos cursos públicos, como forma de assegurar a qualidade dos futuros médicos.

No último dia 23 de julho, o Ministério da Educação (MEC) instituiu a Política Nacional de Expansão das Escolas Médicas das Instituições Federais de Ensino Superior, que estabelece regras para a criação de novos cursos de medicina e expansão de vagas em cursos já existentes. Por exemplo, as universidades públicas e privadas só poderão ofertar vagas caso tenham número de leitos disponíveis por aluno maior ou igual a cinco; número de alunos por equipe de atenção básica menor ou igual a três; existência de estrutura de urgência e emergência, mais pelo menos três programas de residência médica nas especialidades fundamentais: clínica médica, cirurgia geral, ginecologia-obstetrícia, pediatria, medicina de família e comunidade.

Médico estrangeiro no Brasil? Só com o diploma revalidado, aprovado no exame nacional, o Revalida (que no ano passado reprovou 91% dos médicos estrangeiros). Para professores entrevistados, o exame deveria analisar os conhecimentos teóricos e práticos dos candidatos, a exemplo do que ocorre em outros países, como os Estados Unidos. Apenas na Bolívia, segundo levantamento realizado pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo, cerca de 20 mil brasileiros estudam medicina, a maioria em cursos precários. A maior parte dos diplomados no exterior que presta o revalida vem da Bolívia, mas são os mais reprovados: em 2012, 411 candidatos fizeram a prova, mas apenas 15 (4%) foram aprovados. Segundo os entrevistados, um exame de revalidação assegura a qualidade dos serviços médicos.

Sobre a contratação temporária, entrevistados pelo Jornal da Unicamp consideraram a medida um paliativo e defenderam a criação de um plano de carreira. O Programa Mais Médicos registrou 2.552 municípios (24/07) interessados em receber esses médicos, o equivalente a 45,8% das cidades brasileiras.

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